Escrito por: Érica Aragão

Flexibilização do isolamento de Doria atende mercado e aponta para mais mortes

SP ainda tem grande número de casos e mortes por Covid-19 e o ideal seria bloqueio total, diz infectologista. “Medida é uma questão de classe”, afirma. Para a CUT, não há justificativa para a flexibilização

arte: Alex Capuano/CUT

Vários países do mundo, que já foram epicentros da pandemia do novo coronavírus, demoraram meses, após o pico de contaminação, para reabrir alguns serviços não essenciais, e ainda de forma gradativa. Este não é o caso de São Paulo, onde em pleno pico da pandemia, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), decidiu flexibilizar as medidas de isolamento social e iniciar a reabertura do comércio.

Especialistas criticam a decisão, que vai na mesma linha do que vem pregando Jair Bolsonaro (ex-PSL), que defende mais a economia do que as vidas dos brasileiros. Para infectologistas, o momento exige bloqueio total da circulação, o contrário do que Doria fez. Para dirigentes da CUT, não há uma só justificativa para São Paulo começar a relaxar nas medidas para conter a disseminação do vírus, uma vez que as Unidades de Terapia Intensiva (UTI) da capital e de algumas cidades estão com 90% ou mais de lotação e nem Equipamentos De Proteção Individual (EPIs), os profissionais da saúde têm para atuar na linha de frente do combate ao novo coronavírus (Covid-19).

Todos lembram como os países da Europa reagiram de forma diferente a medida que o contágio aumentava.  Com medo de uma segunda onda de contaminações pela Covid-19, o Reino Unido, por exemplo, tem se mostrado ainda mais cauteloso. O pico da doença foi registrado em 10 de abril e o governo anunciou que estes serviços, que não são considerados essenciais, só poderão reabrir em 15 de junho.

E mesmo assim, para colocar qualquer plano de reabertura econômica estes países têm seguido a risco os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) para permitir e orientar estes processos para o pós quarentena. [veja abaixo a lista de critérios]

No Brasil, se dependesse só do governo Bolsonaro todas as atividades econômicas já teriam voltado, apesar do número de mortes por Covid-19 ter ultrapassado a marca de 25 mil pessoas.

E nesta quinta-feira (27), quando especialistas e grande parte da população de São Paulo esperavam o anuncio de bloqueio total (lockdown) em todo Estado, devido a curva ascendente de novos casos e mortes pela doença, Doria, anunciou um plano de flexibilização do isolamento, segundo ele, “responsável”.

“Um risco absurdo e absolutamente criminoso, que só atende o mercado e em 15 dias, período fundamental para sabermos o resultado de qualquer ação de combate à doença, teremos um aumento expressivo de casos e mortes pela Covid-19”, afirmou o médico sanitarista, professor universitário, vereador e presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de Campinas, Pedro Tourinho.

Segundo ele, é preciso sim que os estados e municípios tenham planos de flexibilização do isolamento, mas em primeiro lugar têm que ter critérios rígidos, como orienta a OMS. Além disso, aponta ele, o sistema de saúde está próximo aos seus limites e o razoável a ser feito hoje seria intensificar e fiscalizar rigorosamente a adesão ao isolamento.

“Seguir fortalecendo nossa capacidade de testagem, rastreamento e ampliação de leitos. Ao mesmo tempo, medidas de apoio econômico e social deveriam ser muito melhor instituídas. Mas ao que tudo indica não é isso que vai acontecer. Temo imensamente pelas nossas vidas nesse momento”, afirma.

O médico infectologista do Hospital das Clinicas em Ribeirão Preto, Ulisses Strogoff de Matos, vai na mesma tinha de Tourinho. Para ele, a medida tem como objetivo fazer o comércio funcionar e melhorar a economia, assim como sempre defendeu Bolsonaro e que Doria criticou muito.

“É no mínimo incoerente, porque São Paulo continua sendo um dos maiores estados com o maior número de casos e mortes”.

O médico disse que além de não ter controle da doença para se flexibilizar o isolamento, o Estado de São Paulo, assim como todo país, não tem testagem ampla e nem rastreamento dos infectados, algumas das orientações da OMS.

