Escrito por: Rosely Rocha

Entregadores da Rappi devem ter direitos trabalhistas previstos na CLT

Investigação feita por auditores-fiscais do Trabalho revela que Rappi tem obrigação de reconhecer os entregadores como funcionários. Para auditor, há um desconhecimento de direitos trabalhistas

Secretaria Regional do Trabalho (SRT)
Entregador da Rappi aguarda chamado

Longas jornadas de mais de 10 horas diárias, de segunda a segunda, sem pausa para o almoço ou jantar, sem direitos a folgas remuneradas, férias, 13º salário, contribuição previdenciária e ainda a obrigação de abrir uma conta digital em que o entregador só pode fazer uma transferência por mês, caso contrário precisa pagar uma taxa de R$ 7,00 mais 1,99% sobre o valor transferido. Esta é a rotina dos cerca de sete mil entregadores da cidade de São Paulo que trabalham para a Rappi, uma das maiores empresas de entregas do país.

A Rappi não faz a operacionalização do pagamento, ela terceiriza para a empresa SmartMEI que cobra taxas dos entregadores para que eles tenham acesso ao dinheiro depositado semanalmente.  A Rappi fornece os dados dos entregadores à SmartMEI, que cria uma conta digital para o pagamento das entregas e/ou fretes. A adesão é obrigatória. Não há outra forma de receber pelos serviços prestados.

Como os motoristas da Uber, os entregadores são responsáveis pela manutenção de suas motocicletas e bicicletas, arcam com todos os custos, inclusive dos acidentes, que são um risco sempre presente. Os que têm bicicletas, na impossibilidade de comprar uma motocicleta, se esforçam para colocar motor, a fim de tornar as entregas mais ágeis.

Esses e outros abusos foram levantados por auditores-fiscais do Trabalho durante uma investigação que ocorreu de abril a dezembro de 2020, ouvindo  mais de 100 entregadores da Rappi. A grande maioria preferiu o anonimato, com medo de represálias da empresa.

Entregadores não são autônomos, são trabalhadores explorados

Após os oito meses que durou o levantamento feito pelos auditores-fiscais Rafael Augusto Vido da Silva e Rafael Brisque Neiva, do grupo de combate à informalidade e à fraude nas relações de emprego da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo (SRT/SP) ficou claro que os entregadores da Rappi não são autônomos,  são, na realidade, empregados, e devem ter todos os direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para os auditores-fiscais , os entregadores que prestam serviços para a Rappi deveriam ter a Carteira de Trabalho assinada.

"Nossa fiscalização concluiu que os entregadores são empregados, há relação de emprego entre a empresa Rappi e os entregadores cadastrados em sua plataforma digital. Assim, eles devem ser registrados com todos os direitos trabalhistas e sociais previstos na legislação", afirma o auditor-fiscal, Rafael Neiva.

O que facilita a exploração patronal

Tanta exploração é possível por algumas razões: o desconhecimento de leis trabalhistas por parte dos entregadores de motocicleta e bicicleta, as fake news que desinformam sobre seus direitos e o atual cenário de alto desemprego e vulnerabilidade social, que facilita que a Rappi tenha “um exército de trabalhadores à disposição, gerando competição entre eles, que permite à empresa uma grande exploração, pagando salários baixos e sonegando direitos. É um contexto socioeconômico do qual a empresa se aproveita para explorar a mão de obra, facilmente substituível”, diz o Auditor-Fiscal do Trabalho, Rafael Neiva.

Segundo o auditor, esses trabalhadores desconhecem como seria a formalização de seus contratos, com carteira assinada. Neste caso há várias linhas de regulamentação, inclusive até o trabalho intermitente, quando a pessoa é convocada pelo aplicativo.

“A partir do momento em que o entregador aceita a corrida pelo Rappi começa a contagem de horas de trabalho e sobre elas, ele pode receber todos os direitos, recolhimento do INSS e outras proteções sociais como o 13º salário no cálculo”, explica Rafael Neiva.

O entregador tem essa falsa percepção de que se trabalhar com direitos, será obrigado a ter horário de entrada e saída. Por desconhecimento, eles acreditam que se forem registrados estarão proibidos de trabalhar para outro aplicativo- Rafael Brisque Neiva

O auditor-fiscal esclarece ainda que os entregadores podem se cadastrar em várias plataformas tanto na Rappi, Ifood, Uber-X e outras. A própria Rappi consegue fazer este controle. A empresa sabe o total de horas na semana e com a tecnologia da informação, é fácil a forma de controle.

“Enquanto estiverem logados nas plataformas eles têm de receber por que estão à disposição, estão aguardando direcionamento do serviço”, diz Neiva.

Empresas têm controle da vida dos entregadores 24 h por dia

As empresas de entrega controlam a quantidade de entregadores cadastrados, quem está ativo, quem fica só de vez em quando, o sistema de punição e sanção, tudo por meio de algoritmo da tecnologia da informação.

“Toda programação dá um cruzamento de dados como número de entregas, se houve demora, as avaliações dos usuários. Eles fazem um mix de critérios até para desenvolver em que nível está cada entregador”, afirma Rafael Neiva.

O controle da Rappi sobre o valor a ser pago aos trabalhadores é feito até dependendo do clima. Se chove e há poucos entregadores em determinado local, a empresa, em mensagem, oferece condições mais vantajosas para atrai-los.

