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Excessos do Judiciário podem levar à destruição do sistema democrático

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, aponta os riscos para o Brasil de um cenário no qual não se distinguem os três poderes da República

Publicado: 04 Setembro, 2018 - 10h42 | Última modificação: 04 Setembro, 2018 - 10h57

Escrito por: Glauco Faria, da RBA

ALICE VERGUEIRO/IBCCRIM
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São Paulo – "Todas as pessoas são a favor da luta contra a corrupção, mas a corrupção não pode ser a única luta do Judiciário em nenhum país, não pode estar separada da legitimidade, de princípios fundamentais e da defesa do sistema democrático, porque levada ao excesso dessa forma pode contribuir para a destruição do próprio sistema democrático." A avaliação é do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que aponta os riscos para o Brasil de um cenário no qual não se distinguem os três poderes da República.

Paradoxalmente, aquele que seria o mais autônomo entre eles é quem mais depende do poder político. "Nessa medida, é muito fácil criar o ódio, sobretudo quando temos uma televisão midiática extremamente monopolizada, com os brasileiros passando quatro a cinco horas por dia vendo esses programas, no sentido de demonizar os políticos em geral e a democracia", aponta. "Quando se demoniza a democracia, vem esse populismo, de extrema direta, e o Bolsonaro é exatamente uma expressão disso, uma consequência indireta da Lava Jato ou, se quiser, da forma como foi conduzida, e portanto há que viver com essa realidade."

Na entrevista exclusiva concedida à RBA, em meio ao 24º Seminário Internacional de Ciências Criminais, Boaventura traça um panorama das transformações pelas quais passaram a América Latina e o Brasil desde o início dos anos 2000, com a emergência de movimentos e governos progressistas que tiveram de enfrentar a resistência da direita e a interferência de atores externos. "A direita ganharia mais facilmente as eleições de 2018 se não tivesse ocorrido o golpe. Portanto eles devem pensar duas vezes no custo político em que se envolveram, mas aqui há muitos agentes internacionais por trás deles que permitiram toda essa impaciência para destruir o 'perigo petista'.

Confira abaixo os principais trechos da primeira parte da entrevista.

A América Latina no início dos anos 2000 e o Fórum Social Mundial

Era um momento de muita esperança neste continente, o governo Chávez tinha de alguma maneira inaugurado em 1998 uma certa renovação, havia um grande fermento que vinha e que resultava diretamente, no caso da Argentina e do Brasil, dos próprios processos de democratização que tinham ocorrido nos vinte anos anteriores. Começam os movimentos, nos anos 1980, quando surge o MST e, portanto, esses movimentos, muito fortes, vão dar uma ideia de que este continente era um continente de esperança, depois de tanto martírio, de tanta guerra e tantas ditaduras, morte e violência.

E realmente essa esperança estava de alguma maneira bem fundamentada, porque havia uma riqueza dos movimentos sociais, basta ver que era o único continente onde começava a se falar de alguma maneira do socialismo do século XXI, não se falava disso em nenhuma outra parte do mundo fora da América Latina. O Fórum Social Mundial surge justamente nesse contexto e nesse caldo que aponta para fortalecimento da luta da esquerda. Muitos dos governos progressistas que vieram a surgir na América Latina devem alguma coisa à mobilização do Fórum Social Mundial. Lembro de Fernando Lugo, antes de ser presidente, que veio do Paraguai de ônibus porque não tinham dinheiro para pagar a passagem.

Portanto, houve realmente uma mobilização muito grande. Em 2003 temos o Lula no governo, um momento de muita esperança em geral, mas não apenas ao nível dos partidos e dos governos, mas dos movimentos sociais que continuaram muito fortes, com alianças intercontinentais, inclusive a que nós temos hoje, por exemplo, com a Via Campesina ou a Marcha Mundial das Mulheres, que nasceram e se fortaleceram acima de tudo no Fórum Social Mundial. Também foi um momento enorme para interconhecimento, para o movimento indígena, por exemplo, que praticamente nem se conheciam uns aos outros na América Latina e dentro do próprio Brasil.

