Escrito por: Vitor Nuzzi, da RBA
Greve de 1978 na Scania foi marco nas relações de trabalho e na política brasileira. “Um pouco de radicalização no século 21 fará bem à humanidade”, defende Lula
A greve de 1978 na Scania, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, é considerada marco histórico não apenas do movimento operário, mas da mobilização política contra a ditadura. Um de seus líderes, o ex-prefeito de Diadema Gilson Menezes, morreu em fevereiro. No dia em que se completaram 42 anos do movimento, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu personagens do período e disse que o momento atual exige mais ousadia, como em 1978. “A verdade nua e crua é que um pouco de radicalização no século 21 vai fazer bem para a humanidade e para todos nós”, afirmou ao final da live, na noite desta terça (12).
Lula era o presidente do então Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (atual ABC). Em 1978, havia sido reeleito. Se naquela época os “inimigos” eram bem identificáveis – o governo, os patrões –, agora nem sempre se sabe quem é o dono da empresa, às vezes controlada por fundos. Para ele, não é possível sair da crise da pandemia com o mesmo discurso. “É preciso rediscutir a organização da sociedade, o papel do Estado. Temos que ter orgulho de defender um Estado forte, democrático.”
O inimigo a ser vencido são os que tentam retirar do Estado a capacidade de garantir as políticas públicas necessárias para reduzir injustiças e desigualdades, avalia o ex-presidente. Durante a live, Lula afirmou que conquistar a Presidência da República não significa ganhar o poder. Ele citou também as mudanças nas relações de trabalho: “Não adianta dizer que o cara que tem Uber é um pequeno empresário. Ele é trabalhador sem proteção nenhuma. Entregador da pizza é um cara que se cai da bicicleta e quebra a perna não tem nenhum direito”.
Movimento social
Ao lado do ex-presidente, participaram do debate na noite desta terça (12), com uma hora e meia de duração, os ex-metalúrgicos Augusto Portugal, que era funcionário da Scania, e Paulo Okamotto, que trabalhava na Brastemp e hoje dirige o Instituto Lula. Além dele, estavam a socióloga Annez Andraus, ex-diretora técnica do Dieese, e o atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Wagner Santana, o Wagnão. Outro ex-metalúrgico, Djalma Bom, chegou a aparecer na tela, mas por motivos técnicos não pôde participar.
A greve de 1978 foi deflagrada em uma sexta-feira, basicamente por reajuste salarial e melhores condições de trabalho. Era uma ousadia em um tempo praticamente sem direito de greve, regido pela Lei 4.330, de 1964. Mas havia recebido estímulo adicional no ano anterior, quando se descobriu ter havido manipulação dos índices oficiais de inflação em 1973, motivando uma campanha que se tornou famosa, por 34,1% de reposição salarial.
A isso se somam os movimentos que voltavam a surgir, como dos estudantes e contra a carestia, lembra Augusto Portugal, à época com 26 anos, há dois na Scania. “Era um momento em que a gente já estava com sangue nos olhos”, afirmou, lembrando que os metalúrgicos já haviam tido paralisações parciais, em março, na Ford e na Mercedes-Benz. “Começamos a organizar a greve completamente na clandestinidade, com boletins debaixo do uniforme, mobilização nos banheiros”, recorda.
Explosão de alegria
A ideia de parar na sexta, em vez de segunda-feira, foi um pouco por falta de confiança, revela o ex-metalúrgico. “A diretoria (do sindicato) nem acreditou. Ninguém acreditou muito. Claro, foi uma explosão de alegria. Era a certeza de que temos uma força, vamos fazer valer essa força. Aí começou um ciclo de greves em todo o Brasil. E a partir daí se fez a história.”
Para Annez, a greve de 1978 na Scania foi um dos “pontos altos” do movimento sindical e do próprio Dieese, que procurava identificar entidades mais comprometidas com certa modernidade nas relações de trabalho. “Significou esperança e muito medo. Lembro que éramos muito jovens, São Bernardo representava um sindicato moderno. Essa greve de 1978 surge num momento em que tínhamos um arrocho salarial muito violento e normas muito rígidas, lei de greve, toda uma legislação.”
A ex-diretora do Dieese observa que o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo também entrou na Justiça por causa da questão da inflação de 1973, descoberta a partir de relatório do Banco Mundial. “Isso vai para a imprensa e começa a ter mutia efervescência.” Annez lembra ainda de tentativas reprimidas pela ditadura, como as greves dos metalúrgicos de Osasco (SP) e Contagem (MG) em 1968, além da formação do chamado Movimento Intersindical Antiarrocho, o MIA.
‘A gente viu que era possível’
Já Okamotto tinha 22 anos em 1978. Estava havia pouco tempo na Brastemp, cuja fábrica ficava a 200 metros do sindicato. “Naquele dia, quando teve a greve na Scania, a rádio peão começou a funcionar e nós ficamos apavorados”, recorda, revelando o receio de uma intervenção militar. “Aos poucos, a gente foi se acalmando, procurando saber notícias. Mas foi um motivo de alegria, porque a gente viu que era possível. O mundo não acaba, o país não fecha. Foi uma sensação de poder.”
Ele destaca o papel dos movimentos sociais, citando a Igreja, entre outros. E avalia que, não fosse a pressão sindical daquele período, a ditadura demoraria mais a ceder.
Wagnão tinha menos idade ainda: apenas 16 anos. Mas ouvia histórias da fábrica porque seu pai trabalhava na Ford. Conversas em voz baixa, porque a ditadura causava medo. “Mesmo nas casas, as pessoas tinham certo constrangimento de conversar sobre qualquer coisa que parecesse uma transgressão. Também não aparecia na mídia.”
