Escrito por: Igor Carvalho
Um dos maiores juristas do País explica o que são as “pedaladas fiscais” e porque é inconstitucional tirar Dilma do poder por esse motivo
Um dos mais renomados juristas do País, o constitucionalista Pedro Serrano, em entrevista exclusiva ao portal da CUT, afirmou que o processo de impeachment movido contra a presidenta Dilma Rousseff, “não tem fundamento jurídico.”
Pedro Serrano, que é professor de Direito Penal da PUC-SP e foi um dos 30 juristas que entregaram pareceres individuais sobre o processo de impeachment à presidenta, no último dia 7 de dezembro, em Brasília, alerta para os riscos de se abrir um precedente perigoso, ao se aprovar o afastamento de Dilma.
“Caso seja aprovado o impeachment, trará insegurança para todos os governos e ninguém vai poder reclamar pois o precedente estará aberto”, afirmou Serrano, que também criticou o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e explicou a origem da expressão “pedalada fiscal”.
Confira a entrevista na íntegra:
CUT: O impeachment é constitucional?
Pedro Serrano: O pedido não tem fundamento jurídico. Primeiro, temos que circunscrever o que é o objeto do pedido de impeachment hoje. Apesar dos advogados que subscreveram terem dito que a denúncia deles foi integralmente aceita, isso não é verdade, basta você ler o despacho do Eduardo Cunha. Existe um texto de despacho do Cunha em que ele deixa claro que todos os fatos da gestão passada foram excluídos, o que exclui, por exemplo, a manifestação do Tribunal de Contas da União (TCU). Também não faz parte nada relativo à Petrobrás. Só restaram duas questões, os decretos não numerados de criação de crédito adicional, por excesso de arrecadação e superávit financeiro, que foram produzidos em 2015; e o texto, fala de forma genérica de “pedalas fiscais”, que teria sido cometida no Plano Safra, e que o problema é que a acusação não está clara nesse sentido, não sabemos nem se é essa pedalada mesmo e porque ela seria ilegal. Na minha opinião, a presidenta nem deveria se defender disso, porque a acusação tem que ser clara. Então, na prática, a presidenta deve se defender apenas dos decretos.
CUT: Porque o senhor entende que não é “pedalada fiscal”?
Pedro Serrano: Bom, a partir do momento que o próprio Cunha exclui em seu decreto todas as questões de 2014, todo o debate da mídia é infundado. Primeiro, “pedalada fiscal” é um termo confuso e de mídia, não é uma expressão jurídica. A “pedalada fiscal”, em sua essência, seria a prática de manobras contábeis para esconder a realização de operações de créditos entre bancos públicos e a União. Serei sintético: Não houve operação de crédito, o que houve foi atraso de pagamento e atraso de pagamento não se confunde com empréstimo. Operação de crédito nada mais é do que um contrato de empréstimo, sob o ponto de vista jurídico, uma coisa é você atrasar pagamento, outra coisa é você tomar um empréstimo. Se você vai ao banco pedir empréstimo, é um tipo de relação, se você atrasa um pagamento de uma conta, é outra. Se eu compro um imóvel em duas vezes e atraso o pagamento, eu não estou fazendo empréstimo, inclusive terei sanções pelo atraso. No caso do Plano Safra é pior, porque é apenas o atraso no envio de subsídios. A União subsidia a safra, através do BNDES, e houve um atraso nesse repasse. O mais relevante de tudo é que a chamada “pedalada” não foi praticada pela presidenta, não é um ato assinado por ela, não existe prova alguma de que ela tenha assinado. A Constituição, nesse episódio, é clara, só pode haver impeachment em atos praticados pela presidenta da República. Ainda há um último argumento: Ainda que consideremos que a “pedalada” tenha sido praticada pela presidenta da República, o que é um absurdo, não há gravidade para um impeachment, é uma mera ilegalidade contábil. Mesmo que houvesse a “pedalada”, não houve prejuízo ao patrimônio público, não houve corrupção da presidenta e nem enriquecimento de terceiro, apenas uma medida para interesse público. Não há recall no Brasil, não adianta querer trocar a presidenta porque não concorda com o governo dela, tem que haver argumento jurídico.
