Escrito por: Lu Sudré Brasil de Fato | São Paulo (SP)
Moradores do Acampamento Quilombo Campo Grande foram alvo de violenta reintegração de posse na última sexta (14)
“Eles passaram por cima do meu café com trator. Passaram por cima do meu pomar. Queimaram minhas bananeiras. Elas estavam todas produzindo, com vários cachos de banana que eram pra nós, mas também pra vender. Passar lá e ver tudo destruído é muito difícil”.
Com a voz trêmula, a sem-terra Helen Mayara dos Santos relata os momentos de agonia vividos pelas famílias do Quilombo Campo Grande, localizado em Campo do Meio (MG), durante reintegração de posse na sexta-feira da semana passada, dia 14 de agosto.
A memória das bombas de gás lacrimogêneo e do avanço da Polícia Militar contra os acampados que resistiram ao despejo por quase 60h, ainda é latente três dias após a ação.
A família de Helen é uma das oito que foram diretamente atingidas pela ordem de reintegração em favor de Jovane de Souza Moreira, empresário que tenta reativar a falida Usina Ariadnópolis Açúcar e Álcool. Ao consultar o site da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) é possível constatar que o CNPJ da empresa está atrelado a uma dívida total de mais de R$ 406 mi.
Após decretar falência em 1996, a empresa não pagou os devidos direitos aos trabalhadores. Conforme a PGFN, são R$ 1,2 milhão em multas trabalhistas. O valor em relação ao não pagamento de FGTS ultrapassa R$ 1,5 milhão.
Dois anos anos depois, ex-funcionários que até hoje não receberam seus direitos se somaram ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocuparam o terreno e revitalizaram a área abandonada.
Hoje, a área do Quilombo Campo Grande conta com 11 acampamentos que abrigam mais de 450 famílias, sendo que 8 delas perderam suas casas na última sexta, de acordo com o MST. São 36 pessoas atingidas, incluindo 16 crianças.
Considerando os agricultores que optaram por deixar as casas antes da data do despejo, foram 14 famílias afetadas pela decisão.
Segundo o MST, a reintegração de posse da última sexta-feira é ilegal por abranger uma área maior do que a determinada judicialmente. A primeira ordem de despejo, referendada na 2ª instância, afirmava que ela tinha 26 hectares. Porém, em fevereiro, a Vara Agrária da Comarca de Campos Gerais dobrou o tamanho do terreno a ser reintegrado.
As famílias que viviam na área em questão desocuparam o terreno nesse meio tempo. De acordo com Turia Tule, da coordenação Estadual do MST, o perímetro reintegrado é bem maior do que os 52 hectares.
“É muita tristeza e aflição das famílias. Estamos acolhendo a maioria delas sem suporte nenhum da prefeitura ou do estado. Estamos nos organizando pra que essas famílias fiquem nas nossas casas, de forma solidária. Esse sentimento é muito profundo de tristeza mas também há um importante, vindo da solidariedade que temos recebido”, afirma Tule.
Justamente por ocupar uma área que não estava prevista na reintegração, Helen e seu marido, Cícero Mariano da Conceição Silva, não esvaziaram sua casa.
Ela lamenta a destruição dos mais de mil pés de banana, assim como do pomar de frutas que contava com a produção de laranja, abacate, manga, amora, acerola e outras frutas. Além de consumo da família do casal, que tem dois filhos de 11 anos, a venda dos produtos era a única renda da família.
“Não era só onde morávamos, era do que sobrevivíamos. Era nossa sobrevivência aquele espaço”, frisa a sem-terra, que morava a aproximadamente 1 km de onde o MST aponta como o limite do terreno a ser reintegrado.
“Ficamos sem casa, ficamos sem nada. Nossas coisas foram tiradas. Estamos sem roupa... estamos com a ajuda do nosso próprio povo. Foi uma coisa bem violenta. Eles chegaram invadindo, tirando nossas coisas sem estarmos presentes. Foi muito difícil para nós, vermos eles tirando as coisas daquela forma, com aquela violência, quebrando o que construímos em tantos anos. Foi uma coisa muito triste”, desaba Helen, que mora no Quilombo Campo Grande desde os 14 anos.
A acampada conta que recentemente sua irmã e seu sobrinho de 4 anos começaram a morar com sua família. Juntas, as crianças das famílias e outros pequenos do acampamento usavam a casa de Helen para realizar cirandas e brincadeiras.
No dia do despejo, entretanto, as atividades foram duramente interrompidas. “Quando teve o ataque, tivemos que tirar as crianças daquele espaço. Foi um desespero total. As crianças chorando. Meu filho estava na frente ajudando quando ele não me viu abriu a boca desesperado. O helicóptero em cima da minha casa. As crianças ali embaixo e eles jogando bomba”, relembra ela.
Ainda na semana passada, o Movimento recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que o despejo seja suspenso.
Reconstrução
O Acampamento Quilombo Campo Grande, produtor do café Guaií, conhecido em todo país, recebeu manifestações de solidariedade de dezenas de organizações populares, políticos e personalidades.
