Escrito por: André Barrocal, da Carta Capital

Lula não arreda pé enquanto a Lava Jato acumula derrotas no STF

Ex-presidente recusa o regime semiaberto que a Lava Jato propô. Lula não aceita o que considera “barganha” e reivindica a anulação da sentença do ex-juiz Sérgio Moro, ministro de Bolsonaro

PAULO PINTO/FOTOS PÚBLICAS
EX-PRESIDENTE LULA DURANTE ENTREVISTA NA SEDE DO PT NACIONAL

Luiz Inácio Lula da Silva completa 74 anos em 6 de outubro mais perto de deixar o cárcere. Mas não porque a força-tarefa de procuradores de Justiça da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol à frente, tenha proposto que daqui em diante ele cumpra em regime semiaberto, aquele em que se estuda ou se trabalha de dia e dorme-se na cadeia, a pena por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá. Não: a proposta inclusive gerou impasse, pois o petista não aceita o que considera “barganha” e reivindica a anulação da sentença, e aceita menos ainda usar tornozeleira eletrônica, substituta para trabalhos diurnos e noites de cárcere. O que o reaproxima da liberdade são os ventos contrários ao lavajatismo no Supremo Tribunal Federal (STF), onde a operação acumula derrotas, graças, sobretudo, às conversas secretas antigas e comprometedoras de Dallagnol e Sérgio Moro, reveladoras de atuação à margem da lei e de objetivos políticos.

No caso de Lula e do triplex, um livro prestes a chegar à praça reforça a sensação de que aqueles que agora invocam a lei e o direito de o ex-presidente ir para o semiaberto não eram lá muito ciosos com a lei ao caçar o petista. Em suas memórias sobre a Lava Jato, Nada Menos Que Tudo, Rodrigo Janot, procurador-geral da República de 2013 a 2017, dedica um capítulo ao petista, “O objeto do desejo chamado Lula”. Conta ter recebido Dallagnol e quatro membros da força-tarefa logo após eles denunciarem o ex-presidente a Moro pelo triplex.

Era setembro de 2016. O quinteto queria que Janot apressasse uma acusação a Lula e ao PT, no Supremo, por organização criminosa. Sem isso, a denúncia a Lula em Curitiba por corrupção e lavagem ficaria manca. Lavagem requer um crime anterior: é algo “roubado” que se lava. O “roubo” de Lula estaria configurado na quadrilha.

“Precisamos que você inverta a ordem das denúncias e coloque a do PT primeiro”, disse Dallagnol, segundo Janot, pois, “se você não fizer a denúncia, a gente perde a lavagem.” “Ora, e o que Dallagnol fez? Sem qualquer consulta prévia a mim ou à minha equipe, acusou Lula de lavar dinheiro desviado de uma organização criminosa por ele chefiada. Lula era o ‘grande general’, o ‘comandante máximo da organização criminosa’, escreve Janot, a lembrar o dia do PowerPoint.

Curioso, ressalta um subprocurador-geral da ativa que viu uma cópia pirata do livro, Janot falar mal do PowerPoint. O secretário-geral de Janot na Procuradoria, Blau Dalloul, liberou 25 mil reais para a força-tarefa pagar as despesas daquela entrevista coletiva de Dallagnol e companhia em um hotel.

Outra coisa curiosa, esta destacada por um lulista: Janot tenta parecer correto diante dos abusados de Curitiba e até escreveu que Teori Zavascki, o juiz do Supremo que cuidava dos processos da Lava Jato antes de morrer, em 2017, proibira “expressamente” a força-tarefa de investigar e denunciar Lula por organização criminosa. Mas, quando os procuradores apontaram o petista como chefe de quadrilha, os advogados de Lula recorreram a Zavascki, este pediu uma posição a Janot, e o então “xerife” apoiou a força-tarefa.

A fragilidade da acusação do Ministério Público Federal (MPF) a Lula no caso do triplex era conhecida desde que as conversas secretas de Dallagnol começaram a vir a público, em 9 de junho. Recorde-se: a denúncia dizia que Lula era chefe de quadrilha e que o triplex era um presente da OAS por ele ter facilitado negócios escusos da empreiteira na Petrobras. Cinco dias antes, Dallagnol mostrava-se inseguro, em mensagens de celular com colegas. Em conversas com Moro, reconhecia que não havia provas contra Lula, só indícios e uma matéria de O Globo de 2010. Não importa: Moro escreveu na sentença, de julho de 2017, que “a matéria em questão é bastante relevante do ponto de vista probatório”. Que não era preciso indicar um ato específico de Lula em favor da OAS, bastavam “fatos indeterminados”. E tascou nove anos de prisão.

