Escrito por: Érica Aragão e Marize Muniz

Fala de Bia Dória sobre pessoas em situação de rua é criminosa e genocida

Afirmação foi feita pelos trabalhadores em serviços sociais David Oscar, orientador Sócio Educativo do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), e Juneia Batista, secretária de Mulheres da CUT

Jorge Araújo

É criminosa, genocida e de uma falta de solidariedade e humanidade sem tamanhos. É assim que os trabalhadores do serviço social de São Paulo definem a fala da primeira-dama do estado São Paulo, Bia Doria, que em entrevista a amiga e socialite Val Marchiori, no vídeo que viralizou nas redes sociais, afirma “que acha errado dar comida ou roupas para moradores de rua, que a rua é atraente”

David Oscar, orientador Sócio Educativo do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), ficou indignando e preocupado com a vida da população de rua, especialmente neste período de inverno em que muito correm risco de morrer de frio. Ele, que atende diariamente adultos, crianças e adolescentes em situação de rua, sabe do que está falando, ao contrário da primeira-dama.

De acordo com o assistente social, que está no segundo mandato no Conselho Municipal de Assistência Social de São Paulo (COMAS/SP), já existe um trabalho para tirar as pessoas da rua, mas não é assim de uma hora para outra que se consegue fazer isso. Não é uma questão de escolha, diz o profissional, que ressalta: as pessoas têm diversas demandas, estão na rua por diversos motivos e é preciso todo um processo de acolhimento, com serviços de saúde, assistência social e núcleos de convivência.

“É preciso que estas pessoas voltem a se sentir parte da sociedade, se preparem e tenham condições de sair desta situação com o mínimo de estrutura para se estabelecer, senão a tendência é bater e voltar com o preconceito da sociedade”, explica.

Existe um protocolo de cuidado neste momento com o Plano Emergencial de Baixas temperaturas, com assistência e saúde, diz David. O Samu e um consultório de rua fazem a abordagem e encaminham as pessoas em situação de rua para os serviços que cada um precisa. E isso acontece só no inverno porque o governo não quer se responsabilizar por nenhuma morte, critica.

“Ele só faz isso porque a mídia cobra e as pessoas se sensibilizam com o frio, porque todo mundo sente. Mas é bom frisar que as pessoas em situação de rua morrem o ano todo e a gente não pode somente se comover com as mortes, temos que ter medidas de proteção à vida e a população pode ajudar a cobrar”, diz David.

A prática de genocídio do governador João Doria (PSDB) e também a de sua mulher não diferem muito dos atos de Jair Bolsonaro (ex-PSL), afirma a secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, Juneia Batista, que concorda com a avaliação de David e acrescenta que uma critica ao cargo de presidente do Fundo Social de São Paulo, ocupado pela esposa do governador. “É preciso acabar com este negócio de que a primeira-dama tem que estar neste cargo, independentemente de sua capacidade para atuar numa área tão sensível como a social”.

“Chega a ser machista e misógino este cargo ser ocupado por este critério, tem que ser alguém da área e que entenda a realidade desta população e de outras vulneráveis, o que parece que Bia Dória não tem. A gente tem de respeitar e proteger as pessoas é por isso que pagamos impostos, para que também protejam as pessoas que precisam e têm direito”, afirmou.

Juneia, que é assistente social em São Paulo, ressalta que está na Constituição que o direito à saúde, à moradia e a assistência social é dever do Estado e isso inclui a população mais vulnerável que, ao contrário do que disse a primeira-dama não está na rua porque acha a rua atraente. Está por uma série de razões, entre elas, a crise econômica que os impediu de pagar um aluguel, álcool, drogas e até doenças mentais.  

David Oscar, que também é membro do Fórum de Assistência Social, complementa dizendo que, às vezes, essas pessoas precisam de algo bem simples, como alguém que os escute, os trate como seres humanos que são. “Muitas vezes, eles só querem conversar, ser ouvidos e ganharem um abraço”.

Por que a fala de dona Bia Doria foi criminosa

Em um texto, que viralizou no Whatsapp, David explicou em 5 pontos porque a fala da primeira-dama foi criminosa, genocida com falta de solidariedade e humanidade. E ele ainda deixou clara a preocupação de não deixar que esta narrativa cheia de estereótipo e preconceito vire senso comum.

“Eu escrevi o texto como forma de protesto porque trabalho há 10 anos na área social em diversos tipos de serviços e fiquei indignado. A forma que foi colocada a posição delas sobre as pessoas em situação de rua é muito perigosa, porque a sociedade pode começar a tratar essa versão como verdade e isto, principalmente neste momento de altas temperaturas e de Covid-19, pode colocar em risco a vida de milhares de pessoas que estão nas ruas”, conta David.