Os governos progressistas e o recuo

O que aconteceu, entretanto, é que os governos progressistas chegaram e uma corrente de esquerda de muitos intelectuais aqui da América Latina, com os quais devo dizer que não estou totalmente de acordo, fazem uma distinção entre progressivismo e esquerda, isto é, os governos eram progressistas, mas não eram de esquerda. Penso que essa distinção não faz muito sentido, eram de esquerda e se equivocaram, e obviamente cometeram erros. Eram progressistas, mas não reacionários, que é o que se opõe, e eram de esquerda e não de direita. Por que essa distinção começa a ser feita? Porque realmente é o sinal do desespero e de frustração, porque foi um continente que criou grande expectavas e numa década as expectativas transformaram-se em frustrações.

Como é que se transformam tão rapidamente? Por erros obviamente internos dos próprios governos progressistas e por uma influência externa que é o imperialismo norte-americano, muito claramente, sobretudo a partir de 2009. Havia uma situação muito específica naquela altura e tempo, de crescimento do mercado internacional das matérias primas provocado pelo impulso e desenvolvimento da China, com uma rentabilidade enorme para os países que as produziam. O Brasil era um deles, outros países da América Latina também, como a Argentina. Houve aqui um ambiente extraordinário que permitiu uma dinâmica social orientada por estes governos, que vinham de movimentos sociais e tinham uma política muito semelhante à da social-democracia europeia – era assim que o Lula designava seu governo, como social-democracia à latino-americana, lamentando aliás que os europeus a estivessem abandonando.

Tudo isso era possível para aquela conjuntura, mas sem se tocar na matriz econômica, na estrutura de classe e no modelo de desenvolvimento. Sem tocar no modelo financeiro e midiático. Isso fez com que a certa altura os próprios movimentos sociais começassem a sentir uma grande frustração. Em outros países, como no caso da Bolívia, houve uma divisão total entre os movimentos, como no caso equatoriano.

Influência dos Estados Unidos

Mas há também uma intervenção externa que começa a ter lugar sobretudo a partir de 2009, com o golpe das Honduras, e não foi antes porque o Estados Unidos estavam completamente envolvidos desde 2003 na guerra do Iraque e, portanto, haviam se esquecido praticamente da sua política na América Latina por estarem ligados ao Oriente Médio. A essa altura, em 2009, começam a olhar outra vez para o continente e a ver que o que estava surgindo aqui uma dinâmica autonomista que se opunha em causa ao princípio fundamental de toda a diplomacia e domínio norte-americanos, que se resumem a uma expressão: acesso aos recursos naturais.

Estavam a surgir aqui muitas coisas e um dos casos mais graves era obviamente o Brasil, na medida em que o país hegemonizava aqui na América Latina, não só pela sua dimensão, mas também pelo fato de ser um membro importante dos Brics. Portanto, estava a ser uma alternativa que entrava em linha de confrontação com o dólar, unindo Rússia, China, Brasil, Índia e África do Sul.

Como não havia nesse momento, digamos, a ameaça comunista – era difícil de se inventar agora, como se inventaram antes as ditaduras por haver a Revolução Cubana – passam a se fazer golpes institucionais usando o Judiciário. Já se fazia, há décadas, grandes investimentos no Ministério Público, por parte da CIA e das organizações. Estudei isso por conta do caso colombiano no qual, para se fazer a tal luta contra a corrupção, contra a guerrilha, se fez um Judiciário musculoso, muito agressivo, inquisitorial e nada respeitoso em relação aos processos em nome da luta contra as drogas e contra o terror.

Esse modelo começou a dar esses frutos em 2009/2012, pulou para o Paraguai e depois chegamos em 2016. O que se passou no Brasil desde então não se pode explicar sem exatamente analisar essa necessidade de se liquidar, neutralizar qualquer política de autonomia no continente, garantindo o acesso (dos EUA) aos recursos naturais. Obviamente, o imperialismo norte-americano é uma coisa muito diferente do imperialismo de antes, não é apenas a CIA ou os militares como a gente pensa, mas uma série de organizações, muitas vezes privadas, financiadas pelos irmãos Koch. Estes são realmente os grandes potencializadores das políticas conservadoras nos Estados Unidos, de extrema direita mesmo, mais conservadora, que tem outras ramificações. A Atlas (Foundation), que é um reduto importante, onde está o Instituto Milllenium, Instituto Mises e muitos outros institutos que estão em funcionamento no Brasil e que fizeram com que hoje os valores de direita fossem quase "chiques".

