Escrito por: Clara Assunção | RBA
Obra analisa casos famosos e anônimos de assassinatos de mulheres e o papel do jornalismo na legitimação da violência de gênero
Ainda hoje, a jornalista e escritora Vanessa Rodrigues se incomoda com a forma que o assassinato da auxiliar de serviços hospitalares, Claudia Silva Ferreira, 38 anos, foi noticiado pela mídia. Atingida por um tiro durante uma operação da Polícia Militar em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, Claudia foi jogada no camburão da PM, que a levaria para atendimento médico. Porém, no trajeto até o hospital, a porta traseira do veículo se abriu e seu corpo tombou para fora do carro, ficando preso por uma parte de sua roupa no para-choque. O que fez com que ela fosse arrastada no asfalto da Estrada Intendente Magalhães por 350 metros.
Vítima da violência policial, a auxiliar, mãe de quatro filhos, mulher negra e periférica, até hoje, no entanto, – sete anos após o crime brutalcompletados neste mês de março –, tem toda a história da violência que sofreu reduzida nas manchetes da mídia “grande” como “morte de mulher arrastada”. Sem qualquer aprofundamento e dimensão da violência de gênero que está por trás dele.
O fato de Cláudia assim ter se tornado conhecida e nomeada “é muito emblemático sobre a maneira como essa narrativa jornalística foi misógina”, segundo Vanessa. “Um não sujeito, alguém que não tinha nome. Sempre me lembro da história dessa mulher assassinada de um jeito tão brutal e tão indigno, de ter tido o seu corpo arrastado na rua. Quer dizer, tratado como nada. E ter sido conhecida e famosa como ‘Cláudia, a mulher arrastada’, ou só ‘a mulher arrastada'”, lamenta.
A maneira como o assassinato de Cláudia foi apresentado à opinião pública, contudo, é só um das dezenas de exemplos de como a mídia trata a morte de mulheres, inclusive os assassinatos motivados pela sua condição de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres. Este é o tema que Vanessa e a também jornalista e delegada regional do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul em Pelotas, Niara de Oliveira, investigam. A partir de matérias publicadas em sites e portais de notícias, as jornalistas buscam responder qual o papel da imprensa na narrativa da violência de gênero e na manutenção do machismo estrutural da sociedade. A discussão é o foco do livro Narrativa de Femicídios – título provisório. Obra que Vanessa e Niara preparam para lançar ainda no segundo semestre deste ano pela Drops Editora.
“Queremos isso, propor reflexões, um debate sobre as escolhas narrativas. A narrativa é o grande tema dos últimos anos, dos debates em todas as esferas da vida, política e social. Então é sempre o jeito como se conta uma história. O que a gente quer é promover um debate para que as coisas não sejam mais assim. Para que consigamos pensar daqui para frente como elas podem ser. Como podemos contar essas histórias sem que a vítima seja culpabilizada e revitimizada na narrativa. Para daí pensarmos qual o impacto da maneira justa e correta como essa história é relatada na diminuição dos índices de violência”, explica Vanessa.
Feministas muito antes de apostarem no jornalismo, como destacam, o incômodo com a linguagem usada para noticiar a violência contra as mulheres acompanha há anos as escritoras, apesar da falta de espaço de debate. Ainda estudante, na década de 1990, Vanessa se recorda que a única vez que o tema chegou a ser pautado na faculdade foi pelos aspectos “sensacionalistas” do assassinato da atriz Daniella Perez. Em 1992, ela foi golpeada 18 vezes com um punhal pelo ator Guilherme de Pádua. Um então colega e “par romântico” de Daniella na novela De Corpo e Alma, da Rede Globo.
À época foi apontado que o assassino assediava Daniella, antes mesmo do crime, na esperança de conseguir maior espaço na trama, que era escrita pela mãe da atriz, Glória Perez. Apesar disso, um ano antes de Guilherme ir a julgamento, em 1997, os futuros jornalistas colegas de Vanessa mais analisavam a forma como o crime havia sido noticiado, do que a perspectiva da narrativa e a natureza machista dele.
O tema, mais tarde, pautou uma reportagem especial da então estudante, que queria entender a reprodução da violência contra a mulher em telenovelas, motivada por uma cena em que uma personagem tinha o rosto navalhado pelo próprio companheiro que descobriu uma traição. “Eu me lembro que já fazia estágio numa organização não-governamental e algumas mulheres que trabalhavam comigo estavam ansiosas para ver essa cena, que foi catártica. Porque essa personagem, que traiu seu companheiro, era a grande vilã da novela. Então tinha toda uma narrativa de merecimento dessa violência”, recorda Vanessa.
