Escrito por: Vitor Nuzzi, da RBA
O objetivo é organizar uma frente nacional de pressão ao Supremo. Para ativistas, permanência da lei de 1979 explica crimes do presente
A Lei da Anistia (Lei 6.683), aprovada por margem estreita no Congresso em 1979, ainda sob a ditadura, precisa ser revista como passo fundamental para a cultura da impunidade oficial começar a mudar no Brasil. Esse foi o principal tema da terceira edição do movimento Vozes do Silêncio, na noite de ontem (31). “Não houve pacto nenhum”, afirmou Nilmário Miranda, primeiro ministro dos Direitos Humanos. Assim, a tese do “pacto” é lembrada até hoje para tentar justificar a aceitação da lei, que teria “pacificado” o país.
Para Nilmário, o a luta pela anistia já tinha se tornado um movimento social, e a aprovação daquele lei, imposta pelo governo, representou uma derrota popular. Além disso, o ex-ministro considerou um “espantoso casuísmo” a inclusão, no texto final, dos chamados crimes conexos, neles incluída a tortura. Com base na lei, o Judiciário tem negado a sequência de ações contra agentes do Estado que praticaram torturas, considerados crimes contra a humanidade pelo Direito internacional. Portanto, imprescritíveis.
A primeira edição do evento, em 2019, uma reação contra a pretensão do governo de comemorar o golpe, reuniu milhares de pessoas no parque do Ibirapuera, em São Paulo. A partir daí surgiu o movimento Vozes do Silêncio. Nesta terceira edição, entidades e ativistas lançaram a campanha #ReinterpretaJáSTF, para que o Supremo Tribunal Federal volte a analisar o pedido de revisão da lei. Em 29 de abril 2010, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153), a Corte negou a reinterpretação, mas há apelação pendente.
“Quantos desses responsáveis por essa violência do Estado foram punidos? Nenhum”, lembrou o ex-secretário de Direitos Humanos Rogério Sottili, citando episódios como fechamento do Congresso, afastamento de juízes, prisões arbitrárias, torturas, mortes e desaparecimentos, censura, corrupção, sequestro de crianças corrupção e fechamento de sindicatos. “Quando se leva em frente esse entendimento (contrário à revisão da lei), você autoriza que presidentes façam apologia à tortura, que o Estado continue a matar a população pobre, negra, periféricas”, acrescentou Sottili, hoje diretor do Instituto Vladimir Herzog, defendendo um “grande movimento nacional” pela revisão. “Para que o passado nunca mais bata à nossa porta.”
O próprio Herzog é exemplo do efeito da Lei da Anistia No ano passado, por exemplo, a Justiça rejeitou ação proposta pelo Ministério Público Federal para punir os responsáveis pela morte do jornalista, em outubro de 1975. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por não investigar o caso.
Em seguida, na leitura do manifesto pela reinterpretação, o ator Sérgio Mamberti lembrou que o Brasil já foi condenado duas vezes por questões relacionadas à ditadura. A outra foi em 2010, devido ao caso Araguaia, nos anos 1970. “Policiais, juízes, promotores e delegados convivem com a tortura e com a violação dos direitos mais básicos das pessoas, sejam culpadas ou inocentes. (…) A decisão do STF em 2010 não é condizente com os pactos internacionais”, disse Mamberti.
A procuradora da República Eugênia Gonzaga propôs uma “volta no tempo” a fim de fazer “a transição correta do regime autoritário para o regime democrático”. Ela está à frente de um grupo de trabalho sobre memória na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), depois de ser removida da presidência da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, por criticar o governo. O presidente da República foi citado várias vezes por sua condução, ou falta de, no combate à pandemia, que ontem bateu novo recorde vítimas.
Da mesma forma, várias vezes o governo foi criticado por defender a “celebração” do golpe de 1964. “Comemorar estupros? Afogamentos? Assassinatos? Exílios? O fechamento do Congresso?” reagiu Edival Cajá, do Movimento Verdade e Justiça em Pernambuco. “Querem comemorar o ilícito!”
“Nós, familiares, somos continuamente torturados”, diz a ativista Diva Santana, da Bahia, que em 1973 perdeu sua irmã, Dinaelza, morta no Araguaia. “É inconcebível que torturadores não foram unidos, e torturadores atuais também”, lamentou.
Durante o ato pela revisão da Lei da Anistia, foram homenageados o maestro Martinho Lutero e o compositor Aldir Blanc, que morreram em 2020. Ao comentar a luta pela anistia, Nilmário Miranda lembrou daquela que talvez seja a obra mais famosa de Aldir, em parceria com João Bosco. “Elis Regina fez um show no Palácio dos Artes (tradicional casa de Belo Horizonte). Quando ela cantou O Bêbado e a Equilibrista, 1.200 pessoas levantaram e cantara com ela.”
Ele falou em reconstrução. E informou que a expectativa é de inaugurar ainda neste ano um memorial de direitos humanos no local onde funcionava o Dops em Minas Gerais. “Acho que a derrota do Bolsonaro é inevitável. (…) Tudo vai se reconstruir. Vamos recuperar o que perdemos e adicionar frentes de luta.”
O ato terminou com o cantor Renato Braz interpretando Coração Civil, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Depois de um pedido de bis, ele surpreendeu ao cantar, de forma inédita, justamente O Bêbado e a Equilibrista, tocando tamborim. Lembrou que quando ele e Eugênia Gonzaga foram ao Ibirapuera nos preparativos para o evento de 2019, a expectativa era reunir no máximo 1.500 pessoas. Apareceram 10 mil.