Os custos políticos para a direita

Portanto, houve eventos internos e uma interferência externa que levaram à situação em que o Brasil se encontra hoje, uma situação muito complexa, precisamente por ser no país que sediou o Fórum Social Mundial. Ainda hoje muita gente me pergunta, no mundo, enquanto estou fazendo minhas palestras, como foi possível neste país tantos retrocessos em tão pouco tempo, e de uma maneira tão violenta e com tão pouca resistência. E realmente assim foi. Penso que os movimentos sociais já estavam de alguma maneira desmobilizados, por diferentes razões, como os que pensavam que já não era necessária mobilização social porque o governo era amigo, e outros que tinham sido hostilizados pelo governo e que portanto não estavam em pé de guerra para defender as suas reivindicações.

Estão acordando agora. Os retrocessos que se cometeram nos últimos dois anos foram de tal ordem que transformaram esse político genial que é Lula da Silva em um mártir, e os lados, digamos, mais frágeis e críticos dos seus governos não podem se discutir hoje. O que é também problemático, penso que devemos fazer uma discussão desses erros, até porque o tipo de governo que ele fez não se pode reproduzir no futuro.

A direita ganharia mais facilmente as eleições de 2018 se não tivesse ocorrido o golpe. Portanto eles devem pensar duas vezes no custo político em que se envolveram, mas aqui há muitos atores internacionais por trás deles que permitiram toda essa impaciência para destruir o “perigo petista”.

Os poderes que se confundem
Nós temos vários candidatos de esquerda e vários candidatos de direta neste momento, mas a simetria termina aqui. Sempre digo que a direta está fragmentada até o segundo turno, dando uma aparência de fragmentação exatamente para garantir que haja apenas candidatos de seu campo no segundo turno. No segundo turno, ela será brutal em liquidar aquilo que não quiser, e vai fazer com todos os instrumentos e toda força que tem.

No segundo turno, ela (a direita) será brutal em liquidar aquilo que não quiser, e vai fazer com todos os instrumentos e toda força que tem
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Pode o jogo sair das mãos (da direita), porque há muito atores no jogo brasileiro, o populismo está aí, o Bolsonaro é o exemplo, mas ele responde não só a uma política de grande descrédito da democracia levada a cabo muitas vezes pelas próprias instituições democráticas. Todas as pessoas são a favor da luta contra a corrupção, mas a corrupção não pode ser a única luta do Judiciário em nenhum país, não pode estar separada da legitimidade, de princípios fundamentais e da defesa do sistema democrático, porque levada ao excesso dessa forma pode contribuir para a destruição do próprio sistema democrático. E é esse o risco que corremos nesse momento, porque qualquer político que tenha o seu nome associado em uma delação, que tenha sido feita sem nenhuma prova, tem o seu currículo obviamente manchado e a sua carreira comprometida.

Nessa medida, é muito fácil criar o ódio, sobretudo quando temos uma televisão midiática extremamente monopolizada, com os brasileiros passando quatro a cinco horas por dia vendo esses programas, no sentido de demonizar os políticos em geral e a democracia. Quando se demoniza a democracia, vem esse populismo, de extrema direta, e o Bolsonaro é exatamente uma expressão disso, uma consequência indireta da Lava Jato ou, se quiser, da forma como foi conduzida, e portanto há que viver com essa realidade.

Os mercados querem um candidato de direita, não tem que ser o Bolsonaro, provavelmente pode ser ele na medida em que apoie a liberalização, privatização de tudo, como quer o Instituto Millenium e o Mises, a ala mais conversadora da direita. Um Alckmin provavelmente acabará por fazer mais ou menos a mesma coisa.

Isso é feito pelo interesse internacional, obviamente que não foi algo impensado, foi tudo calculadíssimo para que isso se desse e provavelmente pode até ter êxito. Só que nunca tem êxito completo porque a sociedade felizmente tem outras dinâmicas, a sociedade começa a mover-se, as pessoas começam a fazer comparações sobre como era nos “terríveis tempos do Lula”. Como é que se vive hoje? Começam a fazer comparações, “ah, mas esse senhor não foi que o nos pintaram” e, portanto, as pessoas começam a acordar, e isso começa a notar-se já, na opinião pública.

Quem defende a democracia é a esquerda

Tenho defendido que nesse momento em que vivemos é a esquerda que tem que defender a democracia, e não a direita. E não é só aqui, penso isso na Europa. Porque a direita se vendeu de tal maneira aos interesses do neoliberalismo que não tem capacidade, mesmo que queira, para poder impor alguma regra ao capitalismo. Se não houver regras ao capitalismo é o capitalismo que impõe regras, situação em que nos encontramos neste momento.

