Escrito por: CUT-RS
Mobilização garantiu a posse do vice-presidente João Goulart em 1961, após renúncia de Jânio Quadros
O Movimento da Legalidade, um dos principais acontecimentos políticos que sacudiram o Brasil após a renúncia do presidente Jânio Quadros, completa 60 anos neste final de agosto. A mobilização em defesa da Constituição e da democracia impediu o golpe militar, que estava sendo tramado, e garantiu a posse do vice-presidente João Goulart.
A tensão provocada pela recusa dos ministros militares em aceitar a investida de Jango na presidência da República em 1961 quase levou o país a uma guerra civil. O levante iniciou no Rio Grande do Sul e foi liderado pelo governador Leonel Brizola, que contou com a força da Brigada Militar e o apoio de soldados e oficiais nacionalistas das Forças Armadas e de alguns setores da imprensa para deter o golpe. A resistência durou 14 dias.
Um dos fatores importantes para o sucesso dessa mobilização popular e armada no Rio Grande do Sul, que passou a se chamar também Campanha da Legalidade, foi a posição dúbia do 3º Exército (atual Comando Militar do Sul), comandado pelo general José Machado Lopes, que se recusou a cumprir as ordens do alto comando em Brasília para frear os movimentos de Brizola. Queria evitar que um provável confronto levasse a um desfecho trágico, com mortos e feridos.
Depois de ficar os três primeiros dias numa posição contemplativa, permitindo que Brizola agisse livremente, Machado Lopes acabou se dirigindo até o Palácio Piratini no final da manhã de 28 de agosto para prestar apoio ao movimento do governador, com o argumento de que a Constituição precisava ser respeitada. Sua postura nunca foi assimilada pelo Exército, uma vez que o general havia quebrado a hierarquia ao descumprir uma ordem do ministro da Guerra, Odílio Denys.
O outro fator decisivo foi a iniciativa de Brizola de mandar soldados da Brigada Militar à Ilha da Pintada, em Porto Alegre para guarnecer a torre de transmissão da rádio Guaíba e fazer a intervenção na sede da emissora, na Rua Caldas Júnior, transferindo os equipamentos do estúdio para os porões do palácio, onde seria criada a Rádio da Legalidade.
Das emissoras de grande alcance, a Guaíba era a única que havia se recusado a divulgar o manifesto do marechal Henrique Teixeira Lott (candidato à Presidência derrotado por Jânio na eleição de 1960) denunciando a tentativa de golpe militar para impedir a posse de Jango.
As rádios Gaúcha e Farroupilha, que haviam lido o documento, foram tiradas do ar pelo general Antônio Muricy, chefe do Estado-Maior do 3º Exército, militar contrário ao posicionamento de Machado Lopes e alinhado ao ministro da Guerra.
Em questão de horas, a Rádio da Legalidade virou a Rede da Legalidade, com 104 emissoras gaúchas, catarinenses e paranaenses que projetaram o movimento de resistência para outras regiões do país. Funcionou 24 horas, durante 12 dias. A primeira transmissão ocorreu às 15 horas do dia 27 de agosto, com um discurso inflamado e com dedo em riste do governador.
Arma admirada por estrategistas como Winston Churchill e Charles de Gaulle, o rádio deu a Brizola a superioridade sobre os adversários num terreno decisivo: o coração dos gaúchos. Durante a crise de 1961, o governador uniu o Estado por meio dos microfones com mensagens políticas dirigidas à população e ao Exército.
Foram 13 dias em que Brizola transformou o Palácio Piratini em QG de resistência. A Praça da Matriz virou arena política, reunindo multidões. Os municípios do Interior organizaram suas trincheiras e caravanas rumo a Porto Alegre.
"Ninguém dará o golpe por telefone. O Rio Grande não aceita o golpe e a ele não se submeterá!" A frase é uma das centenas que a imprensa reproduziu das declarações de Brizola no decorrer daqueles dias finais de agosto de 1961, após Jânio Quadros recusar por telefone seu convite para governar, provisoriamente, a partir da capital gaúcha.
Seu manifesto mais famoso foi o de despedida. Jânio se dizia "esmagado" por "forças terríveis" e pelas "ambições de grupos dirigidos, inclusive do exterior, que o impediram de exercer o poder em favor dos interesses nacionais. O governo Jânio-Jango, apelidado de Jan-Jan, durou apenas sete meses.