“O vírus está circulando mais, o isolamento segue diminuindo, não tem testagem, não tem rastreamento dos infectados para se diminuir a proliferação, o governo está trabalhando no escuro e ainda acha que vamos conseguir controlar a doença assim? Na verdade, este é o pior momento para qualquer flexibilização”, afirma.

Classificação por regiões

Tourinho disse que Doria não mostrou nenhum dado concreto para tomar esta decisão e que o segundo erro grotesco do governador sobre o plano foi a classificação das regiões do estado em diferentes níveis de vigilância, com a possibilidade da reabertura imediata de vários setores em Campinas, na capital e em outras regiões do estado.

divulgação

Em Campinas, onde vive Tourinho e que vem enfrentando uma quantidade crescente de novos casos de Covid-19 e de internações hospitalares pela doença nas últimas duas semanas, segundo o plano de Doria, a partir de 1º de junho atividades imobiliárias, concessionárias, escritórios, comércio e shoppings centers poderão ser reabertos com restrições.

Para o médico sanitarista, abrir o shopping mesmo que com restrição, numa cidade que aumenta o número de casos e mortes é um problemão e pode potencializar ainda mais esta proliferação do vírus. Segundo ele, o shopping é um espaço que circula milhares de pessoas e são os grandes empregadores das cidades. Além disso, aponta ele, vai aumentar o uso de transporte público, a aglomeração nas entradas e saídas porque normalmente recebe um público de 3 mil pessoas.

“Com a restrição esse número pode diminuir para mil pessoas circulando em um lugar fechado e continua sendo arriscado demais, porque imagine a pessoa dentro da loja vendo roupa e tosse e espirra. Este aerossol fica por algumas horas no ambiente o que pode levar muitas pessoas a serem contaminadas”, afirma Tourinho, que complementa: “O governo do Estado sabe que não existe nenhuma condição de flexibilizar e muito menos de ir para fase seguinte”.

Situação dos trabalhadores e reação do movimento sindical

A secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, Juneia Batista, que é servidora municipal de SP, complementou a critica a reabertura do comércio lembrando das condições de trabalho dos que estão na linha de frente no combate ao coronavírus.

Segundo ela, enfermeiros, médicos, assistentes sociais, os trabalhadores e trabalhadoras do serviço funerários seguem sem condições adequadas para conseguir sobreviver e também para controlar a proliferação da Covid-19.

“É uma canalhice o que estão fazendo com estas pessoas que estão salvando vidas e muitos estão morrendo, sem ter EPI, com excesso de jornada e o governador junto com o prefeito, Bruno Covas, fazendo campanha para eleição deste ano, atendendo mercado e até se conciliando com Bolsonaro na última reunião que teve com governadores, eles não dão ponto sem nós”, disse Juneia.

Para o diretor executivo da CUT e diretor de Imprensa e Comunicação do Sindicato dos Servidores Públicos de SP (Sindsep), João Batista Gomes, conhecido como Joãozinho, Juneia tem razão. “Não há motivos que justifiquem o fim deste isolamento se não for a paz selada com Bolsonaro e a pressão exercida por grandes empresários”.

Segundo ele, os sindicatos das categorias, que estão com maiores riscos desde o início da pandemia e que agora podem piorar com a flexibilização, não vão permitir que este plano seja colocado em prática.  Para Joãozinho o governo deve dar condições para o povo se manter em isolamento e não levar o povo a rua para aumentar a infecção.

“Penso que devemos organizar atividades públicas, garantindo a segurança de todos e o distanciamento social, para protestar contra essa flexibilização. No caso do Sindsep, estamos toda semana fazendo atividades nos hospitais, na assistência social e no serviço funerário alertando a necessidade de proteção de trabalhadores e da população. E agora exigindo a realização de testes aos profissionais que estão na linha de frente de combate ao Covid-19”.

Questão de classe

Tourinho também afirma que a flexibilização foi uma concessão aos setores econômicos e é questão de classe. Segundo ele, na classe média alta a taxa de isolamento conseguiu se manter maior e os leitos privados estão mais vazios.

“Pelo que parece não há preocupação com o mais pobre, porque este setor não consegue manter o isolamento porque não tem uma ajuda do Estado eficiente para ficar em casa e ainda a taxa de ocupação da UTI em hospitais públicos está em 95% em Campinas e os casos só aumentam. Teremos um colapso na cidade pelos próximos 15 dias”, afirma o médico.