A direita brasileira é golpista, quer dizer, não consigo identificar no Brasil ninguém genuinamente de direita que tenha sido contra o golpe, que tenha visto as limitações da Lava Jato e esses perigos
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A esquerda, até porque perdeu realmente a vertente revolucionária, perdeu a vertente comunista, digamos assim, de uma alternativa total, hoje garante a democracia em todo o mundo. É dela que eu espero isso, acho que a direta está totalmente deslegitimada. A dirita brasileira é golpista, quer dizer, não consigo identificar no Brasil ninguém genuinamente de direita, com uma política de direita que tenha sido contra o golpe, que tenha visto as limitações da Lava Jato e esses perigos. Isto é, colocados a democracia e o interesse republicano acima do interesse partidário. Não, porque é uma sociedade de extração colonial, que realmente continua com muitos vieses colonialistas, oligárquicos, em que sempre privatizaram o Estado, onde o Executivo, o Legislativo e o Judiciário praticamente não se distinguem uns dos outros.

Com o Judiciário mais autônomo do mundo, nenhum outro que eu conheço entre os grandes países do mundo tem o controle do próprio orçamento como tem o vosso Judiciário e, no entanto, acaba sendo o mais dependente do poder político. Isto é muito estranho, o candidato que vier a ganhar tem que tirar as lições do passado. Se for um candidato de esquerda tem que ter muito realismo, porque houve muita destruição nesse processo e é preciso nesse momento neutralizar algumas destas contrarreformas que foram feitas, por exemplo, o Teto de Gastos, obviamente um suicídio social, um absurdo.

Só isso vai levar muito tempo. Um governo de esquerda vai tentar em um primeiro momento minimizar os danos já causados, não vai ter nenhuma possibilidade de poder avançar com as políticas que nós podíamos ter avançado no início da primeira década do milênio, a reforma política, reforma da mídia e a reforma tributária, que era fundamental. Vai, acima de tudo, reduzir os riscos e começar a partir daí a criar condições para uma outra hegemonia, que a meu entender pode e tem que passar pela unidade da esquerda, e eventualmente, quem sabe, o surgimento de mais algum partido de esquerda. O Brasil, sendo um país com muitos movimentos sociais, não tem nenhum partido de movimentos como existe em outros países, por exemplo, na Espanha, com o Podemos. Aqui, os partidos sempre ficaram relativamente tentando ser os proprietários dos movimentos, mas os movimentos não pertencem a ninguém e, portanto, eles próprios podem sair organizados.

Esquerda confrontacional

Se for um governo de esquerda, eu mesmo apoiarei enquanto for reconhecidamente de esquerda, e não vou entrar nestas distinções se “é de esquerda” ou “é progressista” porque isso não faz muito sentido. Acho que vai ser uma política de realismo numa primeira fase, para começar a ver se há forças para atravessar esse cenário internacional de crises, no qual o mercado financeiro tem um controle como nunca havia tido antes.

Portanto, se não se tirar dos ricos, não haverá nada para dar aos pobres. E isso pode ser o fim de qualquer expectativa nova em um governo de esquerda. Será necessário tirar dos ricos, a única maneira ou, digamos, mais simples que se pode fazer, é a via tributária. Uma política tributária nova que finalmente permita que se faça aquilo que a democracia pensava, quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos. Estamos em uma situação absolutamente inversa.

Mas o realismo não é cedência, o realismo vai ser confrontacional, porque foram muito agressivos e não vão abrir mão daquilo que já quiseram fazer. Até agora não conseguiram abrir mão da Previdência, que é a mãe de todas as reformas, mas conseguiram no caso do pré-sal, que já está profundamente minado. Aquilo que se puder fazer será de enfrentamento, não tenho dúvidas.

Nós criamos um momento de tão baixa intensidade de democracia que, aqui no Brasil, qualquer medida, por pequena que seja no sentido contrário, será confrontacional, não vai ser uma política de alianças. E, portanto, se um governo de esquerda pensar em alianças nesse momento, vai ser traído em um segundo momento. E não é preciso esperar por um Temer, vai ser uma coisa muito mais grotesca e mais rápida. Vão ter que aprender que não há e não vai haver uma conciliação de classes nos próximos tempos porque a direita mostrou que efetivamente isso não é um arranjo de conjuntura, ela quer continuar a ter o poder todo nas mãos, o poder político, econômico e social.

Leia segunda parte da entrevista