Em Porto Alegre, Brizola percebeu que algo muito grave havia ocorrido quando na metade da manhã de sexta-feira, dia 25 de agosto, militares retiraram-se no meio dos desfiles pelo Dia do Soldado, no Parque Farroupilha. Logo, o jornalista Hamilton Chaves, seu assessor de imprensa, informou sobre a renúncia.
Jango estava em Cingapura, quando foi avisado dos acontecimentos na madrugada do dia 26. Ele presidia uma missão comercial e passara pela China antes de chegar naquele país do sudeste asiático. Informado de que seria preso no instante em que desembarcasse no Brasil, foi orientado a aguardar em Montevidéu.
Enquanto os ministros militares, em Brasília, determinavam a posse, na presidência, do deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara, trabalhistas instalavam o Comitê Popular Pró-Legalidade, no Mata-Borrão, um prédio de madeira na esquina da Borges de Medeiros com a Andrade Neves, que seria usado para alistar voluntários e distribuir armas.
No domingo, o governador consegue publicar nos jornais locais, como matéria paga, dois manifestos – o do marechal Lott, que foi censurado no Rio de Janeiro, e um outro escrito por Hamilton Chaves, retocado por ele, Brizola, ambos repudiando o golpe:
"Na defesa do regime, na defesa da ordem legal e das liberdades públicas, acredito que nós, gaúchos, pelo nosso passado, pelas nossas tradições, saberemos nos inspirar, esquecendo nossas diferenças. O Rio Grande do Sul comparece perante a Federação como uma unidade. O governo do Estado não pactuará com qualquer golpe nas instituições e que venha a acarretar o cerceamento das liberdades públicas".
O jornal Última Hora lançou edição extra, com um editorial na primeira página, sob o título Constituição ou Guerra Civil: "Nem que seja para ser esmagado o Rio Grande do Sul reagirá. Mas não será esmagado porque todo o Brasil está pronto para repelir o golpe".
O cenário era de guerra na sede do governo gaúcho e arredores. Barricadas de sacos de areia e rolos de arame farpado guarnecidos por brigadianos protegiam as entradas e o terraço da sede do governo, já sob ameaça de bombardeio aéreo. A tentativa só foi frustrada porque sargentos da Aeronáutica retiraram peças e furaram os pneus dos aviões na Base Aérea de Canoas.
Enquanto isso, Brizola atrai políticos, religiosos e militares simpáticos ao seu governo e multidões à Praça da Matriz com seus discursos. Às três da madrugada de segunda-feira, 28, o governador ainda dá uma entrevista coletiva, movimentando-se no palácio com uma metralhadora a tiracolo.
Naquela manhã, o comandante do III Exército recebe uma mensagem do ministro da Guerra. Considera que "o governador colocou-se fora da legalidade" e ordena que, se necessário, faça "convergir sobre Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente", e que "empregue a Aeronáutica, realizando inclusive bombardeio".
O governador volta ao microfone: "Atenção, meus patrícios, democratas e independentes, atenção para minhas palavras! Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as escolas! Se alguma estiver aberta, fechem e mandem as crianças para junto de seus pais! Tudo em ordem! Tudo em calma! Com serenidade e frieza! Mas mandem as crianças para casa! Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que cada um deve tomar, de acordo com o que julgar conveniente. Quanto às repartições públicas estaduais, nada há de anormal! Os serviços públicos terão seu início normal e os funcionários devem comparecer como habitualmente, muito embora o Estado tolerará qualquer falta que, porventura, se verificar no dia de hoje. Hoje, nesta minha alocução tenho os fatos mais graves a revelar".
A estas alturas, até o arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, percebendo que a situação se radicalizava, procura o comandante do III Exército para manifestar sua preocupação e se posicionar pela posse de João Goulart.
A reunião de Brizola com o general Machado Lopes aconteceu a portas fechadas no Piratini pouco antes do meio-dia e durou 10 minutos. Brizola relatou mais tarde que os generais do III Exército haviam decidido só aceitar solução para a crise dentro da Constituição. Com uma condição: a Brigada Militar e a Polícia Civil passariam a subordinar-se ao comando do III Exército, ficando Brizola com o comando político.
Em entrevista a Paulo Markun, 40 anos depois, Brizola contou que se levantou, apertou a mão do militar e disse: "General, não esperava outra decisão. O III Exército vai ser reconhecido por toda a nação, está cumprindo um papel histórico". Pouco depois, os dois ergueram os braços na sacada do Palácio Piratini, aplaudidos pela multidão.
