Escrito por: Mariana Castro Brasil de Fato | Imperatriz (MA)
Símbolo de resistência à ditadura militar, líder camponês maranhense é sepultado nesta quinta-feira (19)
Símbolo de resistência à ditadura militar, Manoel da Conceição faleceu na manhã desta quarta-feira (18) aos 86 anos de idade em Imperatriz, no Maranhão, onde viveu os últimos anos ao lado da família em uma casa de portas abertas aos movimentos sociais da região.
Perseguido, torturado e exilado, Mané da Conceição, como era mais conhecido, dedicou toda a sua vida à organização da luta pela democracia e pelos direitos dos povos dos campos e das florestas.
Primogênito do casal de lavradores Maria Leotéria e Antônio Raimundo, Manoel da Conceição nasceu no dia 24 de julho de 1935, no povoado Pedra Grande, no município de Coroatá, estado do Maranhão.
Até os dez anos de idade fez poucos serviços de roça, tarefa natural às crianças da região. Isso porque se dedicou a cuidar dos irmãos menores e a aprender outro ofício do pai, o de ferreiro.
Já adolescente, passou a cuidar das plantações da família, além de trabalhar ao lado do pai para o dono de terras João Candeia da Rocha, na lida de plantações no povoado Lajinha, próximo a Pedra Grande.
Era a década de 1950 e o Maranhão recebia mais de cem mil imigrantes oriundos de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e outros estados atingidos pela estiagem em busca de terras livres para viver.
Entre uma expulsão e outra, perseguição de grileiros e massacres aos trabalhadores rurais da região, a família se dispersou e Mané foi ao encontro do pai no povoado São José do Tufi, no município de Pindaré Mirim, área de extensas terras devolutas onde abundavam densas florestas e rios.
Foi em Pindaré Mirim que se estabeleceu como respeitado agricultor, ferreiro, membro assíduo da igreja evangélica e conheceu Rita Pinto, jovem piauiense com quem se casou e teve os dois primeiros filhos, Raquel, em 1961 e Manoel Filho, em 1963.
Nesse mesmo período, um grupo do Movimento de Educação de Base (MEB) visitava a região em busca de pessoas que demonstrassem espírito de liderança para participar de um curso de alfabetização, sindicalismo, produção agrícola e de outros problemas que afetavam a vida dos trabalhadores rurais.
Mané foi um dos indicados para participar do curso, que teve início em agosto de 1962 no município de Santa Inês em meio a intensos conflitos pela posse de terra. As temáticas instigaram nos trabalhadores rurais esperanças de alternativas e lá firmaram o compromisso com a luta por melhores condições de vida.
De volta a Pindaré Mirim, repassou os novos conhecimentos e engajou-se, de fato, à luta camponesa a partir da criação de escolas de alfabetização e acalorados debates que deram origem ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais Autônomos de Pindaré Mirim, o primeiro nesses moldes no Maranhão.
A fundação foi marcada por uma grande assembleia realizada em outubro 1963, no município de Santa Inês, com a presença de mais de mil pessoas decididas a se filiarem – que passaram a ser alvos diretos dos grileiros da região.
Se de um lado os trabalhadores se organizavam por melhores condições de vida, de outro jagunços montavam cavalos e municiavam suas espingardas para os novos tempos no campo.
A organização dos trabalhadores foi ganhando corpo, pessoas de outros municípios se filiavam e no mês seguinte, o número de filiados saltou de mil para quatro mil, momento histórico em que decidiram marchar juntos até as autoridades locais.
Em fevereiro de 1964 Manoel da Conceição é eleito presidente do sindicato, aos 29 anos de idade. Logo as notícias de luta e resistência da região estimularam a criação de novos sindicatos e Manoel passa a ser o principal inimigo dos fazendeiros da região.
No mesmo ano foi instaurado o golpe militar no Brasil e os sindicatos foram fechados e seus documentos lacrados. É quando Manoel passa a viver entre a clandestinidade, a perseguição pelo Estado e a responsabilidade de organização da luta pela resistência.
Os estudos do jovem camponês tomaram outra forma e agora se baseavam na guerrilha para o confronto armado contra o governo militar, ao som da rádio Havana. Mais radical e decidido a enfrentar as estruturas do capitalismo, é forjado um novo Manoel da Conceição, que rompe com a hierarquia da igreja evangélica e deixa o lar familiar para romper cercas pelas fronteiras agrícolas do Maranhão.
