Escrito por: Cida de Oliveira, da RBA

Juventude quer transformar realidade no campo

Jovens do campo, das águas e das florestas reivindicam investimentos na educação

Cultivo agroecológico de abacaxi no Maranhão

Jovem agricultor, filho de assentado da reforma agrária em região de extração de coco de babaçu, aluno do curso de Educação do Campo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Ricardo da Conceição Araújo é um daqueles que têm raízes fixas no campo que não pretende deixar, mas transformar. Articulado e militante da agroecologia, ele entende que a luta e os desafios dos jovens camponeses passam principalmente pela educação.

“Falo sempre para os meus companheiros de luta que a ausência de políticas públicas, especialmente uma educação do campo contextualizada, é determinante para tudo isso que a gente vivencia”, diz Ricardo. Crítico, ele entende que ao longo dos anos, de geração em geração, vai sendo construída uma imagem estereotipada do meio rural, como se fosse apenas um lugar que não tem progresso. “A juventude, uma classe de muita vulnerabilidade, acaba incorporando isso. Então a situação vem se agravando”.

Ricardo está convencido de que os princípios da agroecologia, pautados no protagonismo dos camponeses que passam a produzir em suas terras com autonomia e em harmonia com o meio ambiente, são determinantes para o modelo de desenvolvimento rural que defende. E vai além: “É estratégica para a sensação de pertencimento, de reconhecimento daquele lugar como um lugar de produção e reprodução da vida", diz.

"E a partir dessa sensação de pertencimento, você pode galgar outros horizontes. A educação do campo, em si, contextualizada em todos os seus princípios, é essencial para que a gente consiga construir e fortalecer isso junto com a nossa juventude."

Babaçu

Ricardo é agente de agroecologia vinculado à Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema), uma organização privada, sem fins lucrativos, de caráter regional, criada em 1989 e desde então liderada por agricultores familiares rurais e extrativistas do coco babaçu.

Ele conta que a Assema atende 850 famílias de 16 municípios do território do Médio Mearim e desenvolve um trabalho em que os jovens estão inseridos. “As dificuldades ainda são imensas. Mas a partir do momento em que a gente começou, já fez um planejamento inicial levando em conta essa amplitude de aptidões. Não é simplesmente uma juventude voltada para a criação de aves, de caprinos, e nem para o plantio de feijão de fava ou hortaliças".

De acordo com ele, há jovens com potencial para música, para o artesanato, para a dança. "Então isso é importante ser trabalhado pela agroecologia: reconhecer a diversidade de ideias e de aptidões, porque assim se consegue; fica mais fácil motivar um jovem a permanecer nesse espaço e a fortalecer a família e a qualidade de vida. E o pertencimento que ele constrói e vai fortalecendo no dia a dia.”

Campo, águas e florestas

Ricardo é o espelho da juventude do campo, das águas e das florestas – a primeira geração jovem dos movimentos sociais no Brasil que protagoniza ações e políticas públicas voltadas à juventude.

Desde o anos 2000, os jovens deixaram de ser considerados um problema, sinônimo de delinquência, e passaram a ser vistos como uma categoria de identificação política: a juventude, que passou a intervir em outros campos e esferas da sociedade como identidade política.

Sua organização ganhou evidência nos movimentos sociais e sindicais rurais, organizando-se nacionalmente e passando a encontrar espaço para dialogar com  pesquisadores e com o governo federal, que institucionalizou a temática em iniciativas governamentais, irradiando para estados e municípios.

A criação da Secretaria Nacional da Juventude (SNJ) e do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), em 2005, foi fundamental para que a temática ganhasse visibilidade nacional. Estudiosa dos 14 anos de governos Lula-Dilma, a pesquisadora e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Elisa Guaraná de Castro, analisa que a primeira geração de jovens rurais teve grande avanço em termos de políticas públicas.

De acordo com ela, que participou do congresso Agroecologia 2017, encerrado nesta sexta-feira (15), em Brasília, o período de 2005 a 2015 corresponde a uma década de políticas públicas de juventude, principalmente pelo governo federal.

