Escrito por: Maurício Angelo / Observatório da Mineração
Reportagem do Portal Observatório da Mineração aponta que trabalhadores em condições de trabalho análogas à esvravidão foram resgatados desde 2008. Dados nunca haviam sido revelados
Levantamento exclusivo do Observatório da Mineração mostra que, desde 2008, 333 trabalhadores foram resgatados em garimpos no Brasil em condições análogas à escravidão. A extensão desses resgates em garimpos nunca havia sido revelada antes.
Foram 31 operações que tiveram garimpos como foco nos últimos 13 anos.
O Pará é o estado campeão com larga margem, com 12 operações. As fiscalizações ocorreram sobretudo na Amazônia e no Nordeste, nos estados do Amazonas, Amapá, Rondônia, Mato Grosso e na Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte. Apenas o Tocantins, com uma operação, está no Centro-Oeste.
Em comum, os trabalhadores são encontrados em condições precárias, sem instalações adequadas para alojamento, sem banheiros, consumindo água contaminada, com alimentação improvisada, sem equipamento de proteção, em jornadas exaustivas, sem qualquer vínculo formal e não raro submetidos a dívidas acumuladas com o dono do garimpo. Situações que configuram trabalho análogo à escravidão.
Nos garimpos, é o ouro que lidera a incidência, seguido da extração de pedras preciosas como a ametista, o garimpo de caulim e gesso e o estanho.
Antes quase fora do radar, é a partir de 2017 que os garimpos passam a ser foco e as operações aumentam significativamente. Foram 10 operações em 2020, 5 operações em 2017 e 3 até o momento em 2021.
A mudança não acontece por acaso, mas é uma escolha do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, explica Magno Riga, coordenador do GEFM. “Foi uma decisão institucional. Começamos a olhar com mais atenção para o garimpo e priorizar operações”, diz Riga.
Ao contrário da pecuária e de outras atividades, os auditores não costumam receber denúncias de trabalho escravo no caso dos garimpos, relata o coordenador do Grupo Móvel.
Assim, é preciso estruturar um trabalho de inteligência para buscar as informações, construir os casos, receber relatórios de órgãos ambientais como o Ibama e o ICMBio e firmar parcerias com a Polícia Federal, que participa das operações. Falta estrutura, no entanto.
Divulgação/MPT-1“Temos muita dificuldade de logística, especialmente nas operações que necessitam de deslocamentos mais longos e complexos, com apoio aéreo. A Polícia Federal tem sido uma grande parceira nesse processo, até pelo risco que os agentes correm em campo. São áreas de conflito”, relata Riga.
Warlei Dias, delegado da Polícia Federal em Brasília e Chefe do Núcleo de Repressão ao Trabalho Forçado, afirma que a PF tem procurado articular a sua própria atuação em diferentes estados e apoiar parceiros como o Grupo Móvel, o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Federal, o Ibama e outros.
O garimpo ilegal normalmente vem acompanhado de outros crimes, como desmatamento ilegal, porte ilegal de armas e formação de redes criminosas. O trabalho escravo entra nesse contexto, conta Dias.
“Ao longo dessas operações nos últimos anos, verificamos que os criminosos estão usando cada vez mais a mão de obra análoga à escravidão. Porque eles conseguem, com essa prática, tornar aquela atividade ilegal que já era lucrativa, ainda mais lucrativa”, afirma o delegado.
Divulgação/MPT
Duas operações de resgate de trabalhadores em garimpos, realizadas em 2018 e 2020, aconteceram em garimpos mantidos pela mesma dona, Raimunda Nunes Oliveira. 77 trabalhadores foram resgatados no Pará.
Para a Mongabay, parceira do Observatório, mostrei em fevereiro que mesmo após a operação de 2018, os donos do garimpo – Raimunda e seus filhos – conseguiram registrar e aprovar requerimentos minerários na Agência Nacional de Mineração. Também localizei 11 registros de Cadastro Ambiental Rural (CAR) nos nomes dos donos desses garimpos.
O registro de requerimentos na ANM é parte da sofisticação do crime, que incluiu também a criação, em 2020, de uma suposta cooperativa de garimpeiros no Pará, tendo Raimunda como presidente e seus filhos como diretores.
A “cooperativa” seria uma forma de mascarar as condições reais dos trabalhadores e dos próprios garimpos, além de tentar vender a ideia de que os garimpeiros estavam organizados por conta própria.
