Escrito por: Walber Pinto

Pesquisa revela que empresas não se engajam contra o trabalho análogo à escravidão

As empresas no Brasil, segundo o relatório, têm pouco comprometimento para acompanhar seus fornecedores. No mundo, apenas um terço das empresas monitoram o trabalho forçado

Divulgação/Ministério do Trabalho

A pesquisa global da consultoria PwC, divulgada recentemente, trouxe uma realidade mundial que preocupa e expõe, ao mesmo tempo, a falta de ação das empresas em nível global no combate ao trabalho análogo à escravidão e direitos humanos. Apenas 33% (um terço) das empresas consideram prioridade monitorar esse trabalho forçado em suas cadeias de valor.

O estudo que vem sendo feito há 20 anos, tem como objetivo mostrar como as empresas e líderes corporativos estão lidando no dia a dia com riscos de crimes econômicos dentro de suas companhias. O relatório também cita os principais desafios e riscos relacionados a fraudes.

O estudo deste ano revela que as organizações estão avançando no mapeamento do trabalho análogo à escravidão, mas muito lentamente.  No Brasil, segundo o relatório, há pouco comprometimento das empresas brasileiras para acompanhar os seus fornecedores mais distantes.

De acordo com a pesquisa, no mundo 33% dos entrevistados consideram o risco de trabalho análogo à escravidão como uma prioridade em suas empresas. Ou seja, apenas um terço. As empresas com receitas superiores a US$ 5 bilhões, segundo o relatório, são mais proativas, com 65% tendo mapeado suas cadeias de suprimento em diferentes graus.

Percepção do trabalho análogo à escravidão no Brasil

Já no Brasil, a percepção sobre o trabalho escravo é menos intensa. 27% das empresas no país concluíram ou estão em processo de avaliar os riscos de trabalho análogo à escravidão e, além disso, o número de empresas no país que não consideram essa questão importante é de 35%, comparado a 26% na média global.

A pesquisa, realizada entre janeiro e março de 2024, apontou que no Brasil a percepção sobre o trabalho escravo é menos intensa. 27% das empresas brasileiras concluíram ou estão em processo de avaliar os riscos de trabalho escravo, ou têm planos para fazê-lo dentro de um ano.

Outra questão levantada é que o número de empresas no Brasil que não consideram essa questão importante é de 35%, comparado a 26% na média global.

O estudo entrevistou quase 2.446 empresas em 63 países, incluindo o Brasil, e revela diferenças significativas na abordagem e priorização desses temas em diferentes regiões.

Em entrevista ao Portal CUT, Luciano Araújo, Procurador do Trabalho e coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do Ministério Público do Trabalho (MPT), explica que falta uma legislação no país que obrigue as empresas a fazerem um mapeamento e uma devida diligência em direitos humanos em sua cadeia de fornecedores.

Ele reforça que, no entanto, (a falta de legislação) não impede e não tem impedido, efetivamente, que o sistema de justiça adote medidas para assegurar o respeito aos direitos humanos em cadeias produtivas relevantes no país, especificamente no combate ao trabalho escravo.

“O Brasil, por exemplo, é o maior exportador de café do planeta e essas cadeias produtivas, as grandes indústrias compram café de produtores flagrados com trabalho análogo ao escravo. Sabem que o problema existe porque é público, está lá na lista suja, está nos dados, está na imprensa, e ainda assim não são adotadas medidas efetivas para a prevenção em sua cadeia produtiva”, diz.

O procurador do MPT ressalta que a justiça tem consolidado um caminho jurisprudencial para responsabilização dessas grandes empresas, adotando, por exemplo, como a teoria da cegueira deliberada, que foi reconhecida no Supremo Tribunal Federal (STF). A teoria da cegueira deliberada, também conhecida como "instruções de avestruz", é um instituto do direito criminal que permite a responsabilização de quem evita deliberadamente o conhecimento de algo. A teoria é aplicada quando o sujeito tenta enganar a própria consciência, colocando-se em uma posição de ignorância voluntária para justificar uma conduta ilícita.

Para o procurador, mesmo caminhando a passos lentos na questão legislativa, o Brasil tem efeito consideráveis dentro do sistema de justiça.

