Escrito por: Luiz Carvalho
Economista Maria Lúcia Fattorelli explica que figura de empresa estatal dependente, para a qual não haverá teto, funcionará como cavalo de Troia para drenas recursos do Estado
Empresas estatais não dependentes. Esse é o coração da PEC 241, a Proposta de Emenda à Constituição aprovada no último dia 10 e que congela investimentos sociais por 20 anos.
A medida tramitará agora no Senado como PEC 55/2016 e, se aprovada, dependerá apenas de sanção presidencial.
Consta no texto o seguinte ponto:
" Art. § 6º Não se incluem nos limites previstos neste artigo:
(…)
IV - despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes"
O trecho, segundo a auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida Maria Lucia Fattorelli, representa a razão principal de o presidente ilegítimo Michel Temer (PMDB) e sua base de apoio acelerarem a votação do projeto.
Segundo ela, a PEC 55 legaliza um esquema fraudulento de transferência de recursos ao setor financeiro por meio da venda de títulos podres garantidos pelo Estado. Portanto, pagos por toda a sociedade.
Resumidamente, empresas estatais não dependentes são figuras jurídicas que permitem a participação de sócios privados mesmo sendo estatais e tendo ações majoritárias do ente federativo. Essas companhias não estão sujeitas à fiscalização de órgãos como o Tribunal de Contas e a Controladoria Geral da União.
Vendem debêntures (títulos de crédito que a empresa faz para formalizar o empréstimo à companhia) a investidores privilegiados com desconto que chegam a 60% e pagam juros na faixa de 20% ao ano com o argumento de serem créditos de difícil recebimento.
Mas, na prática, o Estado é quem oferece a garantia, continua a cobrar os créditos por meio das Procuradorias da Fazenda e arca com o aumento da dívida pública sem ter ganho efetivo de caixa.
Com a experiência de quem investigou a dívida pública da Grécia e do Equador, Maria Lucia aponta que o esquema inaugurado no país por meio da consultoria ABBA, comandada por Edson Nascimento, assistente consultor do FMI (Fundo Monetário Internacional), repete exatamente os mesmos equívocos que levaram a Grécia para o buraco.
Confira abaixo a entrevista.
A senhora aponta que há um esquema de fraude dentro da PEC 241 que envolve empresas estatais não dependentes. Como funcionaria esse esquema?
Maria Lucia Fattorelli – Esse tipo de empresa, primeiro, é a própria infâmia, porque, enquanto estamos há 20 anos privatizando nossas estatais estratégicas e lucrativas, começamos a criar outras que emitem papéis financeiros chamados debêntures.
Esses papéis são vendidos com descontos brutais e pagam juros elevadíssimos aos compradores, um modelo que já é aplicado em vários estados e municípios com o discurso mentiroso de abatimento da dívida pública, aquela em que o Estado é devedor.
Para entender, precisamos primeiro saber como funciona a dívida ativa, aquela em que o Estado é credor. Quando um tributo não é pago, por exemplo, o imposto de renda, durante um tempo, a própria Receita Federal irá cobrar. Mas após um período, vai inscrever esse débito em dívida ativa e a responsabilidade pela cobrança ficará com a Procuradoria da Fazenda.
Porém, a maioria da dívida ativa é ‘incobrável’, porque apenas uma pequena parte é referente a problemas momentâneos que o contribuinte depois vai atrás para regularizar. A maior parte são débitos muito antigos, como no caso da Transbrasil, que quebrou, tem aeronaves apodrecendo no aeroporto de Brasília e deixou uma série de tributos não quitados. Esses créditos foram inscritos em dívidas ativas, mas a possibilidade de a empresa pagar essa conta é praticamente nula.
Em cima disso, quem emite os papéis faz a propaganda de que essa dívida ativa seria vendida por 40% a 50% do valor com a ilusão de que esses papéis podres seriam passados adiante. Mas somente investidores privilegiados compram, porque o negócio não é anunciado, um processo chamado no jargão do mercado de esforço estrito de colocação. Na prática, só compra quem está envolvido com o negócio.