Reconstrução da democracia
Em 1984, ele passou a fazer parte da categoria, entrando na Volkswagen e conhecendo muitos participantes daqueles movimentos que se tornaram famosos, entre o final dos anos 1970 e começo dos 1980. “Hoje a gente consegue perceber o quanto aquilo foi importante, o quanto mudou o Brasil”, diz Wagnão, usando a imagem de um jogo de futebol. Para ele, aquele momento representou o “pontapé inicial de um processo de reconstrução da democracia”.
Segundo Lula, o sindicato já era avançado para a época, com uma característica que ele considera fundamental: a presença nas portas de fábrica. “Em função do golpe militar, o movimento sindical tinha refluído muito. A inovação que nós fizemos era que o sindicato não era o prédio, eram os trabalhadores no local de trabalho. A gente passou a ir na porta de fábrica de manhã, de tarde, de noite. E isso foi criando uma confiança”, atestou o ex-presidente, que se filiou à entidade em setembro de 1968, apenas três meses antes do AI-5.
O dia 12 de maio de 1978 foi duplamente marcante para ele, que contou ter recebido, às 8 da manhã, duas notícias quase ao mesmo tempo: a greve na Scania e a morte de seu pai, em Santos, ocorrida um mês antes. Aristides havia sido enterrado como indigente. Lembra ainda das condições do período, a rigorosa lei de greve, a ditadura e o então delegado regional do Trabalho, Aluísio Simões de Campos, que o ex-presidente chama de “facínora”.
‘Roeu a corda’
Mesmo assim, houve negociação com a Scania, que acabou apresentando um acordo. Lula lembra que assembleia aprovou a proposta. Mas, segundo ele e Augusto, a Anfavea, associação das montadoras, pressionou a Scania, que “roeu a corda”, como dizem os metalúrgicos. “Aquela greve de 1978 foi o momento em que a alegria venceu o medo. Quando a gente foi pra assembleia na segunda, tínhamos uma proposta muito boa.” No primeiro momento, ele lembra que os trabalhadores avaliaram que o sindicato havia “traído” a categoria, um clima que foi mudando aos poucos. No final, houve acordo geral para o setor. E também muitas demissões nas fábricas, inclusive na Scania – o próprio Augusto foi um dos dispensados.
Lula conta que chegou a fazer um momento de oposição para mudar a direção do Dieese, que para ele era controlado pelos conservadores do movimento sindical. “Olívio Dutra votou contra mim”, diz, referindo-se ao então presidente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre. Estariam juntos dois anos depois, em fevereiro de 1980, na criação do PT, e em agosto de 1981, quando foi fundada a CUT.
Segundo Annez, a área técnica do Dieese “apostava muito na chance dos setores modernos da economia”, citando o sindicato de São Bernardo. Para ele, o que aconteceu a partir da greve de 1978 foi um “renascimento” do sindicalismo, com a presença dos dirigentes na porta de fábrica “na marra”.
Novos desafios
Wagnão acredita viver um momento “tão intenso” como aquele, “por conta de um inimigo invisível potencializado por um desgoverno”, o que ainda poderá causar enormes perdas aos trabalhadores. Na noite em que se completavam 61 anos da fundação do sindicato, o presidente da entidade apontava ainda uma questão de identidade profissional, operária.
“Hoje eu percebo que eles tinham, sem saber por quê, sem a teoria de como perceber isso, eles vivam enquanto classe, enquanto trabalhadores. Agora é uma miscelânea em que as pessoas não conseguem se identificar. Um vira doutor e se acha diferente, só que é um peão de fábrica como você. Naquele instante eu acho que era mais fácil cristalizar isso, estabelecer a diferença e com isso juntar mais gente.”
Houve significativa diminuição do tamanho de base, lembra. Mas, ao mesmo tempo, não é necessário fazer tantas greves como naquele período, justamente pelos avanços conquistados. Antes, compara, era preciso fazer um mês de greve apenas para entregar a pauta de reivindicações. A mobilização pela criação da CUT, as primeiras comissões de fábrica, a fundação do PT, o movimento das Diretas Já derivam dessa ousadia, avalia – acrescentando que isso é novamente necessário. “A crise econômica que vai suceder a crise sanitária vai exigir muito do movimento sindical”, afirma.
Arrombando a porta da transição
Para Augusto, ainda há um déficit democrático no Brasil. Naquele momento histórico, a ditadura tentava fazer um processo de transição “lenta, gradual e segura”, uma abertura sob controle, nos gabinetes. Mas os movimentos sociais mudaram a história. “Todo mundo arrombou a porta da transição”, define. “Infelizmente essa transição não foi completa. A gente conquistou uma Constituição importante, tivemos governos importantes. Hoje precisamos à luz da história que a gente viveu, e vendo todas as conquistas que estão sendo atacadas, a negação de direitos, que culminou num govern assassino, mostra que avançamos muito, mas não foi suficiente. A democracia que precisamos e desejamos ainda precisa avançar mais.”
Lula voltou a defender emissão de “dinheiro novo” para combater a crise atual. “A Casa da Moeda tem que voltar a funcionar, aquelas máquinas estão enferrujadas”, afirma.
Há ainda a questão política, finaliza Lula, para quem a mentalidade do Brasil segue sendo escravagista e as teses do chamado Consenso de Washington ainda continuam sendo impostas. Esta é uma era de “destruição”, definiu o ex-presidente.
“Depois do coronavírus não podemos ficar no mesmo discurso. Somente o Estado pode resolver isso”, afirmou, ao citar a crise financeira deflagrada em 2008 e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) criado em seu governo para estimular a economia. “A renda mínima do Suplicy que parecia uma fantasia 10 anos atrás virou uma realidade.” Agora, aponta, esse Estado será um “inimigo” a ser derrotado, até que volte a definir políticas de saúde, educação e emprego.