Em Ribeirão Preto, que também já começa na fase 2 também na próxima segunda-feira (1), o número de casos e mortes por Covid-19 também tem aumentado nas últimas duas semanas.

No Hospital das Clinicas onde ele trabalha a taxa de ocupação dos leitos de UTI tem aumentado. “Nesta semana tivemos um número maior de casos e mortes por Covid-19 e tivemos que aumentar o espaço no HC, porque o que tínhamos não está sendo suficiente. Com a flexibilização isso vai piorar”, afirmou.

Confusão entre flexibilização e afrouxamento das regras de isolamento

Ulisses contou que além de todos os problemas do isolamento em sim, outro fator preocupa. Segundo ele, a população pode confundir a flexibilização com afrouxamento das regras de isolamento e piorar ainda mais o nível de contaminação.

Ele conta que teve uma cidade, que ele não citou qual, que o prefeito anunciou a flexibilização e o povo fez churrasco e deste churrasco mais três saíram infectados por covid-19.

“As pessoas precisam entender que vida normal e relaxamento só poderá acontecer quando houver vacina. Até lá, não dá para relaxar. Precisamos manter distância, ambiente arejado, sem aglomeração. E em relação aos locais de trabalho, o lugar precisa ser ventilado e o uso do refeitório e a saída e entrada devem ser controlados”, explica o médico.

Cuidados necessários

Segundo Ulisses, o coronavírus adora um lugar fechado, em 10 minutos as pessoas podem ser contaminadas. Se tossir e espirrar então, conta ele, muito mais pessoas podem ser contaminadas e uma reunião em locais pequenos e fechados podem levar a empresa toda a ser contaminada.

“As empresas, industrias e comércios precisam ser muito bem adaptados para conter a proliferação do vírus e ainda usar máscaras, higienizar as mãos, manter distância, evitar aglomerações, o transporte público deve ser reorganizado. Não tem outro jeito”, afirma.

Bloqueio total

Tourinho também disse que de acordo com o estado epidemiológico de São Paulo várias cidades deveriam decretar Lockdown, o que seria o mais correto e que salvaria milhares de vida.

“Vão matar desnecessariamente milhares de pessoas e estas mortes poderiam ser evitadas”, ressalta.

Informação ajuda, mas também pode piorar

Além da testagem ampla, segundo Ulisses, é fundamental que se tenha informação e que esta informação deve chegar ao maior número de pessoas possíveis.

Ele conta que muitas pessoas não sabem ainda quais são os sintomas, o que deve fazer caso os tenha e ainda muito  menos sobre os dias ideais para o isolamento.

Segundo o médico, não tem tratamento ainda, mas tem suporte para diminuir as mortes e muitas pessoas esperam chegar na fase final da doença para procurar o médico porque não tem informação e é por isso que tem muitos jovens morrendo no país.

Ulisses conta ainda que a desinformação de Bolsonaro e as fake news têm atrapalhado muito a eficiência no controle de mortes e casos da doença.

“Eu já vi num grupo de médicos, uma médica Bolsonarista com marido médico dizendo que era para se tratar com cloroquina e isso dá uma falsa insegurança nas pessoas. Parece que o país está passando por uma dissociação cognitiva e muitos não estão conseguindo assimilar as coisas. Eu vejo com muita preocupação está flexibilização em vários sentidos”, ressalta o médico de Ribeirão Preto.

Critérios da OMS para a flexibilização do isolamento

A Organização Mundial da Saúde é clara na definição dos critérios que podem permitir e orientar comunidades em processos de reabertura pós quarentena:

  1. A transmissão da doença deve estar sob controle, com queda sustentada por um período razoável de tempo do número de novos casos.
  2. O sistema de saúde deve ser capaz de detectar, testar, isolar e tratar todos os casos e de rastrear todos os contatos de casos positivos.
  3. O risco em lugares vulneráveis, como instituições de longa permanência, deve ser minimizado.
  4. Escolas, ambientes de trabalho e outros serviços essenciais devem ter medidas preventivas bem estabelecidas.
  5. O risco de importação de novos casos deve estar sob controle.
  6. As comunidades devem estar plenamente educadas, engajadas e fortalecidas pra poderem viver um novo padrão de normalidade, com a adoção rigorosa de medidas de proteção.