Além da SNJ e Conjuve, foi instituído o Programa Nacional de Inclusão de Jovens, o Projovem. Um marco, segundo ela, para as políticas públicas de juventude. As conferências de juventude se firmaram como espaço para a efetivação dessa visibilidade e disputa de agendas.

A I Conferência Nacional de Juventude – I CNJ (2008), a II CNJ (2011) e a III CNJ (2015) foram marcadas pela forte presença da juventude rural, indígena, dos povos e comunidades tradicionais, ainda que o espaço desses segmentos tenha sido conquistado devido à maciça presença dos brancos urbanos na I CNJ, foi maioria.

Em agosto de 2013 foi instituído o Estatuto da Juventude pela Lei nº 12.852, principal marco legal das políticas e direitos da juventude brasileira. “Podemos afirmar que essas ações combinadas garantiram um novo status para a juventude, antes fortemente associada à delinquência e situação de risco, agora reconhecida como sujeito de direitos”, afirma.

Fragilidades

“Coordenadas pela Secretaria Nacional de Juventude, nascida com o Conjuve, as políticas públicas com a participação da juventude brasileira, além de especialistas no tema, constituem avanços do país nesse período. Contudo, também observamos fragilidades e limites que mostram que a juventude e, principalmente a juventude rural, segue enfrentando fronteiras invisíveis. Mas a possível fragilização dessas iniciativas veio no contexto do golpe parlamentar que interrompeu o governo Dilma em 2016.”

Para Elisa Guaraná, nos últimos 15 anos também foi consolidada a identidade política  da juventude nos principais movimentos sociais do campo. Com o avanço da visibilidade da diversidade das populações do campo, das águas e das florestas – cada vez mais presentes como identidades específicas em conselhos de participação social e em outros espaços formais de representação –, a identidade política característica constituída nos movimentos sociais tornaram-se mais nítidas, em processo de reafirmação da identidade juvenil rural em meio à agenda das organizações de juventude.

Apesar das políticas, nem todas as demandas foram atendidas – o que se deve em grande parte às agendas dos movimentos do campo, das águas e da floresta, que tornaram-se mais complexas. Para muitos jovens, viver no mundo rural ainda significa enfrentar barreiras para sua autonomia e suas possibilidades de escolha, seja para escolarização, acesso à terra e à renda, muito importantes na construção da autonomia. 

Temas como sustentabilidade, assistência técnica e agroecologia – agendas próximas mas diferentes entre os jovens do movimentos extrativistas e a juventude de organizações autodenominadas da agricultura familiar, por exemplo. Se até então a agenda de pesquisa estava focada no êxodo rural, pesquisas mais recentes mostram que houve redução da população jovem camponesa brasileira. No entanto, muitos permaneceram e há até mesmo muitos que retornaram. Recentes pesquisas demonstram que há um ritmo de desaceleração da migração da população rural.

Nascido no interior do Mato Grosso do Sul, o jovem Geilson Miranda quer voltar a se fixar no campo. "Meus avós eram do meio rural e não conseguiram se manter. Tiveram de vender a terra e meus pais tiveram de sair do meio rural. Foram para o meio urbano e, há três anos, conseguiram voltar ao meio rural. Eu fiquei tentando conseguir uma renda lá, não consegui. Voltei pro meio urbano. Sou serralheiro, atualmente desempregado. Minha esposa também é filha de agricultores. Também saiu do meio rural para estudar na cidade. Nos casamos, e agora nós tentamos voltar. Esse é o nosso desafio", conta.

Para ele, a educação constitui importante fator de fixação do jovem no campo. "Há dificuldades de estudo no meio rural. Meus sobrinhos, da roça, estudam na cidade e têm muito preconceito na cidade. Para ir estudar, têm de ir com outra roupa, levar uma troca de roupa, porque os ônibus vão muito sujo, e eles têm de se trocar para não passar por preconceito. E depois de tudo voltam pra casa, de ônibus empoeirado, e chegam muito tarde porque é longe.”

Reforma agrária

Autora de Juventude Rural, do Campo, das Águas e das Florestas: A Primeira Geração Jovem dos Movimentos Sociais no Brasil e sua Incidência nas políticas Públicas de Juventude, Elisa Guaraná, as demandas específicas estão diretamente associadas à urgência de mudanças estruturais na realidade do campo brasileiro. A educação do campo, no campo, é um exemplo, assim como a centralidade da reforma agrária e da mudança de padrão de desenvolvimento nas reivindicações da juventude rural organizada.