Tuira Tule relata que a população de Campo do Meio, que conhece o trabalho dos acampados há décadas, também tem prestado apoio.
Segundo ela, é com a força que emerge dessa solidariedade que o Quilombo irá reerguer tudo o que foi destruído na reintegração.
‘É um sentimento coletivo que mostra que a resistência continua. A gente vai reconstruir nosso território com muito mais força e muito mais garra. Cada tijolo que vimos ser demolido na nossa frente, que cada criança viu, vamos reconstruir. Estamos recebendo apoio da população, das organizações, para que possamos fazer isso de forma coletiva”, diz Tule.
A Escola Popular Eduardo Galeano, onde crianças, jovens e adultos do acampamento eram alfabetizados, foi destruída antes mesmo da reintegração de posse ser executada na sexta (14).
A reconstrução do espaço, uma das poucas áreas coletivas do acampamento, é um passo essencial para os sem-terra. “O primeiro tijolo quebrado foi da nossa escola. Vamos prioritariamente reconstruir a casa das famílias, mas, nossa vontade é também reconstruir nossa escola Eduardo Galeano e colocá-la de pé novamente”, endossa a coordenadora estadual do MST.
A acampada Débora Vieira de Jesus Borges destaca que, para além da alfabetização, na Escola aconteciam aulas de capoeira, curso de qualificação agrícolas, artesanato e outras atividades.
“Para nós é uma dor muito grande passar na estrada e ver nossa escola derrubada. Nossa esperança, nosso projeto de reforma agrária, prioriza a educação. Nós vamos reconstruir nossa escola o mais rápido possível”, reitera Borges.
Violência contínua
Moradora do Quilombo Campo Grande há 14 anos, Débora denuncia que a ostensividade contra os moradores é frequente na região por parte de “capangas do proprietário da Usina”.
Sua casa foi a única próxima à sede da Fazenda Ariadnópolis que não foi despejada. Mas, no dia da ação policial, Débora foi atingida com as bombas de gás e viu o pasto vizinho pegar fogo.
O local, atualmente, serve como uma base de apoio pro Movimento e principalmente para os atingidos pelo despejo.
“Eu não posso mais morar naquele espaço. Além de fazer parte da coordenação, sofremos o tempo inteiro com ameaças. É muito perto. As crianças olharam tudo o que aconteceu do outro lado”, afirma.
“O prédio da Sede é de frente pra minha casa. A vista é pra todas as nossas áreas de acampamento. Eles usam binóculos 24h, tiram foto, ficam filmando. Quando saímos na rua, sempre passa carro em alta velocidade”.
Conforme nota enviada pelo governo estadual de Romeu Zema à reportagem, as famílias que foram alvo da reintegração foram encaminhadas para locais disponibilizados pela Prefeitura de Campo do Meio.
Por outro lado, a integrante do MST declara que apenas algumas famílias foram direcionadas e que a estrutura não é adequada.
“Tem duas famílias nossas que estão morando em creche de escolas e, até onde sabemos, as creche estavam com a presença de pessoas com coronavírus. Não sabemos se foi desinfetada. Uma delas estava sem água. Uma precariedade total”, critica Nunes.
Procurada, a Prefeitura não respondeu questionamento da reportagem sobre o assunto até o fechamento dessa matéria.
Já o governo estadual, alegou que antes da reintegração de posse “a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) enviou ao Judiciário uma manifestação coletiva junto a outros órgãos, como a Comissão de Direitos Humanos da OAB e o Conselho Estadual de Direitos Humanos, para que reintegração de posse na gleba da Fazenda Ariadnópolis não fosse realizada durante a pandemia da Covid-19. Com a negativa do Judiciário, a Polícia Militar acompanhou o cumprimento da ordem judicial’.
No mesmo email, a assessoria de imprensa de Zema enviou também uma nota assinada pela Polícia Militar de Minhas Gerais (PM-MG) comentando a ação.
“Após 50 horas de negociação, foi necessária a atuação do Batalhão de Choque da PMMG e o emprego da força legal e proporcional, para que o processo de reintegração fosse finalizado. A PMMG esclarece ainda que, até o presente momento, não foram identificados feridos graves e reitera que todas as suas ações foram pautadas dentro dos princípios constitucionais da Proporcionalidade e Legalidade, sempre com foco na minimização de danos, preservação de vidas e na proteção aos direitos humanos, que é a base de atuação da instituição”, diz o texto.
Na opinião de Helen dos Santos, tanto o governo quanto a Prefeitura compartilham da responsabilidade pelo despejo das famílias. “Eles queriam que isso acontecesse. Sempre torceram pra gente sair dali. É um descaso total. Uma coisa desumana. Em plena pandemia, desabrigaram as pessoas. Fizeram a gente sair do isolamento e ter contato com pessoas que não sabemos como estão de saúde. Colocaram em risco, não só nós, da roça, mas o povo da cidade também”.