Escrito por: Eduardo Maretti, da RBA
Provável futuro ministro da Fazenda de Bolsonaro, Paulo Guedes afirmou que Argentina e Mercosul "não são prioridade". "Não há Mercosul sem o Brasil", diz ex-chanceler
Ainda é prematuro fazer previsões sobre os desdobramentos políticos e diplomáticos da eleição de Jair Bolsonaro no último domingo (28). Se são positivas algumas manifestações de instituições como do Ministério Público Federal e Supremo Tribunal Federal, que, por meio de alguns ministros, tem defendido direitos fundamentais das “minorias”, autonomia universitária e liberdade de expressão, por outro lado a democracia brasileira "foi muito ferida com a prisão do Lula e impeachment da Dilma", além do próprio processo eleitoral. A opinião é do ex-chanceler Celso Amorim.
"Numa situação como essa, qualquer medida que proteja os direitos individuais, liberdade de expressão, os direitos das 'minorias', é positiva. Mas a própria retórica utilizada antes da eleição e durante a vida toda pelo presidente eleito acaba gerando na própria sociedade ações, impulsos muito negativos, muito violentos", diz o ex-ministro. "Vamos ver como ele vai se posicionar em relação a isso com o tempo."
Para Amorim, há motivos para preocupação, por exemplo, nas relações exteriores, área em que mais atua, e defesa. "Não há Mercosul sem o Brasil. É preocupante o que foi dito sobre o Mercosul", diz.
No domingo, o provável futuro ministro da Fazenda de Bolsonaro, Paulo Guedes, afirmou que a Argentina e o Mercosul "não são prioridade" para o próximo governo, o que causou perplexidade nos meios diplomáticos do bloco.
Embora ressalve que no cenário haja muitas especulações, Amorim também acha preocupante a ideia de o Brasil ter "uma relação muito privilegiada com os Estados Unidos na área de defesa", como se anuncia. "Eu não sou contra ter uma relação com os Estados Unidos, mas você não tem que colocar todos os seus ovos numa única cesta, ainda mais numa área como essa."
Até mesmo no governo do general Ernesto Geisel o Brasil mantinha sua independência diplomática. "O Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer o governo do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), que era qualificado de marxista", lembra.
Nos dois primeiros dias pós-eleição, houve manifestações importantes de ministros do STF por direitos fundamentais das “minorias” ou autonomia universitária, por exemplo, mas, por outro lado, ataque a indígenas. Como o senhor avalia esses dois primeiros dias pós-eleição?
Acho que é muito cedo para fazer um balanço, ainda que provisório. Essas questões de defesa da democracia são obviamente importantes. A democracia foi muito ferida com a prisão do Lula e o impeachment da Dilma. Os próprios fatos que ocorreram durante a campanha eleitoral, a utilização “sem precedentes” do WhatsApp – para usar as palavras da presidenta da missão de observadores da OEA para as eleições brasileiras (Laura Chinchilla). Houve vários atentados à democracia, na minha opinião, embora na maior parte das vezes preservando o aspecto formal da legalidade.
Por que formal?
Formal, mas mesmo assim, discutível. Mas houve julgamentos, respeitaram-se os ritos, apesar da maneira como o presidente Lula foi julgado, em que os processos foram muito acelerados.
Mas é importante – no momento em que temos um presidente eleito, que fez as declarações que fez ao longo da vida, e não só na campanha – que haja preocupações com aspectos como esses que você mencionou, a proteção das “minorias”. É positivo que isso ocorra – mas minorias têm que ser entendidas em termos de poder, porque algumas minorias numericamente são maioria.
Claro que gostaríamos que o mesmo espírito tivesse presidido outras decisões no passado. Numa situação como essa, qualquer medida que proteja os direitos individuais, liberdade de expressão, os direitos das “minorias”, é positiva. Por outro lado, a própria retórica utilizada antes da eleição e durante a vida toda pelo presidente eleito acaba gerando na própria sociedade ações, impulsos muito negativos, muito violentos. Vamos ver como ele vai se posicionar em relação a isso com o tempo.
