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Maior consciência do povo negro aumenta denúncias de racismo em Porto Alegre

O levantamento foi realizado pela Delegacia de Combate à Intolerância da capital gaúcha

Publicado: 17 Novembro, 2022 - 09h09

Escrito por: CUT - RS

Divulgação
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A maior consciência do povo negro acerca dos seus direitos e da sua dignidade está ampliando as ações de combate ao racismo estrutural na sociedade brasileira. Em Porto Alegre, não é diferente.

O número de ocorrências registradas pelo crime de racismo mais do que dobrou nos últimos dois anos. Entre janeiro e setembro de 2021, foram 24 registros, número que subiu para 61 no mesmo período de 2022, o que representa um aumento de 154,16%.

Já o número de denúncias por injúria racial foi ainda mais elevado, segundo a mesma pesquisa. Nos primeiros nove meses de 2022 houve 152 ocorrências, apenas ligeiramente abaixo dos 166 casos verificados em igual período de 2021, uma redução de 9,21%. 

O levantamento foi realizado pela Delegacia de Combate à Intolerância da capital gaúcha, conforme reportagem de página inteira publicada nesta quarta-feira (16) pelo jornal Zero Hora.

Na legislação, há distinção entre o que é racismo e injúria racial. O racismo acontece quando se atinge uma coletividade de pessoas ao discriminar a integralidade de uma raça, cor ou etnia. Já a injúria racial ocorre quando se ofende a honra de um indivíduo, sendo utilizados insultos e xingamentos referentes à raça, cor, etnia ou origem.

Maior consciência política

“Esse aumento do número de casos registrados nada mais é do que o reflexo de uma camada da população, que se fortaleceu nas lutas antirracistas e se viu representada a partir de uma escolha política, elegendo bancadas pretas nos parlamentos, comprometidas e preparadas para combater e romper com um modelo de sociedade com o viés escravocrata naturalizado na sociedade gaúcha”, afirma a secretária de Combate ao Racismo da CUT-RS, Isis Garcia.

Em 2020 foi eleita a primeira bancada negra na Câmara Municipal de Porto Alegre, integrada pelas vereadoras Karen Santos (PSol), Laura Sito (PT), Daiana Santos (PCdoB) e Bruna Rodrigues (PCdoB) e pelo vereador Matheus Gomes (PSol).

Nas recentes eleições de 2022, a representação do povo negro cresceu no Estado. Daiana Santos foi eleita deputada federal, assim como a vereadora Denise Pessôa (PT), de Caxias do Sul, enquanto Laura Sito, Bruna Rodrigues e Matheus Gomes assumirão na Assembleia Legislativa.

Além disso, o RS conta com o senador Paulo Paim (PT), lutador incansável contra o racismo e autor do Estatuto da Igualdade Racial.

Para Isis, “tanto o racismo como a injúria racial, que atravessam o lugar mais profundo do ser humano, que é a sua integridade moral, são crimes violentos, que devem ser tratados de forma rígida e efetiva pelas autoridades competentes”.

A dirigente sindical ressalta que “as pessoas da pele preta não aceitam a naturalização do desrespeito ao qual são constantemente submetidas”.

“É pedagógico que todas as pessoas independente de sua cor de pele devem respeitar o próximo como gostariam de ser respeitadas. Parece ser simples, porém se inicia dentro dos lares, na formação das crianças, que se reproduzirá nas escolas, no trabalho e nas relações pessoais”, afirma Isis.

Por isso, segundo ela, “é tão importante a implementação de políticas afirmativas para transformar essa realidade social excludente”.

“É fundamental que façamos essa reflexão para agirmos de forma antirracista não somente no mês de novembro, mas em todos os dias do ano como pauta permanente de transformação social”, aponta a dirigente da CUT-RS.

Violência contra povo negro encoraja a fazer denúncias

Na avaliação da delegada Andrea Mattos, da Delegacia de Combate à Intolerância, um dos fatores para o aumento de denúncias por racismo foi a repercussão de casos registrados nos últimos anos, que ajudam as pessoas a se reconhecerem como vítimas em situações vividas no dia a dia.

Ela citou o assassinato do homem negro João Alberto Silveira Freitas, espancado até morte por seguranças nas dependências do supermercado Carrefour na zona norte de Porto Alegre, em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia Nacional da Consciência Negra.

Meses antes, em maio de 2020, um caso similar teve indignação mundial: a morte do homem negro George Floyd, depois que um policial de Minneapolis, nos EUA, ajoelhou-se sobre seu pescoço por quase 10 minutos. Houve protestos em vários países, incluindo o Brasil, sob o mote “vidas negras importam”.

