Escrito por: Cláudia Motta | RBA
Ex-ministros da Saúde e empresária do Magazine Luiza debatem iniciativas para viabilizar a vacinação do Brasil, ameaçada pela “falta de tudo” por Bolsonaro
O programa nacional de imunização (PNI) brasileiro é reconhecido no mundo inteiro. Entre seus maiores feitos está, por exemplo, a vacinação de 80 milhões de pessoas em três meses contra o H1N1, em 2010. Ou seja, é possível vacinar contra a covid-19, antes da chegada do inverno, os grupos mais suscetíveis ao contágio, os profissionais de serviços essenciais, e poupar vidas. Esse futuro da vacinação no Brasil foi tema de live, na noite desta quarta-feira (20), que reuniu ex-ministros da Saúde e a empresária Luiza Helena Trajano, dona do Magazine Luiza, que tem se destacado por suas políticas de combate a desigualdades.
As notícias não são nada boas. O ex-ministro da Saúde de Jair Bolsonaro que durou pouco mais de 20 dias no cargo, Nelson Teich, foi o primeiro a falar. E revelou sua preocupação sobre a capacidade do governo de implantar um plano de vacinação eficiente. “Tem de ter estratégia, planejamento, liderança, coordenação, formação, execução boa e comunicação. Se você falhar em uma delas – principalmente se falhar muito –, vai ter dificuldade. A covid é uma doença que sobrecarregou todos os sistemas de saúde do mundo e vai sobrecarregar nosso PNI também. Não podemos subestimar a dificuldade que vai existir”, alertou. “E temos tido dificuldade. Nos últimos dois anos não conseguimos bater a meta, não conseguimos vacinar para sarampo no que era proposto desde 2017. Se tiver de acrescentar mais 300 milhões de doses, vamos ter um PNI absolutamente sobrecarregado.”
Artur Chioro, que esteve à frente da Saúde durante o governo Dilma Rousseff, destacou os erros cometidos pelo Brasil no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus e os riscos que o país corre de ficar para trás. “Uma crise política gerada por um presidente absolutamente descomprometido com a vida, com a responsabilidade, com a condução do que nós temos a viver.”
Como é médico, plantonista, além de professor, Chioro deve tomar a vacina contra a covid-19 nos próximos dias. “Mas não me conformo com essa possibilidade. A falta de perspectivas da garantia do suporte de vacinas em quantidade adequada, num prazo adequado para conseguir aquilo que é a dimensão mais importante que um programa nacional de imunização para qualquer enfermidade pode prover”, ensina. “Claro que a proteção individual é importante, mas quando se vacina uma população, se procura obter cobertura vacinal em quantidade suficiente para garantir a proteção coletiva. Não apenas a interrupção da cadeia de transmissão ou geração de casos graves.”
O ex-ministro critica as decisões tomadas desde o início pelo governo Bolsonaro. “O Brasil se encontra profundamente atrasado, despreparado”, avisa. “Desdenhamos do fundo global. Poderíamos ter reservado até 212 milhões de doses do consórcio liderado pela Organização Mundial de Saúde. Por questões ideológicas, estreiteza, descompromisso, ficamos no final da fila e somente para 10% da população. Apostamos todas as fichas numa única vacina. Jamais num país super populoso poderíamos ter cometido erros tão crasso de planejamento.” O ministro lamenta. “Dadas as condições vigentes não conseguiremos garantir cobertura vacinal suficiente pro controle da pandemia no nosso país antes do final do ano que vem. O que colocará o Brasil no fim da fila da retomada da normalidade com custos políticos, sociais, econômicos e sanitários terríveis.”
A empresária Luiza Trajano também se revelou preocupada com a população de um modo geral, lembrando que quem estava ali no debate teria condição de tomar, pela idade, pela profissão. “Mas de que adianta eu tomar e a população continuar desse jeito. Além de toda tristeza, da insegurança de saúde, temos a insegurança do mercado no mundo inteiro. Esse vírus veio para conviver com nossa impotência e incompetência.”
Definindo-se como “uma pessoa de gestão”, ela revelou que na sexta-feira um grupo de empresários irá se reunir para debater e entender o que a sociedade civil pode fazer. Concordando com o que foi dito sobre as falhas governamentais, Luiza afirmou que agora é hora de “acudir”. “A única forma é a sociedade se unir e achar alternativas”, disse.
Sobre o SUS, lembrou: “temos a saúde pronta, o que está na Constituição é perfeito. É o maior sistema de saúde do mundo e precisa funcionar. Ter gestão, digitalização. Funcionar como uma coisa do Estado e não uma coisa política”.
