Escrito por: Eduardo Maretti, da RBA
Instituições representantes dos povos indígenas, procuradores e o Partido Socialista Brasileiro tentam na Justiça e no Congresso barrar normas da MP 870, que esvazia Funai e instaura controle de ONGs
As entidades representantes dos povos indígenas trabalham em duas frentes – no Congresso Nacional e no Judiciário – contra a Medida Provisória (MP) 870/2019, com a qual o presidente Jair Bolsonaro promoveu uma série de mudanças na estrutura destinada à demarcação de terras indígenas e esvaziou a Fundação Nacional do Índio (Funai) de suas principais competências.
A competência para identificar, delimitar e demarcar as terras indígenas foi transferida da Funai para o Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina. A Funai foi ainda retirada da estrutura do Ministério da Justiça e passou para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra Damares Alves.
A MP também tem o objetivo de "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais (ONGs) no território nacional", segundo seu artigo 5° (inciso II).
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou, há dez dias, uma representação na Procuradoria-Geral da República na qual pede que o órgão questione a MP com ação judicial.
Na petição encaminhada à procuradora-geral, Raquel Dodge, a Apib afirma que, com a Medida Provisória 870, Bolsonaro "reconheceu sua dívida com a bancada ruralista".
"A posição, inicialmente, é fazer a disputa no âmbito do Congresso, trabalhando com emendas parlamentares e também fazer essa disputa no Judiciário a partir de uma ação da PGR", explica Cléber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Na semana passada, por sua vez, o PSB ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 6062 contra a MP. O partido pede que a MP seja inconstitucional, por violar o artigo 231 da Constituição. Na ação, o PSB diz que as novas regras representam "o mais profundo retrocesso no tratamento da temática indígena no país, desde a promulgação da Constituição de 88".
Segundo o partido, ao subordinar a proteção do direito à terra dos indígenas à agenda de um ministério vinculado aos interesses de ruralistas, a MP 870 compromete seriamente "a efetividade das normas constitucionais voltadas à proteção dos povos indígenas e dos seus direitos fundamentais". Ao comprometer essas normas, a medida provisória afeta a garantia do direito à terra e, consequentemente, o direito à identidade étnica.
"A preocupação, primeiro, é que as demarcações não aconteçam e haja retrocessos em relação a procedimentos e demarcação que já estão em curso, muitos em fase avançada", diz Buzatto. Além disso, as entidades temem que haja "facilitação de empreendimentos de infraestrutura que afetem seus territórios". Está em elaboração, pelo governo, um "pacote" de obras de "desenvolvimento" para a região amazônica, com projetos de infraestrutura que podem ameaçar seriamente a floresta amazônica.
No final de janeiro, a líder indígena Sônia Guajajara afirmou que "esse governo demonstra claramente que não vai demarcar terras indígenas, que está entregue ao agronegócio".
Apib, Cimi e outras instituições pretendem fazer valer, além das normas constitucionais, as regras da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que determina que os povos indígenas têm direito de serem consultados previamente, "de forma livre e informada", de decisões que possam afetar seus bens ou direitos.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (FDC) enviou nota técnica ao Congresso e uma representação a Raquel Dodge, sugerindo ação no STF contra o monitoramento de ONGs, argumentando que a Constituição (artigo 5°) proíbe controle dessas instituições.
Em artigo publicado no site jurídico Jota, Julio José Araújo Junior, procurador da República no Rio de Janeiro, afirma que "a aparente reorganização administrativa (promovida pela MP 870) constitui-se, em verdade, na execução de um projeto de esvaziamento pleno dos direitos daqueles povos (indígenas)".
"Em 2019, requenta-se a tentativa de submeter os índios a uma concepção tutelar, em que o Estado tende a negar-lhes expressamente a cidadania e a autonomia", escreveu o procurador.
Em tuíte de dia 2 de janeiro, Bolsonaro alegou que "mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade (sic), exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros", como motivação para decretar o monitoramento das ONGs e as novas regras sobre os direitos indígenas.