A sentença foi ampliada para 12 anos na segunda instância, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em janeiro de 2018. E reduzida a 8 anos na terceira, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em abril de 2019. É com base nessa última punição que a força-tarefa propôs o semiaberto a Lula, gesto raro do MPF. Um preso tem direito à progressão da pena depois de cumprir um sexto dela, a situação de Lula. A proposta foi levada em 27 de setembro à juíza Carolina Lebbos, da vara de execuções penais do Paraná. É assinada por Dallagnol e 14 procuradores. A magistrada pediu um parecer à Polícia Federal (PF) no Paraná, onde Lula cumpre a pena, sobre o comportamento do petista, e o atestado foi de “bom”.

A PF está doida para se livrar de Lula, por achar que os fãs dele dão muito trabalho, e isso levou a uma das derrotas da Lava Jato no Supremo. Foi há dois meses. Os policiais propuseram à juíza Carolina mandar o petista a um presídio comum. Ela ouviu os procuradores. Estes foram tortuosos, apontaram prós e contras, mas não se opuseram. A magistrada decidiu transferir Lula para um presídio comum em São Paulo, onde ele morava. O Tribunal de Justiça paulista resolveu botá-lo em uma penitenciária na cidade de Tremembé, no interior. Em meio a tudo isso, políticos de vários partidos, não apenas do PT, foram ao Supremo reclamar, e a corte julgou, por 10 votos a 1, que Lula deveria ser mantido na cela especial da PF do Paraná. Tudo em um único dia, 7 de agosto.

Até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 3, não havia decisão de Carolina sobre a ida de Lula para o semiaberto. Seus advogados ainda precisavam se manifestar no processo, mas a posição que mandariam à juíza tinha sido definida com Lula em 30 de setembro. Nada de semiaberto, nem tornozeleira eletrônica. Posição anunciada em uma carta pública de Lula: “Não aceito barganhar meus direitos e minha liberdade. Já demonstrei que são falsas as acusações que me fizeram. São eles e não eu que estão presos às mentiras que contaram ao Brasil e ao mundo. Diante das arbitrariedades cometidas pelos procuradores e por Sérgio Moro, cabe agora à Suprema Corte corrigir o que está errado”.

Surgiu uma controvérsia jurídica. Um preso pode se recusar a ir para o semiaberto? Há opinião para todos os gostos. O presidente do TRF4, Victor Laus, disse a uma rádio que quem decide é o Judiciário. E apontou “regalias” de Lula na PF em Curitiba. Regalias, é? Na Justiça mais cara do planeta, devido a salário de marajá e mordomias, Laus desfruta de “regalias”. Seu contracheque de maio foi de 146 mil reais, dos quais R$ 94,5 mil de férias, R$ 11,8 mil por acúmulo de função e R$ 3,9 mil por abono de permanência (um extra para quem já podia ter se aposentado). Já os advogados de Lula, que não foram ouvidos pelo MPF previamente, dizem que o semiaberto é um direito, e direito a gente exerce se quiser. “Temos um impasse”, afirma Valeska Martins, uma das defensoras de Lula. Para desaguar no Supremo, certamente.

Por que a força-tarefa de Curitiba resolveu aliviar a situação de Lula, se o rigor dos procuradores, redobrado com o petista, é marca deles?

“A Lava Jato quer legitimar todo o processo do Lula: a investigação, a sentença, a pena… A progressão da pena é mais um passo”, diz o deputado Orlando Silva, de 47 anos, do PCdoB paulista.

“A Lava Jato quer parecer que anda dentro da lei. Desde quando o MP pede progressão de pena? Quem pede é advogado, é preso”, afirma o senador Rogério Carvalho, de 51 anos, do PT de Sergipe. “Aliás, o que importa hoje não é mais o que se sabe (graças ao The Intercept). É o motivo de por que as instituições que têm poder para agir não agiram contra a Lava Jato antes. É por que o Moro tinha informações para chantagear alguém?”, indaga o senador.