Recentemente, a jornalista revisitou o texto em que entrevistou diversos autores de novela, inclusive a própria Glória Perez, e se orgulhou do material. Porém, ao mesmo tempo ficou espantada com a sua atualidade. Em 2015, Vanessa se juntou a Niara e outras mulheres. A maioria delas é profissionais da comunicação, mas o grupo conta até com delegadas de polícia. Juntas, criraram uma página no Facebook que, logo depois, se transformou na comunidade “Não Foi Ciúme”.
“Justamente porque essa era a justificativa que via de regra aparecia como motivo para uma mulher ser assassinada pelo companheiro e ex-companheiro”, explica a jornalista. Um levantamento mais recente sobre os casos de feminicídios, divulgado no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indica que em 88,8% deles, ocorridos no país em 2018, os assassinos tinham relação com a vítima. A comunidade buscava então observar a maneira como a mídia noticiava essa e outras faces da violência contra a mulher.
Desde então, as jornalistas contam que apuravam pelo menos cinco matérias por dia relacionadas à violência de gênero. Com um tempo, no entanto, o trabalho de análise foi ficando cada vez mais pesado, dado o teor dos crimes. O que foi arrefecendo e despertando gatilhos na própria comunidade. Mas tanto Niara como Vanessa mantinham em seu horizonte a ideia de levar o projeto para o campo da pesquisa científica e para fora das bolhas das redes sociais e seus algoritmos. “Disso surgiu a ideia de transformar parte desse trabalho que fazíamos, com foco em feminicídio, na publicação”, resume Vanessa.
Sem recursos para cobrir os custos de pesquisa, redação, edição e publicação do livro, Niara e Vanessa deram início a uma campanha no Catarse para arrecadar R$ 34.483 até o dia 2 de abril. Até agora, as jornalistas levantaram menos da metade do valor necessário para fazer a obra chegar às livrarias do país.
As autoras defendem que a produção do livro ocorre num momento “absolutamente oportuno” frente ao contexto de pandemia que agravou a ocorrência de violência contra as mulheres. Além disso, Niara e Vanessa observam que mesmo com a Lei 13.104, de 2015, que tipificou o feminicídio como qualificador do crime de homicídio pela sua natureza machista e misógina, a imprensa ainda reproduz uma narrativa que não aprofunda, reduz e até repassa a gravidade do assassinato às vítimas.
“É tudo muito relacionado à posse. O que aparece muito na narrativa da mídia é ‘matou por ciúmes’. Outra frase corriqueira nas matérias é ‘ matou por não aceitar o fim do relacionamento’. Até matou por ‘legítima defesa da honra'”, cita Vanessa. Os deslizes, no geral, são expostos principalmente nos títulos e manchetes das matérias. Entre os casos famosos e anônimos que as jornalistas acompanham está, por exemplo, o feminicídio da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi. Morta a facadas pelo ex-marido, Paulo Arronenzi, na véspera do Natal de 2020.
Num primeiro momento de repercussão do crime, grandes portais de notícias deram destaque maior ao fato de a vítima ter aberto mão da escolta e à sua profissão do que ao próprio crime. As manchetes eram na linha do “depois de abrir mão da escolta, juíza é assassinada pelo ex-marido na frente das filhas”. “Ou seja, a primeira frase desse título já culpabiliza essa mulher. Ela abriu mão da escolta, da medida protetiva, tá vendo? Por isso que ela morreu”, reprova Vanessa.
A revitimização se repete quando a mulher aparece nas manchetes como agente da ação com verbo na voz passiva. Como quando é noticiado “mulher é morta”. Na prática, é como se o próprio jornalismo estivesse “justificando” a violência contra a mulher.
“Não se aprofunda na razão do feminicídio. O que é machismo e misoginia? É a perspectiva do homem sobre a mulher, observando essa mulher como um objeto de posse. Então todas as vezes que ela o desagrada de alguma maneira, ele acredita que ele é o dono dela. E que ele pode dispor como quiser do corpo, da vida, dignidade e presença física neste plano. E uma outra coisa que acontece quando você coloca na narrativa que ‘matou por ciúmes’, por ‘não aceitar o fim do relacionamento’, por ‘legítima defesa da honra’, é que de alguma maneira você co-responsabiliza a mulher pela violência que ela sofreu e sua própria morte. Porque no subtexto é como se ela tivesse feito alguma coisa para merecer aquilo”, descreve Vanessa.
“O ‘ela abriu mão da escolta’ e por isso ela morreu, compartilha também com essa mulher vítima a responsabilidade pela violência que ela sofreu. E não coloca de fato o que está na raiz do feminicídio, que é a objetificação profunda da mulher. A maneira como os títulos são construídos, como ‘mulher é morta’, é quase uma coisa indeterminada. Diferente de quando você fala que ela foi assassinada. ‘É morta’ pode ser por várias coisas”, completa.
