Jornada abusiva de trabalho destrói vida social e familiar de trabalhadores
Justiça condena empresa por dano existencial a trabalhador. Motivo: jornada abusiva afetou sua estrutura familiar. Para psicanalista, exploração e excesso de trabalho causam sérios problemas psicológicos
Publicado: 18 Julho, 2019 - 12h02 | Última modificação: 18 Julho, 2019 - 13h23
Escrito por: Andre Accarini
Mais de 16 horas de viagem por dia dirigindo um caminhão do Rio Grande do Sul a São Paulo, Goiânia e Minas Gerais. Essa era a vida de um motorista que teve seus direitos reconhecidos pela Justiça após acionar a empresa para a qual trabalhava.
A 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), no Rio Grande do Sul, julgou o caso e condenou a empresa por ‘dano existencial’ ao trabalhador que, por causa da jornada extensiva, foi privado do convívio familiar, do direito ao lazer e à instrução.
O caminhoneiro conseguiu comprovar, ainda, que não recebia horas extras, que tinha de preencher a folha de ponto com horas a menos por ordem da empresa e tinha folga somente a cada 12 dias. Os tacógrafos (discos que registram as atividades do veículo, instalados dentro dos velocímetros) foram requeridos e comprovaram o que o trabalhador dizia.
Por isso, além de cobrar horas extras não pagas, o motorista pediu uma indenização por danos morais causados pelo excesso de trabalho.
O desembargador Raul Zoratto Sanvicente afirmou ao portal Conjur que a prática reiterada de obrigar empregados ao cumprimento de jornadas de trabalho tão excessivas não deve gerar apenas o pagamento de horas extras, o que restringe o problema à uma visão monetarista. Para ele, isso é “inadmissível em se tratando de direitos sociais".
O psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Cristian Dunker explica que o conceito de “dano existencial” usado nesse caso, foi correto porque as consequências são severas para a vida do trabalhador, que fica vulnerável a quadros de depressão e ansiedade. Esses casos, complementa, são comuns e podem se tornar graves. “O trabalhador é exposto a uma situação de tensão corrosiva a longo prazo”.
Dunker avalia que a decisão do TRT-4 foi acertada porque, apesar da falta de sintomas físicos, os juízes enxergaram o dano psicológico ao condenarem a empresa por dano existencial.
“Nossa legislação ainda não consegue captar isso por estar presa aos sintomas. Ou o trabalhador prova com sintomas ou ele se submete a uma situação de trabalho que corrói os laços sociais. E não há como contabilizar essas perdas juridicamente. Mas os juízes enxergaram essa realidade”, analisa o psicanalista.
Viver a vida
O relator do recurso do trabalhador no TRT-4, desembargador Raul Zoratto Sanvicente, argumentou que se trata de um dano não material que atinge a pessoa e a impede de realizar suas atividades triviais, como se relacionar, ampliar seus conhecimentos, descansar, enfim, usufruir da sua existência de forma normal.
Ele explica também que a ideia está expressa no princípio da dignidade da pessoa humana, previsto pela Constituição Federal. E os mecanismos para reparação nesses casos encontram-se no Código Civil, que determina o dever de indenizar.
Cristian Dunker acrescenta que os danos vão além e podem se tornar ainda mais críticos, já que que para “aguentar o tranco”, os trabalhadores recorrem ao uso de psicotrópicos. E segundo ele, o problema atinge uma esfera maior, que envolve o relacionamento do trabalhador com sua família.
“É difícil provar, mas até empregadores fornecem o ‘rebite’ para competir com o estado de stress prolongado, o cansaço e a solidão. Isso tudo traz danos não só para a saúde do trabalhador, mas também para o vínculo familiar e social”.
Os rebites são energéticos classificados como anfetaminas. São drogas sintéticas que atuam no sistema nervoso e trazem sérios riscos à saúde, causando dependência, irritabilidade, paranoia, alucinações, além de danos físicos como problemas cardiovasculares, gastrintestinais e neurológicos, já que afetam a atividade cerebral. E podem ser irreversíveis.
O processo
A Justiça condenou a empresa a pagar R$ 8 mil ao caminhoneiro. Os patrões recorreram da decisão.
Mas, para a secretária de Relações do Trabalho da CUT, Graça Costa, o fato de um desembargador ter reconhecido o ‘dano existencial’ indica que estamos no caminho certo quando denunciamos a precarização do trabalho.
“Apesar de todos os ataques aos direitos da classe trabalhadora que estamos sofrendo desde o golpe de 2016, os tribunais do trabalho reconhecem até os danos psicológicos que o trabalhador pode sofrer em função da exploração do trabalho”, afirma Graça.