Brizola ainda buscou convencer os militares, segundo o artigo publicado nesta semana pelo ex-deputado federal Vivaldo Barbosa no Brasil 247. "Brizola tentou falar com os próprios ministros militares, mas não foi atendido. Tentou outros generais. Conseguiu falar com Costa e Silva, comandante do Exército em Recife, que era gaúcho. Pediu para o General ponderar junto aos Ministros para se cumprir a Constituição. Costa e Silva refutou, que só atenderia as ordens do Ministro. Brizola insistiu, Costa e Silva respondeu ríspido: Governador não me telefone só atendo ao Ministro. Brizola lhe devolveu: “seu General golpista, fdp”, e bateu o telefone".
A crise só terminaria com uma solução conciliatória: a adoção do parlamentarismo como contrapeso ao poder de Jango. Articulada pelo então deputado mineiro Tancredo Neves, a proposta foi aprovada pelo Congresso Nacional com a anuência das Forças Armadas.
Jango desembarcou em solo brasileiro praticamente decidido a aceitar governar o país com poderes limitados. Foi convencido por Tancredo na sua escala em Montevidéu, a última antes de pisar em solo gaúcho.
Quando se encontrou com Brizola, ainda com o Estado mobilizado, Jango ouviu os apelos do cunhado, para que resistisse, pois tinha a Carta Magna ao seu lado. O plano de Brizola era reeditar a Revolução de 30, desta vez seguindo com os militares que estavam ao lado da causa até a capital federal para garantir que João Goulart fosse empossado. O vice-presidente alegou que não queria ser o responsável por uma guerra civil, que inevitavelmente levaria o país ao derramamento de sangue.
O protagonismo no Movimento da Legalidade projetou Brizola nacionalmente. No final de 1962, elegeu-se deputado federal pelo Estado da Guanabara. Participou ativamente da campanha pela volta ao regime presidencialista, plebiscito antecipado em um ano e três meses.
Até que, em 1964, com o golpe militar, foi para o exílio, primeiro no Uruguai, depois nos Estados Unidos. E só retornaria ao Brasil em 1979, após a aprovação da lei da anistia, fixando residência no Rio de Janeiro, onde foi eleito governador por dois mandatos.
A motivação de Leonel Brizola para defender a legalidade constitucional ia além do fato de João Goulart ser seu cunhado. Eles iniciaram a vida política praticamente juntos, em 1945, na ala moça do Partido Trabalhista Brasileiro, e dois anos depois, já dividiam a bancada estadual do PTB na Assembleia Constituinte.
Naturalmente, incorporaram a ideologia trabalhista de Alberto Pasqualini e Getúlio Vargas que, certa vez, previu um futuro promissor para um jovem Brizola, com 20 e poucos anos. "Esse guri vai longe", vaticinou.
"Nunca me senti comprometido com nada que não se conformasse com aqueles valores éticos que marcaram a minha formação. Daí, o meu inconformismo e possivelmente até alguns exageros na minha linguagem e no meu comportamento. Tinha necessidade de acordar, sacudir a opinião pública, que me parecia amortecida, para uma situação social injusta e, naturalmente, inaceitável (…) Assumi, em 1961, uma posição radical em defesa da legalidade e da Constituição (…) Distribuí, inclusive, armas à população, num momento de desespero", declarou Brizola em entrevista ao jornalista Moniz Bandeira, em julho de 1978, no exílio em Nova York.
O menino de família pobre de Carazinho, no interior gaúcho, só não alcançou a presidência do País. Ele disputou as eleições de 1989, ficando em terceiro lugar, e apoiou Lula no segundo turno. Mas deixou um legado de muitas lutas e realizações, que são lembradas na semana do dia 22 de janeiro do próximo ano, no centenário de nascimento do líder trabalhista.
O movimento de 1961 aponta também para a importância da mobilização popular, que aconteceu principalmente no Rio Grande do Sul, uma vez que foi reprimida em vários estados, como no Rio de Janeiro, governado por Carlos Lacerda, apoiador do golpe de 1964 e que depois foi alijado e partiu para o exílio.
A pressão do povo nas ruas impediu o golpe em 1961 e poderá ser decisiva para derrotar o golpismo e a política neoliberal, genocida e entreguista de Bolsonaro.
Marcos Magestein / Arquivo / JC
Fotos: Domínio público e Arquivo Museu Hipólito José da Costa
*com informações do Brasil de Fato, Jornal do Comércio e Zero Hora