Invariavelmente, nos últimos cinco anos, Niara e Vanessa também concluem que a ilustração do feminicídio é, em geral, marcada pelo rosto da vítima. A conduta da imprensa também esbarra em outras chagas sociais do país, como o racismo, a transfobia e a desigualdade socioeconômica. Que privilegiam a divulgação de feminicídios no caso de mulheres brancas e poupa menos a imagem de homens negros quando violadores. Enquanto que, na maior parte das matérias, feminicidas brancos têm sua imagem preservada e o assassinato de mulheres negras, trans, travestis e pobres ganham pouco ou nenhum destaque e informações.
“Tem várias explicações jurídicas”, adverte também Vanessa sobre esse retrato limitado do feminicídio, como o uso do “suposto” . “Obviamente um homem acusado de um crime, nesse caso um feminicida, ele só é considerado culpado, ou de fato um assassino, depois que ele é julgado. E essa é uma prerrogativa legal que claro que a gente defende que seja resguardada. Mas quando você usa o suposto numa acusação de violência, de um caso de um feminicídio, você já está colocando a versão da vítima em dúvida”, contesta.
“Vamos conversar com juristas para entender melhor isso. Se também a imagem do homem criminoso estampada pode ferir alguma questão legal. E ao mesmo tempo, por que esse homem é tão resguardado e essa mulher, que sequer está mais aqui, não? Por que a ela não é garantida essa proteção?”, questiona a jornalista. “A nossa ideia é propor tanto com relação ao ‘suposto’ e outras escolhas de palavras e frases, e à própria questão do uso da imagem, o ‘refraseamento’, para que o jornalista e o veículo possam garantir as prerrogativas legais, se resguardar juridicamente de qualquer processo, mas sem colocar a palavra da vítima em dúvida”, justifica Vanessa.
Tanto ela como Niara buscam entender nessa fase de pesquisa o porquê da imprensa no geral optar por esse caminho que pode reforçar a violência contra a mulher. Empiricamente, porém, elas já veem relação com a própria desigualdade de gênero na formação da força de trabalho das redações.
Uma pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) sobre o perfil desses profissionais, realizada em 2012, – e que deve ser atualizada neste ano –, indicava que as mulheres já eram a maior parte da categoria (64%). Mas, apesar da predominância feminina, os jornalistas homens ocupavam a maioria absoluta dos cargos de chefia.
“Não é uma análise aprofundada, mas notamos que matérias escritas por mulheres sobre esses assuntos costumam ser mais sensíveis ao próprio relato. Só que em geral, mesmo com essas mulheres sendo autoras dessas matérias mais sensíveis, elas não têm autonomia sobre os títulos. E aí os títulos, que são editados por profissionais homens, correm mais risco de reproduzirem uma narrativa misógina e machista”, avalia.
“A chefia de homens pode sim impactar na maneira como os relatos de feminicídio e todas as violências contra as mulheres, de uma maneira geral, são noticiados na mídia tradicional, pincipalmente. Porque a mídia alternativa, progressista, tem um cuidado maior, embora a gente consiga ver e identificar questionamentos e incorreções em títulos também dessas mídias. Mas pelo menos elas estão mais ligadas na questão, procurando melhorar”, comenta Vanessa.
A proposta, entretanto, segundo as jornalistas, não é que os homens se isentem da cobertura da violência de gênero como um assunto que não é de sua alçada. O objetivo da produção do livro Narrativas de Feminicídios é mesmo entender porque essas reflexões não são aprofundadas e há resistência às críticas nas redações. Já que apesar de toda a luta do movimento feminista, os veículos jornalísticos continuam reproduzindo uma cobertura inapropriada, já advertida em relatório da Agência Patrícia Galvão.
Dois anos atrás, com base em 2.481 notícias de feminicídio, o instituto identificou que os relatos eram majoritariamente factuais, individualizados e com abordagem policial. E uma minoria apenas, 6,25% deles, questionavam as falhas do sistema de proteção e promoção de direitos que tornaria as vítimas em mortes evitáveis.
“Temos essa indagação, porque teve produções que foram feitas e ninguém acolheu?. Por que temos dispositivos legais, Delegacias da Mulher, o Ligue 180, mas essa violência não diminui?. Ou ainda que racionalmente as pessoas entendam isso como uma aberração, porque se continua praticando a violência contra a mulher? Ou como a mídia pode contribuir para que essa realidade horrível e tão triste, desesperadora e desalentadora do feminicídio mude. O que queremos é uma redação sensível, realmente comprometida em noticiar da melhor maneira possível”, finaliza Vanessa Rodrigues em busca de justiça.
O link para quem puder contribuir e ajudar na campanha é https://www.catarse.me/narrativadefeminicidios