Em 14 de outubro deste ano, o cantor negro Seu Jorge foi vítima de insultos racistas durante um show no clube Grêmio Náutico União, em Porto Alegre. O caso também teve indignação e motivou um ato de protesto, que reuniu milhares de pessoas em frente ao clube.

Toda vez que há um caso de repercussão como esses, mesmo que seja uma indignação mais local, ocorre uma identificação por parte das pessoas, a gente percebe um aumento de registro no período após os fatos. Elas percebem que algumas situações que passaram configuram crime, que não são algo normal, e tomam coragem para denunciar”, avaliou a delegada.

“Além disso, vejo uma mudança de entendimento das vítimas, de perceber que alguns casos não se tratam de injúria racial, mas sim racismo mesmo, um alcance maior”, disse Andrea.

Vidas negras importam

A diretora do Núcleo de Direitos Humanos da Associação dos Juízes do Estado (Ajuris), Karen Luise Vilanova Batista de Souza, também acredita que a repercussão dos casos citados incentiva vítimas e testemunhas a buscarem por responsabilização.

“Pensar sobre o racismo, pensar que vidas negras importam, acabou por encorajar não apenas pessoas negras, mas também as brancas, que agora não silenciam diante das violações de direitos humanos no que diz respeito à raça”, destaca a especialista, que também é juíza-auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça.

Karen também destaca a possibilidade de que as subnotificações estejam caindo. “Com o reconhecimento de que o Brasil é um país racista, um lamentável legado da escravidão, passamos a iluminar a forma como as relações sociais se apresentam, e as pessoas passaram a notificar com maior frequência.

Delegacia surgiu há apenas dois anos

Outro fator apontado é a criação da Delegacia Especializada no Combate à Intolerância, um espaço destinado a atender de forma qualificada as vítimas, o que também contribuiu para a maior procura, afirma Andrea.

Implementada em dezembro de 2020, a delegacia também tem atribuição para investigar, além de casos de racismo e injúria racial, os de preconceito contra demais grupos vulneráveis, como a comunidade LGBT+, deficientes, pessoas de outras nacionalidades e vítimas de intolerância religiosa.

Segundo Andrea, o maior número de registros é por preconceito contra a cor, que representa cerca de 65% das ocorrências.

Um dos grandes diferenciais da delegacia é o atendimento especializado para atender esses crimes. Segundo Andrea, as equipes passam por treinamentos de forma constante, e recebem capacitação por parte de integrantes de associações e ONGs da área.

Quando ocorre o acordo entre as partes, na mediação, os casos costumam ser resolvidos de maneira mais rápida e o combinado é chancelado pelo Poder Judiciário. Quando as partes não têm interesse no acordo, o inquérito segue em andamento. 

A importância de coletar provas e ouvir testemunhas

Durante a investigação de casos de racismo e injúria racial, um dos desafios é reunir provas. Segundo Andrea, em muitos casos, apenas a vítima e o agressor estão presentes no momento das ofensas.

Sem testemunhas ou gravação, o inquérito pode acabar emperrando. Nesse sentido, a delegada destaca a importância de documentar, sempre que possível, os fatos. “Pode gravar vídeo, áudio, chamar alguém que esteja por perto para testemunhar. Nas redes sociais, é válido também salvar o que foi dito. O ideal é que as pessoas compareçam à delegacia com o maior número de provas e informações que conseguirem, porque ajuda a promover o indiciamento”, orienta a delegada.

A coordenadora do Centro de Apoio de Direitos Humanos do Ministério Público, Gisele Monteiro, também ressalta a importância da participação no processo de pessoas que tenham testemunhado os casos. Enquanto integrante do centro, que presta informações e faz material de apoio para promotores do MP, Gisele auxiliou a promotoria que atuou no caso João Alberto.

“Ainda temos um baixo número de pessoas que se propõem a testemunhar, que é uma parte muito importante para a polícia e para o MP. Às vezes, não temos como agir sem ter pessoas que se disponham a falar o que viram, o que ouviram. A grande diferença no caso do João Alberto foi a filmagem, as imagens que as pessoas encaminharam, que são provas”, salienta.

Contudo, mesmo nos casos em que não se tenha testemunhas nem provas, Andrea defende que o boletim de ocorrência seja feito. Os dados, afirma, ajudam a polícia a monitorar os episódios. “É importante que a gente saiba onde os casos ocorrem, em que contexto, com quem, como. Até pelo preventivo, para pensarmos ações”, conclui a delegada.