Em boa parte dos casos, porém, os garimpos sequer têm registro formal em pedidos de lavra garimpeira. Muitos estão dentro de terras indígenas e áreas de conservação, relata Wallace Lopes, agente ambiental federal do Ibama e diretor da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista de Meio Ambiente (Ascema).
Para Lopes, não será a legalização do garimpo que fará a situação melhorar, como quer o PL 191 de Jair Bolsonaro. “Não é um documento de regularização que vai trazer dignidade para essas pessoas”, diz Lopes, lembrando que fazendas contam com Cadastro Ambiental Rural (CAR), mapeamento via satélite e uma série de informações disponíveis que nunca inibiram o cometimento de crimes.
Segundo o delegado Warlei Dias, a Polícia Federal tem amplificado o número de operações em articulações locais ou interestaduais e o trabalho de inteligência envolve o uso mais intensivo de imagens via satélite, por exemplo. Quando uma operação de campo identifica trabalhadores em condições análogas à escravidão, as instituições parceiras são acionadas.
MPTO Grupo Móvel e a PF têm tentado estabelecer um calendário conjunto de operações que esbarra, porém, na pandemia e na falta de servidores. O último grande concurso para auditor do trabalho foi em 2010, quando 400 servidores entraram.
Mas, em média, se aposentam entre 100 e 150 servidores todos os anos. Foram 1000 aposentadorias em 10 anos, sem reposição adequada. Hoje, são cerca de 2 mil auditores para fiscalizar todo o Brasil.
“É um quadro já relativamente envelhecido. Boa parte está em atividade remota ou interna por causa da pandemia. Nos últimos 25 anos, certamente este é o momento em que nós temos menos auditores em campo”, revela Magno Riga.
São apenas 17 auditores divididos em 4 equipes no Grupo Móvel nacional, o mesmo efetivo de uma década atrás. A situação nas Superintendências Regionais do Trabalho é ainda pior, diz o chefe do GEFM.
A falta de servidores se soma a isso e é um problema crônico também no Ibama, que perdeu quase 60% dos servidores em 20 anos. Hoje, são apenas 2.480 servidores para todo o Brasil, contra 6 mil em 2001.
Lopes, do Ibama, explica que as operações integradas são fundamentais no caso dos garimpos, mas a falta de pessoal e de articulação federal compromete os trabalhos, papel que não foi assumido pelo Conselho da Amazônia, chefiado por Hamilton Mourão.
Retomar o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), criado em 2004 e abandonado no atual governo, por exemplo, é um caminho apontado para resolver o problema.
Além da falta de servidores, os auditores precisam enfrentar a piora na burocracia. Com a extinção do Ministério do Trabalho feita por Jair Bolsonaro, o Grupo Móvel agora é vinculado ao Ministério da Economia.
Essa mudança aumentou a burocracia para que as operações aconteçam, conta Magno Riga. “Perdemos autonomia. Agora precisamos informar com mais antecedência e uma série de procedimentos ficou mais difícil. Estamos estrangulados”, afirma.
O aumento de operações em garimpos, com todas as dificuldades de logística, recursos, servidores e articulação, não alcança o tamanho real do problema. O número de trabalhadores escravizados em garimpos no Brasil com certeza é muito maior do que a fiscalização consegue identificar, dizem os entrevistados.
O garimpo ainda está longe de figurar entre os principais setores com incidência de trabalho escravo, liderados pela pecuária e cana-de-açúcar. Não por falta de casos, mas por ausência de capacidade de fiscalização.
Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas mostram que, no geral, a maior parte dos trabalhadores resgatados são homens entre 18 e 24 anos, 70% com ensino fundamental incompleto ou analfabetos, quase 60% pardos, pretos ou indígenas. A pandemia e a crise econômica empurram ainda mais pessoas para a precariedade.
O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) atua há 26 anos no Brasil e já resgatou, no total, 56 mil trabalhadores nesse período em todo o país.
Em 2020, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi lançada uma plataforma para o recebimento de denúncias, o Sistema Ipê.
Depois de resgatados, os trabalhadores recebem direitos mínimos, como o pagamento de verbas rescisórias, seguro-desemprego, acolhimento em centros de assistência social e auxílio para retornar ao local de origem, caso tenham sido também vítimas de tráfico de pessoas.
Ainda há muito a ser feito para que os criminosos paguem por seus delitos, no entanto. Estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que apenas 4,2% de todos os acusados foram responsabilizadas penalmente pelo crime de submeter trabalhadores à escravidão contemporânea no Brasil.
Divulgacao/PF-2