Além dos posicionamentos dos ministros do Supremo, como vê as manifestações dos alunos da USP e da UnB, por exemplo, como se viu ontem (29)?
Acho que temos que esperar. As ações que houve antes, em relação às universidades, inclusive antes da eleição, é uma coisa que lembra a época da ditadura. Proibia-se palestra sobre tal tema, tirava-se faixa etc. Agora há uma proteção judicial. E, como o presidente eleito disse que ia respeitar a Constituição, nós vamos esperar que ele respeite as decisões judiciais nesse aspecto. Isso é positivo, mas num contexto geral de grande apreensão. Eu não quero fazer julgamentos prévios do que vai ocorrer.
O que eu tenho lido sobre política externa, o campo em que trabalhei mais tempo, e indiretamente um pouco sobre política de defesa, eu acho muito preocupante.
O senhor declarou hoje (30) que o Brasil quer fazer um Brexit...
É, mas aí é quase como se a Europa fosse a Inglaterra, porque o Brasil é enorme. Não há Mercosul sem o Brasil. É preocupante o que foi dito sobre o Mercosul. Acho preocupante também a ideia de termos uma relação muito privilegiada com os Estados Unidos na área de defesa, o que ainda é muito especulativo. Eu não sou contra ter uma relação com os Estados Unidos, mas você não tem que colocar todos os seus ovos numa única cesta, ainda mais numa área como essa.
Há a questão de Alcântara e Estados Unidos – coisas que eu li –, e também interesse na área que é o coração de todo o sistema de defesa, que é a área digital. Por ali controla-se tudo. Todo mundo sabe, tem backdoor (recurso usado para acessar um sistema remotamente), e eles poderão controlar, sem precisar deslocar ninguém, todas as nossas decisões sobre defesa.
São coisas mais gerais que a gente, por enquanto, ouve. E a mais chocante, digamos assim, seria a decisão de mudar a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém. Isso é uma coisa que nenhum país faz. Os Estados Unidos, o Trump fez há pouco tempo, mas é uma coisa que nenhum país europeu e ninguém mais fez. Seria um péssimo sinal para os 12 milhões de árabes ou descendentes que vivem no Brasil.
Seria um péssimo sinal também para os países árabes que são grandes clientes, sobretudo em aves, parte do nosso complexo agroindustrial.
Como se relações internacionais não tivessem a ver com economia...
É. E economia tem a ver com a paz. Vamos dar justiça a quem merece, nesse caso. Quando o Sarney e o Alfonsín começaram a aproximação entre Brasil e Argentina, não estavam pensando só em comércio. Eu diria que não estavam nem pensando principalmente no comércio. Estavam pensando em eliminar a rivalidade entre os dois países, em consolidar a democracia, em países recentemente saídos de governos militares.
Tanto que um dos acordos mais importantes, que foi feito com a Argentina, naquela época, foi o acordo de inspeção mútua, na área nuclear. Quando você vê o que veio depois, a tarifa externa comum, também era importante comercialmente. Mas tudo foi feito principalmente com o objetivo de ter uma relação pacífica na região.
Não é significativo que até mesmo o general Geisel reconheceu o governo de Angola na época?
O Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer o governo do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), que era qualificado de marxista, certo ou erradamente. E o Brasil, em pleno governo militar, consciente do interesse nacional naquele momento e no futuro, não só na venda de serviços, mas também na questão do petróleo. Angola foi um importante fornecedor de petróleo para o Brasil – continua a ser.
É importante essa visão de que a África é muito ligada ao Brasil, pelo sangue, pela cultura, e pelo oceano Atlântico. E o Geisel teve essa visão geopolítica, e, para surpresa de muita gente, na época (1975) ele determinou o reconhecimento do MPLA, antes mesmo até de outros países africanos e dos que eram aliados da luta deles pela independência.
Ele (o futuro governo), no mínimo, dá menos importância à África. A expressão não é minha, ela foi usada pelo vice-presidente eleito (Hamilton Mourão). É um desprezo que nos preocupa.