No fim do texto ele pede que toda a sociedade não admita que tamanho absurdo passe impune. “É dever de todos a luta para que a senhora Bia Doria seja retirada do cargo e que em seu lugar entre alguém que realmente entenda a complexidade das políticas sociais”, conclui.

Ele assina a mensagem dizendo: " A temperatura é suportável, o que mata é a frieza de vocês".

 Confira os cinco pontos

  1. Não existe um perfil padrão de pessoa em situação de rua, isso é uma visão carregada de preconceitos que alimentam a desinformação para toda a sociedade. Diferente do estereótipo criado, cada pessoa em situação de rua tem uma vivência e os seus diversos motivos para chegarem na atual situação. E eles são de diversas faixas etárias, etnias e até nacionalidades.
  2. Estamos enfrentando uma das piores pandemias da história, e com a chegada do inverno tudo fica mais complicado e perigoso. Sabemos que uma pessoa resfriada ou gripada tem uma queda na imunidade, o que a torna mais suscetível a contrair a Covid-19, fora os mais diversos problemas de saúde agravados pelas baixas temperaturas. Só faltou ela pedir para que a população não oferecesse também a máscara para quem está em situação de rua
  3. Nesse ponto vou focar nos números do município de São Paulo. No ano passado foi realizado o Censo Pop Rua que trouxe números muito questionáveis, mas que não vamos entrar nesse mérito agora. Usando os apontamentos subdimensionados, hoje na capital existem quase 25 mil pessoas em situação de rua, e a rede de acolhimento da cidade oferece uma média de 14 à 15 mil vagas. Qual é a mágica Bia Dória? Se amanhã todas as pessoas aceitarem acolhimento para onde irão? Talvez em suas diversas viagens internacionais você tenha adquirido um conhecimento avançado de matemática que feche essa conta.
  4. Que o governador João Doria apresente um estudo que sustente as afirmações higienistas da representante do Fundo Social, ou que a retire do cargo. Não que eu espere muito de alguém que planejou dar ração humana para as pessoas em situação de rua, que em sua gestão na prefeitura às pessoas eram acordadas com jato d'água ou que carimbou as mãos das crianças para não repetirem merenda nas escolas. Mas enquanto estiver a frente do Estado, Dória tem responsabilidades com a constituição vigente.
  5. Ao contrário do que a senhora Bia Dória tenta passar, uma boa economia não tem impacto direto no número de pessoas em situação de rua ou em uma sociedade menos desigual, muito pelo contrário. Os Estados Unidos hoje lideram a economia mundial, e mesmo assim, têm em torno de 500 mil pessoas que vivem nas ruas norte americanas. A nível de comparação, a estimativa é que no Brasil atualmente o número de pessoas em situação de rua seja de 80 à 100 mil.

Nota do movimento social

Roberto Parizotti (Sapão)

O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) soltou uma nota sobre o caso e afirmou que o Brasil tem 221,869 pessoas em situação de rua, das quais 124.698 estão na região Sudeste. Segundo a entidade, estes números não representam todo o universo de pessoas nestas condições, mas mensura apenas a parcela que os governos conseguem enxergar.

“Sugerimos que procure se informar sobre a realidade, antes de sair dando testemunhos desumanos como o que foi postado e que não condiz com a realidade e que podem ter como consequência a ampliação do preconceito e de ações discriminatórias", conclui o MNPR.

Nota de esclarecimento de Bia Dória e a desinformação continuada

Pelo Instagram no dia seguinte, Bia Doria publicou uma nota de esclarecimento dizendo que frase dita no vídeo foi tirada do contexto e tentou se explicar.

" O que quis dizer é que, se conseguirmos convencer as pessoas que vivem nas ruas a irem para os abrigos públicos, onde terão alimentação de qualidade dentro das normas de higiene da vigilância sanitária, traremos mais qualidade de vida para elas”, afirmou a primeira dama.

“O que ela ainda precisa explicar é como mais de 25 mil pessoas vão conseguir ficar em abrigos públicos que só cabem 15 mil?”, questiona David.

Dentro das funções de David, neste tempo de pandemia, também é levar as pessoas em situação de rua que estão com suspeita ou até com a covid-19 confirmada para os centros de acolhida.

“Os profissionais de saúde atendem estas pessoas e encaminham. Até ontem já eram 6 óbitos, 30 casos confirmados e já tínhamos 115 pessoas isoladas”, afirma David.