“Todo este processo de controle sobre onde eles estão, os obriga a fazer ainda mais entregas. Há também o bloqueio se recusar chamada. O entregador não pode ficar doente ou tirar um dia de descanso, que corre risco de punição, como o obrigar a atender locais de pouco movimento e o bloqueio total”, afirma o auditor-fiscal.

Empresas de aplicativos sabem da vulnerabilidade desses trabalhadores jovens e humildes. Até menores de idade pegam cadastros de outros mais velhos para trabalhar e não há fiscalização neste sentido. A Rappi não está nem aí com o ser humano, tratam os entregadores como mercadoria- Rafael Brisque Neiva

Níveis de confiabilidade

A Rappi estabelece vários níveis de confiabilidade de entregadores: os que podem fazer entregas mais simples, os que têm um cartão de crédito da Rappi para efetuar compras para os clientes; outro recebe que pode receber dinheiro do usuário; e ainda os que estão habilitados a comprar produtos de maior valor agregado, como um celular e outros mais caros.

“Os níveis de confiabilidade parecem planos de carreira. Com mais entregas e menos reclamações, maior fidelidade. Quando o entregador muda de nível, ele tem um leque maior de entregas e ganha um pouco mais pelo trabalho feito”, conta o auditor-fiscal.

Rappi dificultou acesso a documentos

As duas empresas, Rappi e SmartMEI, não apresentaram os documentos solicitados na Notificação de Apresentação de Documentos( NAD) e foram, por esse motivo, autuadas por embaraço à fiscalização. Deixaram de apresentar, por exemplo, a relação de entregadores cadastrados, o histórico de transferência de valores e o contrato de parceria entre as empresas.

Para Rafael Neiva, a terceirização do pagamento por parte da Rappi visa fraudar e ocultar a relação de emprego entre a empresa e os entregadores.

“Toda a operacionalização do pagamento do salário é terceirizada, mas quem tem o controle é a Rappi que só envia a SmartMEI o número do CPF de quem tem direito ao crédito na conta digital, pelas entregas”, afirma o auditor-fiscal.

A Rappi fundamentou sua recusa em não entregar os dados dos cadastrados, na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que, na visão da empresa, impediria o fornecimento. Segundo os Auditores-Fiscais do Trabalho, a LGPD não estava vigente à época e, ainda que estivesse, neste caso, a Rappi teria que cumprir a determinação da Fiscalização do Trabalho. Ficou claro que não fornecer os dados foi uma estratégia para dificultar o desenvolvimento da ação fiscal.

Razão social da Rappi não diz que ela é entregadora de encomendas

Em sua razão social, a Rappi diz que é intermediadora de negócios de tecnologia da informação. Neiva rebate e diz que a principal atividade da empresa é o serviço de entrega rápida.

“A Rappi usa códigos de atividade secundário em seu CNPJ como empresa startup de tecnologia  da informação e intermediação de serviços. A gente não diz que ela não tenha atividade de tecnologia da informação, mas a principal atividade econômica é o serviço de entrega rápida. Começa aí a fraude de relação de trabalho, para se afastar de responsabilidade de ser empregadora”, ressalta o auditor-fiscal.

Ele também observa que a fraude praticada desestrutura todo o setor econômico de entregas. “A Rappi estabelece uma concorrência desleal com as empresas de entregas que têm os motociclistas empregados, pagando os direitos trabalhistas. É o dumping social. A Rappi tem custo praticamente zero com a mão de obra ‘autônoma’ e as outras têm custos, não conseguem competir. As empresas e os trabalhadores ficam prejudicados”.

Relatório contra Rappi tem mais de 200 páginas

O relatório de mais de 200 páginas dos auditores fiscais detalha o histórico da fiscalização realizada na sede da Rappi e em locais de concentração de entregadores à espera de um chamado: ruas, praças, calçadas  é detalhado. A  cada linha fica comprovada a relação de emprego, de subordinação. Estariam, portanto, prejudicados por não receberem seus direitos trabalhistas como FGTS e Previdência Social, férias, descanso semanal remunerado, entre outros.

Segundo os Auditores-Fiscais, o empenho na redução do custo de mão de obra, por um lado, e, por outro, o desenvolvimento de sistemas de controle e fiscalização do trabalho à distância, tudo isso, sem vínculo trabalhista, ressaltam a precarização do trabalho dos entregadores, o que gera altos lucros para uma empresa que transfere todos os riscos de seu modelo de negócio para o trabalhador. A Rappi não é a única; várias outras usam a mesma metodologia, dizem os auditores.

O relatório será analisado pelo Ministério da Economia. O Ministério Público do Trabalho (MPT) também recebeu o relatório. O órgão tem instrumentos para a realização de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), acordos extra judiciais, ou podem entrar com ação civil pública, por  danos morais e coletivos.

Loggi e Ifood já foram condenadas

Em 2017, a Loggi e a iFood também foram autuadas por auditores-fiscais do Trabalho. A Ifood ganhou a ação judicial em Primeira Instância e o MPT recorreu. A Loggi perdeu em Primeira Instância e também recorreu. Ambas aguardam a decisão dos recursos junto ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT2/SP)

Com informações do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais (SINAIT)