Em Belo Horizonte, por exemplo, cada debênture emitida pela PBH Ativos S/A, empresa estatal não dependente do município, sai por R$ 100 mil. Se a gente for olhar a lei municipal que aprovou a criação dessa empresa, vamos ver que o capital de abertura foi nesse mesmo valor. Ela emitiu 2.300 debêntures de uma vez por esse valor. Como cada uma já tem o valor do capital, dá para ter uma ideia do rombo que provocará.
A debênture é vendida com desconto e, em Belo Horizonte, paga aos compradores o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) mais 11% e no ano passado este índice chegou a 12%, portanto, um rendimento de 23%.
O problema é que o Estado é quem dá garantia para isso por meio de outra debênture, a chamada subordinada, entregue pela empresa ao município como forma de documentar a garantia. Na prática, o município não recebe um centavo, mas sim a empresa, que arrecada com pagamento de juros abusivos, consultorias milionárias e serviços financeiros. E isso já gera uma dívida pública.
Para Maria Lúcia, PEC 241 oficializa uma fraude (Foto: Nilson Bastian)
Maria Lucia – Esse é um dos objetivos, o outro é beneficiar a dívida como um todo, porque a PEC coloca teto só nas despesas chamadas primárias (a dívida é despesa secundária). A proposta deveria se chamar PEC dos banqueiros e não do controle de gastos. Colocam como referência para o ajuste nos investimentos públicos índices de 2016, que são baixíssimos graças a essa crise produzida pela política monetária suicida do Banco Central. E a PEC vai pegar esse patamar baixo e corrigir por 20 anos apenas pelo IPCA (índice de preços ao consumidor que mede a inflação).
Mesmo se tivermos grande crescimento econômico, revisarmos o modelo tributário e ampliássemos a arrecadação, ainda assim, o teto continuará congelado porque estará na Constituição, se a medida for aprovada. Pelo que está na PEC, seria um crime empregar mais recursos em saúde e educação.
Tudo que sobra é para pagar a dívida, que nunca passou por uma auditoria, e para beneficiar esse esquema fraudulento, porque a PEC já deixou dinheiro para aumentar o investimento em empresas estatais não dependentes.
Nas últimas semanas, percorremos os gabinetes dos 366 deputados e falamos com quem aceitou nos atender. Praticamente nenhum parlamentar sabia desse esquema da empresa estatal dependente. Alguns não tinham sequer percebido que quando fala em despesa primária, a dívida pública estava fora. Daí vem a pressa de aprovar esse projeto, nem os parlamentares sabem direito o alcance dessa modificação no texto da Constituição Federal por um prazo de 20 anos.
A auditoria da dívida seria mais eficiente do que o corte em políticas sociais?
Maria Lucia – Evidentemente. Quem sofreria com a auditoria seriam os grandes bancos, os maiores beneficiários dessa dívida.
A maior parte da dívida está nos títulos, nas mãos de bancos que especulam com isso e são ao mesmo tempo os que têm direito de comprar esses papéis quando o Banco Central leiloa. E são os que colocam o Banco Central de joelhos para obter juros altos e fazer com que os papéis se tornem mais lucrativos.
Como se explica a dívida pública?
Maria Lucia – Estamos vivendo o tempo do capitalismo financeirizado, a fase mais cruel do capitalismo, mais do que o industrial, que explora o trabalhador e paga R$ 100 a quem deveria pagar R$ 1.000 e lucra em cima desta mais valia. Agora, vivemos o capitalismo de papel. Cria-se papel e toda dívida pública fazendo com que a sociedade tenha de abrir mão de seus direitos porque o pagamento dos juros é a principal despesa do país.
A Auditoria Cidadã da Dívida tem se dedicado a discutir como a dívida foi gerada desde o grande Plebiscito Popular do qual a CUT participou. Essa dívida corresponde ao ciclo que se iniciou na década de 1970, de forma obscura, quando ainda estávamos na ditadura militar, e cresceu absurdamente porque a maior parte da dívida externa era privada, mas tinha garantia do governo. Depois foi transformada em dívida do Banco Central e passou por aumento brutal dos juros, porque os credores na década de 1970 eram os bancos privados internacionais, principalmente, o Banco Central Norte Americano (Federal Reserve).