“Manter o Lula preso alimenta o sentimento de que ele não teve um julgamento justo. Além disso, a soltura pode tirar a potência de decisões do Supremo de botar um freio de arrumação na Lava Jato. A opinião pública sempre foi um elemento usado pela Lava Jato, e agora há uma mudança nesse sentimento”, diz o deputado Henrique Fontana, de 59 anos, do PT gaúcho.

Uma mudança ilustrada no dono da Band, Johnny Saad, em um discurso, em junho, em um evento da emissora. Ao comentar os resultados do combate à corrupção no País, Saad disse que “falta um dado importante nessa análise, que é a destruição de grandes empresas nacionais, de setores inteiros”, além dos “milhões de desempregados”.

O fim da unanimidade pró-Lava Jato na mídia deixa o STF mais à vontade. Em setembro, a corte anulou de vez um acordo que a força-tarefa tinha feito com a Petrobras e autoridades americanas, em 2018, que daria mais de 1 bilhão de reais para procuradores gerirem em uma fundação. A revogação da prisão após condenações em segunda instância pode ser julgada a qualquer momento. Idem a acusação de que Moro não seguiu o dever de ser imparcial nos processos de Lula. Na proposta da força-tarefa de o petista ir ao semiaberto, há uma pista de que os procuradores temem o julgamento da suspeição de Moro. Eles pedem que o relator do habeas corpus 164.493 no Supremo, Edson Fachin, seja avisado da soltura de Lula. Esse HC é o que requer a libertação do petista com base na suspeição de Moro no caso do triplex. Com Lula livre, a ação perderia sentido.

Na quarta-feira 2, o Supremo retomou um julgamento em que, impôs a maior derrota à Lava Jato. Por 7 votos a 4, decidiu que em todos os processos em que houve acusação com base em delação premiada, era direito do réu ter a última palavra antes da sentença de primeira instância. Uma penca de processos será refeita, sentenças serão anuladas.

Falta agora decidir detalhes sobre que tipo de processo será beneficiado. Lula, no caso do triplex, não será. Não havia delator no processo. No outro caso em que já recebeu condenação de primeira instância, o do sítio de Atibaia, sim, havia. Esse processo custou ao petista, em fevereiro, sentença de 12 anos, por corrupção e lavagem, da lavra da juíza, de 42 anos, que substituiu Moro por um tempo. O caso está no TRF4, e o relator, o curitibano João Pedro Gebran Neto, de 54 anos, amigo de Moro, já concluiu sua parte. Falta o revisor, Leandro Paulsen, gaúcho de 48 anos, fechar a dele. Curiosidade: Paraná e Rio Grande do Sul têm 11% da população, mas, segundo o Conselho Nacional de Justiça, 16% dos juízes.

O fator “esposas” também contribuiu para o clima no Supremo virar, aos poucos, contra a Lava Jato. Motivo: ajudou a tirar Jair Bolsonaro da linha de frente da defesa do combate à corrupção e a uni-lo a dois juízes do tribunal, Dias Toffoli, o comandante da corte, e Gilmar Mendes, o mais falador. As esposas de Toffoli, Roberta Rangel, e de Mendes, a Guiomar Feitosa, ambas advogadas, foram alvo de investigações fiscais preliminares da Receita Federal e não possuem as proteções legais dos maridos. Michelle Bolsonaro, a primeira-dama, foi apanhada pelo ex-Coaf no caso Flávio Bolsonaro-Fabrício Queiroz, receptora de 24 mil reais depositados por Queiroz, amigo de Jair. Não foi à toa que, em julho, Toffoli deu uma liminar a suspender investigações contra Flávio. Nem que, nos últimos dias, Mendes deu outra, pois o advogado do filho do presidente, Frederick Wassef, alegou ao Supremo que as apurações não tinham parado.

Será por isso tudo que Jair Bolsonaro foi de comedimento inusual ao comentar o rolo do semiaberto de Lula? “É direito dele ficar preso lá. Quer ficar, fica. Não vou interferir. Não vou tripudiar em cima dele”, disse ao Estadão. No Supremo, há quem diga que o ex-capitão já não se oporia à libertação do prisioneiro, pois com Lula livre ficaria mais fácil manter os bolsonaristas radicais atiçados e a polarização política. Se é verdade, não está claro se Bolsonaro acha isso da própria cabeça ou se é um argumento usado por Tofolli para amansar o ex-capitão e pavimentar a soltura de Lula.