Ainda sob a presidência do sindicato, resiste a uma sangrenta invasão de policiais ao sindicato de Pindaré Mirim e se coloca em defesa dos trabalhadores, quando foi vítima de dois tiros de fuzil no pé direito, arrastado e levado por policiais.
Preso na cadeia de Pindaré Mirim por cerca de seis dias e sem assistência médica, a informação se espalhou e Manoel foi transferido para cuidados médicos em São Luís, mas a infecção já havia chegado a um ponto tão crítico que a perna teve que ser amputada.
Com o corte irregular e sem cicatrização, Manoel foi levado a São Paulo para cuidados médicos com o apoio dos trabalhadores rurais e movimentos sociais, onde sofreu uma nova amputação, agora próxima ao joelho.
A situação causou alvoroço e, com medo de um levante popular, o então governador do Maranhão, José Sarney ofereceu deslocamento aéreo de volta ao estado, tratamento médico, cargos políticos e dinheiro, em troca de silêncio e apoio.
Com todas as propostas rejeitadas, Mané passou a usar uma perna mecânica e fincou em sua história a marca de sua resistência sob o lema: “Minha perna é minha classe!” e com o apoio de militantes da Ação Popular (AP) intensificou ainda mais a luta camponesa e passou a percorrer outros estados e países para estudos e palestras.
Com o conjunto de desafetos acumulados e a constante perseguição, Mané foi preso por mais de três anos e duramente torturado, até conseguir exílio em Genebra, na Suíça, com o apoio de entidades de direitos humanos e da Anistia Internacional.
Refugiado em Genebra durante três anos e sete meses ao lado da companheira, militante e assistente social Denise Leal, período em que nasce a filha mais nova, Mariana Nóbrega, Mané dedica esse período a estudos e palestras em países como a França, Bélgica, Itália, Alemanha, Holanda, Suíça, Suécia, Dinamarca, Noruega, Espanha, Portugal e Argélia, na África.
Com a anistia em 1979, Manoel da Conceição retorna ao país e participa da articulação de inúmeras associações, entidades e movimentos sociais para a organização popular, como a articulação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região e a fundação de organizações como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU) e do Partido dos Trabalhadores (PT).
Ao longo dos anos, é amplamente homenageado em todas as regiões do país por entidades não-governamentais e governamentais, entre as quais a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o Governo Federal, e com o recebimento do título de Doutor Honoris Causa da Unisulma, em Imperatriz, e da Universidade Federal do Maranhão, em São Luís.
A partir de 1984 passa a residir com a família em Imperatriz, onde se dedicou a cuidar da formação e organização de trabalhadores rurais de toda a região sul e sudoeste do Maranhão e permaneceu até os últimos anos de vida.
Com as condições físicas e psicológicas já debilitadas após os 80 anos de idade em razão de consequências dos anos de tortura, Manoel recebe o apoio incondicional da companheira Denise Leal, que ao seu lado seguiu a missão de estímulo da organização da luta popular na região. Com as portas da casa da família sempre aberta às lideranças políticas e de movimentos sociais, ouvia atentamente e vez ou outra lembrava de seus tempos de rebeldia e luta.
Submetido a uma cirurgia para retirada de pedra na vesícula em 16 de julho e com a saúde já debilitada, Manoel da Conceição seguiu internado no Hospital Macroregional de Imperatriz durante quatro semanas, que lhe renderam outras complicações, até o desenvolvimento de uma broncopneumonia aguda, com necessidade de entubação, da qual não resistiu e veio a óbito por volta de 7h do dia 18 de agosto.
O corpo de Manoel da Conceição será sepultado sob homenagens dos movimentos sociais na tarde desta quinta-feira (19) em Imperatriz, em meio à agenda do presidente Lula pelo Nordeste, que ao pisar em solo maranhense prestou suas homenagens ao lado do governador Flávio Dino.
Em uma das últimas entrevistas concedidas, em 2014, Manoel da Conceição foi questionado pelo jornalista do Brasil de Fato Márcio Zonta: "O que faz um homem que chega aos 80 anos com tanta história?". Em resposta, afirmou: "Entrego-a à minha classe, para que continuem a minha história!".
* Com informações da obra “Manoel da Conceição, Sobrevivente do Brasil”, edição especial de celebração dos 80 anos de Manoel Conceição, de Adalberto Franklin (2014).
Edição: Vivian Virissimo
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