Em 1971, quando veio o fim da paridade dólar-ouro, esses bancos passaram a emitir dólar e ofereceram empréstimos para países sul-americanos e africanos com taxas de juros muito baixas. Só que eram variáveis e flutuavam de acordo com a taxa internacional que eram controladas pelos mesmos bancos privados credores.
Depois que tinham entregue um volume grande de endividamento, começaram a aumentar taxas de juros, de 4% ou 5% para até 20,5%. Isso provocou a crise de 1982, abriu as portas para a entrada do FMI (Fundo Monetário Internacional) no Brasil em 1983 e implementou o mesmo modelo econômico que amarra o país até hoje, mesmo após pagarmos o FMI.
Naquela época, o banco exigiu que toda dívida pública e privada ficasse a cargo do Banco Central, algo ilegal porque, como agente financeiro, não poderia ser devedor sem ter recebido um único centavo. O Banco Central passou a pagar essa dívida externa sem passar a receber nada nos anos 1980, a década perdida.
No início da década de 1990, alguns economistas defenderam que a dívida já foi paga. Por que não se fala mais nisso neste momento de crise?
Maria Lucia – Em 1992, surgiu a suspeita de que essa dívida prescreveu e também de que houve uma renúncia dessa prescrição por conta da comissão negociadora da dívida externa, que tinha o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e contava com figuras como Pedro Malan na presidência dessa comissão, Armínio Fraga e Murilo Portugal. Isso é gravíssimo, porque falamos de 80% da dívida externa.
Isso foi ignorado ou renunciado, nunca tivemos acesso aos documentos, e a dívida prescrita foi trocado por novos títulos da dívida externa, em 1994. Ali ressuscitaram aquela dívida provavelmente morta. A partir de 1996, o Brasil aceitou esses títulos podres para comprar nossas empresas submetidas à privatização. E o Plano Real passou a alavancar uma dívida, que não tem contrapartida, nasce da transformação dos títulos podres da dívida externa em dívida interna e de várias negociações feitas no início do plano, quando os juros atingiram 45%.
Esse foi o ‘start’ para a dívida interna que ultrapassa R$ 4 trilhões e é composta por dívida emitida para justificar a remuneração de toda a sobra de caixa dos bancos (R$ 1 trilhão). Dinheiro que sobra porque as pessoas, o comércio e a indústria não conseguem conviver com juros tão abusivos e não buscam empréstimo. Diante disso, o Banco Central emite título da dívida e troca esse R$ 1 trilhão com os bancos remunerando diariamente. Isso está provocando crise, em 2015 estimamos R$ 200 bilhões de despesas com essa benesse, o dobro do orçamento da saúde para remunerar sobra de caixa de banco.
E a PEC não coloca teto nenhum para isso. Ao contrário, congela os investimentos primários para sobrar mais para esse tipo de operação.
A PEC formaliza, então, que a transferência de recursos para o mercado financeiro é a prioridade para o governo?
Maria Lucia – O artigo 167 da Constituição proíbe emitir título para pagar despesa corrente, que é composta por salário dos servidores, entre outros pontos. Mas para pagamento de juros esse artigo tem sido burlado e já até denunciamos isso ao Ministério Público, mas nada acontece. Ao contrário, a dívida é sempre justificativa para os pacotes.
Isso é tão escancarado que basta pegar os balanços dos bancos. Em 2015, toda a economia real encolheu, o PIB encolheu 4% e o lucro dos bancos foi de R$ 97 bilhões, maior que o orçamento da saúde.
Se toda a economia caiu e só os bancos lucraram, fica claro que está havendo um mecanismo de transferência de renda de recursos públicos para o setor financeiro privado por meio do sistema da dívida, que deveria aportar recursos ao Estado para fazer investimentos benéficos à população.
Um modelo que vem disfarçado de controle da inflação, com juros altíssimos e o enxugamento de R$ 1 trilhão de sobra dos bancos para aprofundar a transferência de renda a essas instituições. E essa benesse vai estar na Constituição.
Pior, não há transparência nenhuma, porque esses gastos financeiros são considerados sigilosos no Brasil e ninguém sabe quais são os detentores dos títulos da dívida pública, da swap cambial, de mercado aberto, de debêntures. É tudo sigiloso.