Escrito por: Vinicius Segalla
Diretor de um dos observatórios políticos mais importantes do mundo afirma que, ao não cumprir pactos da ONU, Brasil assume violação do Direito Internacional
O Brasil tomou uma decisão soberana ao aderir Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, transformando o tratado internacional em lei. Deve, portanto, vincular-se às decisões das Organização das Nações Unidas no âmbito deste documento, como são aquelas advindas do Comitê de Direitos Humanos da ONU. Autoridades judiciais brasileiras, como o ministro Roberto Barroso, do STF, já esclareceram em diversas oportunidades que o Brasil não pode descumprir este tipo de decisão, sob o risco de assumir uma postura de país violador do Direito Internacional.
Quem explica é o professor Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). O acadêmico franco-mexicano, que dirige um dos observatórios mais respeitados do mundo, concedeu entrevista exclusiva ao DCM.
Diário do Centro do Mundo – O Brasil é obrigado a cumprir a determinação do Comitê de Direitos Humanos da ONU?
Professor Gaspard Estrada – Sim. Trata-se de uma decisão vinculante. De fato, a determinação obriga o Brasil a tomar as medidas cabíveis para assegurar os direitos políticos de Luiz Inácio Lula da Silva. Isso porque o Brasil internalizou as decisões oriundas do comitê. Ou seja, não apenas assinou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, mas ratificou esta adesão por meio de decreto legislativo, promulgado pelo Congresso Nacional em 2009.
Caso o Estado Brasileiro não cumpra a decisão, a ONU não irá invadir o Brasil. Mas o que fica claro é que o Brasil estaria saindo da legalidade internacional, assumindo uma violação do Direito Internacional.
DCM – Quais seriam as consequências do descumprimento da decisão?
G.E. – É muito perigoso que o Brasil, que faz parte do G-20, que é uma das maiores economias mundiais, se mantenha fora da legalidade internacional. Na realidade, a própria prisão dos ex-presidente Lula vem sendo muito criticada no âmbito internacional. Não há provas de que ele seria dono do apartamento que levou a sua condenação. O que se critica é não apenas esta questão de fundo, mas também o próprio processo, que contou com violações reiteradas, advogados grampeados, uma condução coercitiva injustificada. Na mesma ação penal, há poucos meses, um desembargador tomou uma decisão, e foi desautorizado por um juiz de primeira instância.
Há um acúmulo de ilegalidades no mérito e no próprio processo contra o ex-presidente Lula. A soma de tudo isso fez com que os especialistas da ONU tomassem esta posição, de resguardar os direitos civis de Lula, para que não exista um dano irreparável a seus direitos e à própria democracia.
DCM – Parte da imprensa brasileira relativizou a importância da decisão do comitê da ONU, afirmando que se trata da opinião de um colegiado independente, e não o posicionamento oficial de estados-membros ou da própria entidade Organização das Nações Unidas. Como vê esta questão?
G.E. – É exatamente o contrário. O que dá credibilidade a esta decisão do comitê é justamente a independência de seu colegiado. Seus 18 membros são juristas renomados, escolhidos pelas nações em função de sua competência como juristas, professores de direito. A doutora Sarah Cleveland (do Comitê de Direitos Humanos da ONU, que assina a liminar sobre Lula), por exemplo, é diretora do Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, está na ONU por seu notório saber jurídico.
Então, se fosse uma decisão dos estados-membro, poderia até ser considerada decisão política. Mas o que existe é uma decisão jurídica. Os especialistas perceberam que há um risco real de que o ex-presidente tenha um dano irreparável se ele perder seus direitos políticos. Por isso, sem entrar no mérito, pediram que o Estado brasileiro garanta esses direitos. Para além deste fato, o fundo do assunto é que o ex-presidente Lula é objeto de uma perseguição política que se dá por meio de um ferramental jurídico.
DCM – Como o senhor e o Observatório que preside enxergam a postura da imprensa em relação ao julgamento de Lula?
G.E. – Para mim, é muito claro uma posição da imprensa contrária ao ex-presidente Lula, ao PT, e à maioria política que se visualiza no Brasil ao longo das quatro últimas eleições. E, agora, as pesquisas mostram que se o ex-presidente Lula estivesse livre para concorrer, provavelmente venceria de novo. Existe no país uma maioria política em favor do Partido dos Trabalhadores, à qual a maioria da imprensa se mostra contrária. Assim, a mídia tenta influenciar o jogo político, não informar a respeito dele.
DCM – Algumas autoridades brasileiras, como a Procuradora-Geral da República, criticaram a medida da ONU e disseram que o Brasil não deve cumpri-la. Era esperado este tipo de reação das autoridades que em tese seriam as responsáveis pelas violações a que alude o comitê?
G.E. – Não fico surpreso pela reação dessas autoridades. Mas eles mesmos, antes deste episódio, sempre defenderam a primazia internacional da ONU, reconhecendo este instrumento jurídico internacional, inclusive no contexto brasileiro. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, escreveu artigos em que defende a internalização no Brasil de decisões internacionais. Até porque é uma obrigação, de qualquer país que se torne signatário de um pacto ou tratado, agir de acordo com o que foi tratado.