Ao fim de sua participação, Luiza fez um agradecimento especial a Padilha, Temporão e Chioro “por tudo que vocês fizeram pelo SUS” quando ministros. A empresária afirmou que o SUS é a “joia da coroa”. E antecipou que a associação Mulheres do Brasil, que também preside, prepara uma grande campanha de publicidade para ressaltar a importância da rede de saúde pública e resgatar a imagem da instituição junto à população.
José Gomes Temporão, que esteve à frente do Ministério da Saúde entre 2007 e 2001, ressaltou que desde o começo da pandemia se sabia que a única possibilidade de virar totalmente o jogo e superar a situação era dispor de uma ou mais vacinas. E ao mesmo tempo, lembrou, sabe-se que o Brasil tem uma gigantesca competência e tradição. “Nosso PNI é de longe o melhor do mundo. Em 2010 vacinamos 80 milhões de pessoas em três meses. Então não é falta de capacidade logística. Houve uma falha dramática da diplomacia, do governo brasileiro. O Brasil sempre foi respeitado pela postura do Itamarati, da sua diplomacia. Nosso programa de imunização é referência global. O governo conduziu muito mal essa questão, ofendendo a China que produz insumos pra tudo, testes, medicamentos genéricos, vacinas, equipamentos de diagnóstico, qualquer coisa que se pense em saúde é a China que produz. E o presidente e seu filho proferem ofensas contra esse grande país irmão. Isso atrapalhou. A respeitabilidade que o Brasil tinha evaporou por culpa desse governo.”
Para ele, o que se deve fazer é empurrar esse governo através de uma gigantesca mobilização da sociedade. “Estou participando do movimento Abrace a Vacina. Temos de trabalhar pelos vários caminhos. Congresso Nacional, governadores, Consórcio do Nordeste. Queremos fazer uma carta para os ministros da Saúde da China e da Índia fazendo um apelo.”
O ex-ministro avalia que Fiocruz e Butantan teriam condições de entregar para o Ministério da Saúde, se tudo corresse bem, 30 milhões de doses mês da vacina. “Teríamos de tentar encurtar. Quando mais joga pra frente, mais internações, mais infecções, mais óbitos. Temos de tirar o governo da inércia e acelerar o fornecimento desses princípios ativos para que Butantan e Biomanguinhos possam ampliar sua produção e entregar para o PNI.”.”
O ex-ministro Alexandre Padilha, responsável pela promoção da live, lembrou que para abraçar a vacina tem de ter vacina. “É possível em três meses vacinar 80 milhões de brasileiros. Isso significaria todos os profissionais de saúde, idosos, toda população indígena, quilombola, todos os profissionais de educação, da segurança pública, de transporte público, de manutenção das cidades, todas as pessoas com deficiência. É possível vacinar isso antes de começar o outono e o inverno, quando vai ter crescimento (de casos) ainda maior.”
Humberto Costa, ministro da Saúde no governo Luiz Inácio Lula da Silva, lembrou que a situação do Brasil no mento é extremamente grave. “Dezembro e janeiro estão sendo extremamente preocupantes. Aumentou a capacidade de contágio do vírus. Vamos ter de mudar esse pneu com o carro andando. A vacinação vai se dar enquanto temos aumento do número de casos e de mortes. Situação de enorme gravidade”, disse.
“Por estar atrasada (a vacinação), medidas de isolamento social e contenção têm de ser aplicadas num momento mais difícil. As pessoas já relaxaram. Há um sentimento de uma falsa segurança, há uma resistência maior”, afirma, relatando o exemplo “acintoso” de Manaus.
“Comerciantes resistiram à decisão do governo de fazer ampliação do isolamento social. Governadores e prefeitos agora estão com muito mais medo do ponto de vista político. E o que a gente vê é um quadro que vai exigir cobrança da rapidez com a vacina, mas também a continuidade das medidas de prevenção sob pena de termos um quadro gravíssimo.”
Humberto Costa destacou que o Consórcio do Nordeste, que encomendou 55 milhões de vacinas produzidas pela Rússia. “E a Anvisa não quis sequer admitir a possibilidade de uma fase de testes no Brasil. O Supremo (Tribunal Federal) tem de se impor. Se a Argentina, que tem uma agência de vigilância sanitária qualificada, e lá estão vacinando com a Sputnik V, por que aqui no Brasil não podemos fazer? Temos de fazer com que a sociedade se reúna e cobre que o governo faça isso.”