Escrito por: Vitor Nuzzi, da RBA
Ex-dirigentes da Fundação Palmares lamentam ofensiva contra livros e apontam tentativa de esvaziamento da entidade em suas funções
Excluídos do acervo por “teor marxista”, “perversão” e outras inadequações apontadas pela atual gestão, livros da Fundação Palmares são mais um capítulo no processo de descaracterização da entidade, segundo dois de seus ex-presidentes. Para eles, além de certo obscurantismo, a medida ajuda a desviar a atenção para um incessante processo de “desmonte” da instituição, criada em 1988 (Lei 7.668).
Relatório divulgado pela Palmares chega a listar 300 títulos que “comprovariam” o “desvio da missão institucional” da fundação. Nesse índex, há de tudo. Desde obras de autores de fato marxistas, a livros de escritores insuspeitos, como Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares e até o folclorista Câmara Cascudo. Em alguns casos, a direção do instituto alega má conservação, mas os autores citados estão na lista do “desvio institucional”. Que vai de Marquês de Sade a um best-seller adolescente dos anos 1980, Porcos com Asas.
Depois da triagem, os livros foram separados em 201 caixas, em três categorias: A (“Temática negra, militante e não militante”), B (“Temática não negra, militante e não militante”) e C (“Temática não negra, francamente marxista”). Sobrou até para o historiador inglês Eric Hobsbawn, acusado de “bandidolatria”, por causa de seu livro Bandidos, um ensaio de viés sociológico em que se debruça sobre personagens como Lampião. A esquerda não foi o único alvo da mira – ou ira. Antipetista de primeira ordem, o professor Marco Antonio Villa também entrou na lista, com uma obra sobre Pancho Villa e a revolução mexicana.
Presidente da Palmares de 2007 a 2010, hoje à frente da Fundação Pedro Calmon (vinculada à Secretaria de Cultura da Bahia), Zulu Araújo cita o conhecimento como “fundamental e estratégico” para o desenvolvimento humano. E lembra que a Constituição definiu a liberdade de expressão como bem coletivo.
“Do mesmo modo que definiu que a censura estava abolida no Brasil desde então, qualquer negro ou negra, indígena, branco ou branca, mestiço ou mestiça, tem o direito constitucional de ter acesso ao livro, à leitura e à escrita seja de que origem for”, afirma. “Se a Constituição brasileira assegura o direito de acesso ao livro e à leitura, qualquer atitude que dificulte o acesso é inconstitucional. Passa a ser uma atitude criminosa, na medida em que está desrespeitando a Constituição”, reage. “Não há nenhum livro na Palmares que não esteja em qualquer biblioteca do país ou do mundo.”
Arquiteto e produtor cultural, ele destaca outra consequência que considera grave nessa questão. “O conceito de marxismo cultural (usado pela atual gestão) é originário dos supremacistas brancos de extrema direita no Estados Unidos”, afirma.
Ao lembrar que a Palmares tem como objetivo “preservar, valorizar e difundir as manifestações de origem negra, no sentido de promover a inclusão do negro na sociedade brasileira”, Zulu Araújo observa que, para isso, e preciso garantir acesso à informação. “Qualquer livro, qualquer publicação, é de interesse da comunidade negra. Essa atitude revela intolerância, em grande medida uma estupidez e uma tentativa de censurar o conhecimento.” Mas, mesmo lamentando a postura, ele acredita que o episódio dos livros faça parte de uma estratégia que visa distrar a população do essencial. No caso, “a desconstrução da Fundação Palmares enquanto organização de promoção da igualdade racial” no Brasil”.
“É como eu acreditar em fake news, em kit gay. Isso é parte do diversionismo que há no governo federal, A Palmares é uma instituição do Estado brasileiro, não do governo.” Assim, analisa, como o atual governo não consegue, por exemplo, aprovar emenda que acabe com a fundação, adota o caminho de “desconstruir, desmoralizar, desqualificar”.
“Acho que a gente tem de fazer uma rede de proteção e defesa à Fundação Palmares”, diz o ex-presidente. Ele chama a atenção para uma ofensiva que não se limita à instituição. “O que eu defendo é que a Palmares cumpra com a sua missão, o que está no seu regimento. O estatuto e o regimento são sólidos. O estrago em um quilombo é inimaginável.”
Primeiro presidente da Palmares, cargo que ocupou duas vezes, o advogado Carlos Alves Moura lamenta o que vem ocorrendo na instituição que ajudou a construir. “O processo de criação da Palmares levou mais de 20 anos, porque nós começamos a reivindicar com maior rigidez na década de 70. Foi a concretização de um sonho do movimento negro, na perspectiva de se ter no organograma do Estado brasileiro um órgão destinado a preservação da cultura afro-brasileira”, lembra.
Mas não foi um esforço isolado, acrescenta. “Tivemos aliados brancos, indígenas, de todos os matizes. Nossos antepassados quando aqui chegaram não se auto-segregaram, eles foram segregados. Mas mesmo assim transmitiram cultura ao branco europeu, ao branco asiático, aos não negros de outras etnias. De modo que a biblioteca, como toda biblioteca, tem que ser depositário das expressões de todos”, argumenta. “Se tem autores de outros pensamentos, isso é cultura, é liberdade, é oxigênio. Não vejo nenhum impedimento, legal, moral, cívico, ético.”
Ele também identifica autoritarismo na restrição a grande parte do acervo. “Conheço todos os presidentes da Palmares, vivos e não vivos, e posso atestar que tudo aquilo que está lá está dentro das normas e das regras que regem o comportamento político, social e democrático, e sobretudo na perspectiva da superação do preconceito, do racismo e das desigualdades.”
Assim, Carlos Moura lamenta o que chama de “limpa nos livros”, o que não deveria acontecer em nenhuma entidade. “Biblioteca é uma coisa sagrada, representa também a essência de homens e mulheres que pensam, que valorizam os outros e se valorizam. Biblioteca é comunicação, significa alargar os horizontes.” E constata que essa “manifestação de ignorância, de desconhecimento, de desconsideração da cultura de um modo geral”, foi obra, “infelizmente, de um braço negro”.
Além da questão da biblioteca, o advogado, assim como Zulu Araújo, mostra preocupação com a administração de empreendimentos em comunidades remanescentes dos quilombos. “O braço dessa fiscalização era a Fundação Cultural Palmares”, observa, citando uma das atribuições legais da instituição. Moura chama ainda a atenção para outra iniciativa recente da atual gestão, de alterar a logomarca da Palmares. “Não há nem respeito à religião dos nossos antepassados.”
O atual presidente propôs um concurso para alterar o logotipo, que é um machado de Xangô. A alegação é de que o Estado brasileiro é laico. Nesse caso, é preciso avisar o presidente da República, que incluiu Deus até no slogan da administração e já afirmou que seu governo é “cristão”. Além da permanente aliança com parte dos evangélicos.
“Não nos derrotarão”, diz Carlos Moura, ex-secretário-executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e integrante do Observatório Político da entidade. “Temos consciência do dever cumprido e do dever a cumprir.”
Movimentos recorreram à Justiça contra a medida da Palmares. Decisão provisória impediu a fundação de se desfazer dos livros. A entidade já avisou que irá recorrer. O juiz Erik Navarro Wolkart, da 2ª Vara Federal de São Gonçalo (RJ), sustentou que “a multiplicidade de pensamentos, ideias e opiniões, ainda que diametralmente opostas, serve para a construção de uma sociedade reflexiva, plural, questionadora e inclusiva, cabendo a cada leitor examinar tudo e reter o que entender pertinente, após uma análise crítica a respeito”.