Os avanços nos dez anos de políticas convivem com fragilidades na consolidação dessas conquistas, que não se tornaram política de estado e tampouco se capilarizaram nas ações do próprio governo federal.

No que se refere à juventude rural, a apropriação de suas agendas ainda é coisa distante. Mesmo assim, no primeiro governo Dilma, houve maior avanço nessa agenda, com ações piloto, linhas específicas em editais de fomento, inclusão digital e economia solidária, cursos de formação, linha específica de assistência técnica rural para jovens, que, embora não tenham expressado um grande alcance em número de atendidos, representaram um importante avanço para a visibilidade desses jovens e fortalecimento de coletivos.

Outro avanço importante, segundo Elisa, foi o espaço de representação política em conselhos de participação social no âmbito nacional, como o Conselho Nacional de Juventude e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e da Agricultura Familiar, com cadeiras para a juventude rural.

"Também foi uma gestão que ampliou o diálogo com as juventudes. No entanto, esse esforço não foi capaz de se tornar estratégico para o governo Dilma, como ainda não havia se tornado central para o governo Lula", disse.

Ou seja, mesmo após as manifestações de 2013, que demonstraram que a juventude estava fortemente atuante na disputa política nos espaços das ruas, não houve tradução nas ações do governo federal para além da promulgação de grande relevância do Estatuto da Juventude.

O marco legal, sem dúvida, foi o maior avanço nesses dez anos. Outro passo importante foi o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural (2016), que afirma as múltiplas questões envolvendo a permanência dos jovens no campo, bem como a centralidade do papel do Estado.

Ainda segundo ela, o Programa de Reestruturação e ampliação das Universidades Públicas Federais (Reuni) duplicou o acesso, levou campi universitários para o interior do país e criou política de permanência para os estudantes mais pobres.

O Decreto nº 7.352, de 2010, instituiu a Educação do Campo por meio do programa ProCampo. Foram criados 40 cursos de Licenciaturas do Campo, além do ProLind - Licenciaturas Indígenas. A evolução orçamentária é ainda mais clara quanto à definição política da atuação do Estado na educação. O orçamento destinado à educação passou de R$ 19 bilhões em 2003 para R$ 103 bilhões em 2015, além da aprovação dos recursos do Pré-Sal para a educação e a saúde prioritariamente.

2ª Pesquisa Nacional de Educação para a Reforma Agrária (II PNERA) demonstrou que os cursos de Educação do Campo ampliaram em quantidade e público, nos governos Lula-Dilma, chegando a 320 cursos. No entanto, esse esforço não representou a massificação desse acesso e concorreu com o fechamento contínuo de escolas no campo por parte dos governos estaduais.

Mesmo assim, a qualificação na formação dos jovens pode ser vista entre os próprios dirigentes nacionais, muitos cursando pós-graduação e participando ativamente do debate acadêmico sobre juventude, políticas públicas, questão agrária. Este talvez seja o grande legado desse período para juventude rural, do campo, das águas e da floresta: a consolidação da educação do campo, com marco legal e a institucionalização nas universidades públicas federais.

De acordo com Elisa, esses jovens têm pela frente o desafio de derrotar o golpe que impõe retrocessos e radicalizar a reforma agrária popular. Para 2018, as previsões do governo de Michel Temer é cortar 99,8% do orçamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PPA), 86,1% da promoção da educação no campo, 71,3% ao apoio à organização econômica e promoção da cidadania de mulheres rurais,  além de cortar em 86,7% os recursos para obtenção de terra para reforma agrária.  

"A elite fundiária, escravocrata, violenta e predatória contra a natureza e os trabalhadores, é unificada pelo golpe à elite agrária e financeira, e nenhuma delas aceita um milímetro de avanço. É a luta de classes mais viva que disputa os rumos do desenvolvimento rural do Brasil. Não existe saída simples e nem rápida, mas qualquer que seja exige luta e articulações locais, nacionais e internacionais."