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Moradores de Cubatão temem se tornar as próximas vítimas da Vale

Rompimento da barragem em Brumadinho reforça temor de um desfecho semelhante em empreendimento controlado pela mineradora: um buraco maior que o Maracanã, aberto no mangue, para estocar lodo tóxico

Publicado: 04 Fevereiro, 2019 - 09h26 | Última modificação: 04 Fevereiro, 2019 - 09h35

Escrito por: Cida de Oliveira, da RBA

Divulgação
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O rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão, em Brumadinho, no último dia 25, que causou a morte já confirmada de 115 pessoas, fez outras 248 desaparecerem no meio de sua lama e causou um dano ambiental incalculável, colocando em estado de alerta os moradores de Cubatão, na Baixada Santista. Eles temem estar entre as próximas vítimas da mineradora, que por meio de uma subsidiária, a VLI, abriu uma imensa cratera com 400 metros de diâmetro e 25 metros de profundidade – maior que o estádio do Maracanã – em pleno mangue, do lado cubatense do canal Piaçaguera. É a chamada cava subaquática.

Ali estão depositados 2,4 bilhões de litros de lodo contaminado, dragados de um dos canais do Porto de Santos, durante obras de alargamento de seu terminal para a atracagem de navios maiores. Todos esses rejeitos industriais são da época em que o município era conhecido mundialmente como "Vale de Morte" pelo excesso de poluição, e estavam sedimentados no fundo do mar. Depois da transferência, sequer foram sedimentados com areia.

Criada em 2010 para aglutinar todos os ativos de carga da Vale, a VLI Logística concluiu em 2017 suas obras, que beneficiam também a Usiminas, empresa que em 1993 se fundiu com a antiga Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) no processo de privatização.

terminal da VLI Vale no Porto de Santosterminal da VLI Vale no Porto de Santos

Ameaça constante

"A possibilidade de rompimento da cava existe e é uma ameaça constante. Navios grandes farão a curva exatamente onde a cava está localizada e o risco de impacto é grande. Além disso, mesmo antes de qualquer rompimento, no próprio processo de dragar o sedimento contaminado e de dispor na cava, já houve a liberação e espalhamento desses produtos tóxicos no sedimento do estuário e dos manguezais", afirma a bióloga e oceanógrafa Sílvia Sartor, que atualmente desenvolve pesquisa de inovação em tecnologia de informação espacializada de apoio à gestão ambiental em regiões marinhas costeiras na Escola Politécnica da USP (Poli/USP). "Não houve qualquer preocupação da Vale em avisar as comunidades de pescadores sobre o risco da pesca no local. A irresponsabilidade social tem sido uma marca na atuação da Vale."

Na avaliação da especialista, outro ponto em comum entre as comunidades de Brumadinho e de Cubatão é o "desdém da Vale com a população vizinha aos seus empreendimentos e também com o país".

O "pedido de desculpas" oficial do presidente da Vale Fábio Schvartsman após a tragédia, seguido de um "como vou dizer que a gente aprendeu (após o acidente de Mariana, em 2015) se acaba de acontecer um acidente desses?" expressa uma postura de descaso da empresa com as comunidades onde estão seus empreendimento. "Há suspeitas de financiamentos de campanhas políticas como alternativa aos compromissos para evitar os desastres socioambientais. Há constatação de que a empresa sabe muito bem dos riscos iminentes de suas bacias de rejeito, mas opta por fazer 'vistas grossas'", diz Sílvia.

Outra constatação é que desde que a empresa foi privatizada, em 1997, durante o governo de FHC, o foco passou a ser o aumento da produção e os lucros. "Para eles, nosso Brasil é o local onde tudo pode, com a complacência de políticos corruptos. Matar o meio-ambiente, destruir a biodiversidade, colocar em risco seus funcionários e a população brasileira é a conduta contemporânea da empresa."

"Ao contrário do que faz em outros países, a Vale privatizada deixou de investir em pesquisas no Brasil. Apesar de ter recebido propostas de cientistas renomados sobre alternativas para reduzir os riscos do acúmulo de seus dejetos, preferiu a economia e os riscos", afirma.

Do ponto de vista da forma, conteúdo e objetivos, a barragem de rejeitos e a cava subaquática de Cubatão são consideradas iguais por especialistas e ambientalistas. Ambos modelos são imensas bacias de contenção, que visam armazenar rejeitos tóxicos, compostos por substâncias potencialmente causadoras de câncer, alterações celulares e outros problemas graves de saúde a curto, médio e longo prazo.

Construídas com tecnologias superadas e mais baratas, quando existem outras mais eficientes e mais seguras, porém mais caras, que permitem até mesmo o reaproveitamento de muitos dos componentes, são o símbolo da busca pelo lucro a qualquer preço, mesmo que seja a vida de pessoas, animais e o meio ambiente equilibrado.

Inimigo invisível

"É um choque descobrir que tem 2,4 bilhões de litros de sedimentos altamente tóxicos no seu quintal, naquilo que considera atrativo turístico, o manguezal", afirma Leandro Silva de Araújo, um dos coordenadores do movimento contra a cava. A barragem do Córrego do Feijão represava 12,7 milhões de metros cúbicos de rejeito de mineração. A de Mariana, 50 milhões de metros cúbicos.