A pressão internacional é outro elemento contra a Lava Jato no Supremo. O noticiário sobre as conversas comprometedoras de Moro e Dallagnol corre o planeta. Além disso, Lula já recebeu a visita, no cárcere, de várias personalidades. O favorito para ser eleito presidente da Argentina dia 27, o centrista Alberto Fernández, esteve com ele em agosto. Em fevereiro, foi a Curitiba o líder do Partido Social-Democrata alemão, Martin Schulz. No mês passado, o candidato esquerdista a presidente da França em 2017, Jean-Luc Mélenchon. Há alguns dias, o ex-juiz espanhol Baltasar Garzón, famoso por ter mandado prender, em 1998, o ex-ditador chileno Augusto Pinochet.

ALAN SANTOS/PR)JAIR BOLSONARO  MICHELE, DURANTE DESFILE CÍVICO POR OCASIÃO DO DIA DA PÁTRIA

Essas visitas terminam com declarações pró-Lula e os visitantes a reproduzir sua visão em casa. Garzón disse, por exemplo, não ter “um milímetro de dúvida” sobre a inocência do petista. Ao site de CartaCapital, afirmou que Lula é vítima de “perseguição muito grande” e de lawfare, o uso da lei como arma de guerra. Em agosto, Garzón e outros 16 juristas internacionais assinaram um manifesto dirigido ao Supremo em que pediam a soltura do ex-presidente e a anulação da sentença. Uma das razões eram as revelações das conversas secretas. “Ficamos chocados ao ver como as regras fundamentais do devido processo legal brasileiro foram violadas sem qualquer pudor”, diz o texto.

Entre os signatários, há ex-juiz do Supremo do México (Diego Valadés) e da Colômbia (Pablo Cáceres), ex-ministro da Justiça de Portugal (Alberto Costa) e uma sumidade no tema “garantias de defesa” (o italiano Luigi Ferrajoli). Outra assinatura é particularmente curiosa, de Susan Rose-Ackerman, de 77 anos, professora da Escola de Direito da Universidade Yale, nos Estados Unidos. Trata-se da “maior especialista do mundo sobre corrupção”. Quem diz? Deltan Dallagnol. Foi o que ele escreveu em abril de 2016, no Twitter, após conhecê-la. Comentário seguido de foto com Susan.

Convencer o mundo de que o impeachment de Dilma Rousseff não foi golpe era prioridade da política externa do governo Michel Temer. Logo após os deputados aprovarem o início do processo, em abril de 2016, o então senador tucano Aloysio Nunes Ferreira, que em 2017 seria nomeado ministro das Relações Exteriores de Temer, viajou aos EUA para pedir ajuda contra a tese do “golpe”. Agora mudou de ideia, graças às conversas secretas. À Folha de 27 de setembro, disse ter havido “manipulação política do impeachment” com a divulgação ilegal, por Moro, do telefonema, gravado igualmente de modo ilegal, entre Dilma e Lula, em março de 2016. E se disse “chocado” com a revelação de que a delação do ex-ministro petista Antonio Palocci foi distribuída por Moro com fins políticos, na eleição de 2018.

MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO)ALOYSIO NUNES FERREIRA (PSDB-SP)

Em seu livro, Rodrigo Janot aponta, de forma meio envergonhada, a partidarização da Lava Jato e cita a delação de Palocci, que “ajudou a municiar um dos lados do jogo político”, como exemplo. Menciona outro episódio, este da eleição de 2014: uma capa da Veja em que o doleiro Alberto Youssef dizia: “Eles sabiam de tudo”. “Eles” eram Dilma, candidata à reeleição, e Lula. “Tudo”, fraudes na Petrobras. Acusações “destituídas de qualquer valor jurídico”, escreve Janot, pois Youssef não sabia de nada do Palácio do Planalto. As comentar essas histórias, Janot diz que certa vez ouviu de um membro da Lava Jato, no início da operação, em 2014, que o plano em Curitiba era “horizontalizar” as investigações. O que seria isso, Janot diz não ter entendido à época. “Só depois de muito tempo, quando vi Sérgio Moro viajando ao Rio de Janeiro para aceitar o convite para ser o ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro, é que me veio de novo à cabeça aquela expressão. Horizontalizar implicaria uma investigação com foco num determinado resultado?”
Eureca!