CUT: E os decretos, o que seriam? Eles são passíveis de impeachment?
Pedro Serrano: O que se imputa é que a presidenta teria praticado o ato porque ela teria assinado os decretos, que seriam ilegais porque falam em excesso de arrecadação quando o Executivo teria mandado para o Parlamento um orçamento que teria déficit. Eles estão confundido aí, excesso de arrecadação em um tributo específico, com excesso de arrecadação geral da administração pública. Você pode, perfeitamente, ter previsto arrecadar R$ 1 bilhão de Confins e ter arrecadado R$ 1,5 bilhão, houve um excesso de arrecadação de R$ 500 milhões. Na hora em que você soma o Confins com todos os outros tributos que a União arrecada, há déficit na arrecadação geral. Em uma fonte, há excesso, não no geral, e essa é a grande confusão que a denúncia faz, uma confusão primária do ponto de vista jurídico. Mas, mesmo que haja ilegalidade no processo de apuração da arrecadação, não é a presidenta que apura isso, ela não é onisciente e onipresente, não há como a Dilma estar em todas as agências bancárias do País, vendo quanto cada cidadão está pagando de tributo. Isso é feito pela Receita Federal, que têm uma baita estrutura para fazer isso. A Receita informa a Dilma. Também nesse caso, não há enquadramento na hipótese de impeachment. Vamos mais longe, mesmo que a Dilma fosse responsável direto por essas análises, não seria motivo para impeachment, não há gravidade para tanto, é algo corrente. Se houve impeachment por conta disso, todos os 27 governadores e mais de cinco mil prefeitos sofrerão impeachment. No governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso houve vários, o vice-presidente Michel Temer assinou diversos quando a Dilma não estava no exercício da presidência. Gente, isso é muito comum. Na realidade, não há um processo de impeachment verdadeiro, estão caçando razão para cassar a presidenta, isso não é permitido no nosso sistema político. A finalidade não é apurar a conduta da Dilma, apenas cassar o mandato dela.
CUT: Caso o impeachment se confirme, o que pode significar a abertura desse precedente jurídico?
Pedro Serrano: Olha, vai abrir uma ferida institucional no Brasil, que talvez a democracia brasileira nunca consiga se curar. Vai ser um vale-tudo na política. A lógica da disputa institucional na democracia é que ela seja regrada por normas, ou seja, eu tenho um grupo que defende uma ideologia de esquerda e você de direita, nós vamos disputar o poder respeitando um conjunto de normas. Caso o impeachment seja aprovado, vamos jogar no lixo as normas e partir para a subjetividade e a violência na política. Essa gente está se aproveitando de um momento de enfraquecimento político do governo e de uma crise econômica. A simples configuração dessa conduta, caso seja aprovado o impeachment, trará insegurança para todos os governos e ninguém vai poder reclamar pois o precedente estará aberto. O Brasil virará uma terra de ninguém, de xerifes, onde quem tiver força ocasional prevalecerá. Isso vai dar no caos e é muito sério. No Congresso, parlamentares já estão se estapeando.
CUT: O senador Delcídio Amaral, por exemplo, foi preso por tentar obstruir a Justiça. Não faz o mesmo, o deputado Eduardo Cunha?
Pedro Serrano: As nossas instituições estão lenientes com esse tipo de prática. O próprio Congresso é nativo em relação à essas condutas desviantes de seu presidente. Esse senhor está colocando em risco a vida de nossa democracia, é muito grave o que ele vem fazendo. O Judiciário deveria tomar uma atitude tão severa quanto a que tomou no caso do senador Delcídio. O senador cometeu um erro grave, mas a impressão que dá é que o Supremo reagiu por ter sido ofendido, já que na gravação o Delcídio ofende, injustamente, o Supremo. Porém, quando o Cunha ofende a Câmara, o povo, a Constituição e a democracia, ele não sofre nada. O Supremo tem que ser um guardião da Constituição e precisa reagir em relação à esse tipo de conduta. O Procurador-Geral da República tem que agir, tem que paralisar esse tipo de conduta, estou aguardando isso.