Para o ativista, uma diferença entre os depósitos de Cubatão e de Brumadinho é que a cava acondiciona, comprovadamente, rejeitos com maior potencial tóxico para a saúde humana e o meio ambiente. "Estão ali acumulados materiais cancerígenos e causadores de mutações nas células, como o cádmio, cromo, mercúrio, arsênio, níquel e os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPA)."

Rejeitos de mineração contêm basicamente óxido de ferro, amônia, sílica, silte e argila, mas se tornam ainda mais perigosos ao se juntar à água de córregos, geralmente com outros contaminantes diluídos.

Essa particularidade, segundo ele, torna a cava um inimigo invisível. Apesar de não trazer o risco de soterramento semelhante aos crimes ocorridos nas cidades mineiras, a cratera está dentro da água e os rejeitos contaminados ali depositados não têm coloração diferente do ambiente em que estão inseridos, o que dificulta a observação e fiscalização. Conforme Ação Civil Pública do Ministério Público Federal e estadual, com base em dados da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), pelo menos 7 mil metros cúbicos desses contaminantes poderiam extravasar. "Em última análise, mesmo que em pouca quantidade, poderiam chegar às praias".

A exemplo das barragens que até seu rompimento eram consideradas seguras, a cava é uma tecnologia que não oferece riscos, segundo a própria Cetesb. "E as manchetes estão aí para comprovar que não podemos acreditar em tudo o que se fala a respeito", ressalta Leandro.

Segundo relatório da companhia sobre a qualidade das águas costeiras do estado de São Paulo, em 2017 foram executadas operações de dragagem de recuperação do canal de navegação do local. O monitoramento, conforme o documento, mostrou alterações importantes na qualidade dos sedimentos em relação a metais e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos na região e quanto a nutrientes dissolvidos na água e em sedimento. Ainda segundo o relatório, é provável que os impactos observados sejam pontuais, "mas a região continuará a ser monitorada e caso seja identificada a necessidade de intervenção, ações mitigativas ou corretivas serão efetuadas".

“Era de se esperar que o órgão ambiental atuasse preventivamente em defesa do equilíbrio ambiental, e não de forma reativa a possíveis efeitos nocivos ao ecossistema”, diz o ativista, lembrando que há na região pescadores artesanais que sofrem com os constantes acidentes portuários. Em 2015, um incêndio no terminal da Ultracargo matou muitos peixes. Por isso, são obrigados a pescar cada vez mais longe.

"Até quando aceitaremos que o 'crescimento' e a 'geração de empregos' justifiquem a escolha, pelas empresas, das alternativas mais baratas mesmo colocando em jogo a saúde, a segurança e meio ambiente? O crime da Vale em Brumadinho colocou em cheque mais uma vez o poder público, os órgãos de fiscalização e controle, a relação íntima entre o capital e os políticos e a pouca efetividade dos Conselhos de Meio Ambiente que deveriam zelar pelo equilíbrio ambiental. Chega de 'Vales da Morte'", diz.

Grupos econômicos

O esforço de setores da mídia patrocinados por empresas para desvincular a cava subaquática das barragens de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, é considerado "no mínimo curioso" pela integrante do movimento contra as cavas subaquáticas Cíntia Augusta Labes do Prado. "Os ativistas do movimento Cava é Cova apostam que a motivação se deve aos projetos do governo federal, que há tempos vêm ampliando, a qualquer custo, as atividades do maior porto da América Latina, localizado no estado mais rico do país, beneficiando grandes grupos econômicos."

Apesar de inadequada em todo o seu processo, a dragagem está longe de ser a principal crítica do movimento. Pesa ainda contra a VLI e empresas beneficiadas a incoerência do projeto com aval do governo paulista de limpar o canal de navegação para receber navios maiores, transferindo todo esse material contaminado, sem tratamento, no mesmo canal, a poucos metros de distância da calha de navegação, podendo ser atingido por navios. "O agravante é que esse material tóxico é da mesma cor que o material presente no estuário. E se dependermos exclusivamente dos renomados 'engenheiros' e 'fiscais governamentais para tomarmos ciência, provavelmente já será muito tarde quando isso acontecer", afirma Cíntia.

No seu entendimento, termos que passaram a ser repetidos sobretudo a partir do desastre em Brumadinho, de que "o empreendimento é seguro e que não oferece riscos" já foram ditos por representantes das empresas envolvidas ou pela fiscalização do governo. "E como se não bastasse Mariana, Brumadinho nos mostrou como a ganância e a justificativa para o 'desenvolvimento' podem ser cruéis", destaca, endossando os companheiros do movimento.

Tão grande como o temor dos ativistas é a solidariedade à comunidade de Brumadinho. Na noite desta sexta-feira (1), o movimento realizou ato em Santos, para arrecadação de água mineral para as vítimas da barragem. E no sábado, na Vila dos Pescadores, em Cubatão, foi a vez de distribuir panfletos para chamar a atenção da população sobre o perigo acumulado a poucos metros dali.