Nós temos avanços consideráveis dentro do sistema de justiça, dentro da jurisprudência brasileira, que permite a responsabilização dessas empresas pela submissão de trabalhadores a condições análogas de escravidão e empresas das suas cadeias de fornecimento- Luciano Araújo, Procurador do MPT

Sucateamento prejudicou combate ao trabalho forçado

Na avaliação de Cida Trajano, presidenta da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Vestuário (CNTRV), um dos ramos que têm denúncias de trabalho análogo à escravidão, o sucateamento do Ministério do Trabalho nos governos do golpista Michel Temer (MDB-SP) e de Jair Bolsonaro (PL-RJ) foi um dos grandes problemas que dificultou uma legislação para combater o trabalho análogo à escravidão.

“Muitos países não têm nem legislação. No Brasil, nós tivemos um grande problema porque o Ministério do Trabalho foi totalmente sucateado nos governos passados. Isso fez com que o Ministério do Trabalho não tenha fiscal para poder fiscalizar essas empresas, principalmente nas fábricas, oficinas, empresas terceirizadas que trabalham para as marcas que acabam muitas vezes tirando a sua produção de um local para outro, aonde ela pode pagar mais barato”, conta.

Para a dirigente, o exemplo disso são as grandes marcas do setor de calçados, principalmente na região Nordeste, onde a maioria das que têm acordos firmados, mas não pagam sequer um salário mínimo para os trabalhadores e trabalhadores que estão ali sendo explorados.

“E muitas empresas, na confecção, por exemplo, muitas vezes elas acabam trabalhando nos fundos de quintais, das casas, porque é um local aonde inclusive nem o fiscal do trabalho pode entrar. Ninguém pode entrar na casa de ninguém a não ser com ordem judicial, e isso muitas vezes dificulta muito o trabalho de fiscalização, o trabalho do sindicato”, ressalta.

Durante o governo Bolsonaro o fim do Ministério do Trabalho, determinado pelo ex-presidente, indignou a sociedade brasileira, sindicatos, advogados, juízes e procuradores que viram com preocupação a falta de fiscalização nas empresas e a precarização dos trabalhadores. Foi um retrocesso de direitos conquistados ao longo de décadas.

“Isso acabou favorecendo muito as empresas para que elas não cumpram a legislação e na Consolidação das Leis do Trabalho [CLT] porque muitas vezes nós não temos notícia desse trabalho que não está sendo cumprido o acordo, o acordo internacional, inclusive o da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, diz Cida.

Para o procurador do MPT “a sociedade brasileira, as grandes indústrias, devem encarar o problema com seriedade e exigir que as empresas contratantes tenham equipes que realizem um monitoramento diretamente dentro dessas empresas com seriedade e voltado à identificação de eventuais violações de direitos humanos”.

Resgates no país

Com a volta do Ministério do Trabalho, no governo do presidente Lula (PT), durante todo o ano de 2023, o governo federal resgatou um total de 3.190 pessoas do trabalho análogo à escravidão no Brasil, tendo fiscalizado no período 598 estabelecimentos urbanos e rurais, o que possibilitou o pagamento de R$ 12.877.721,82 em verbas salariais e rescisórias aos trabalhadores resgatados pela fiscalização.

Com exemplos de diversos países que aplicam ações bem sucedidas no combate ao trabalho escravo, o Brasil no combate à demanda desse tipo de trabalho tem como ferramenta a “lista suja”, que expõe empregadores flagrados utilizando trabalho forçado.

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“Mesmo assim os sindicatos de um modo geral que são filiados CUT e à CNTV têm buscado fazer um trabalho arduamente, de buscar, fazer pesquisa, e tentar através dos trabalhadores que tenham conhecimento para poder fazer a denúncia”, finaliza a presidenta da CNTV.

O que diz a OIT

Ainda que a maioria dos países tenha ratificado as convenções 29 e 105 da OIT, ambas de combate ao trabalho escravo, atualmente mais de 50 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado ao redor do mundo, segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho.

O procurador do MPT alerta ainda que há no Congresso Nacional um projeto de lei que também tenta instituir um decreto de lei nacional de Empresas e Direitos Humanos, apesar de o país não ter nenhuma legislação interna.

“Há também o protocolo facultativo de 2014, a convenção 29 do OIT, e esse protocolo é válido e aplicável ao Brasil por conta de toda a estrutura de vigência das normas internacionais, apesar de ainda não ter sido incorporado no ordenamento interno. Está lá no Congresso Nacional essa pendência e esse protocolo facultativo ele também traz a necessidade de devida de diligência de direitos humanos, tanto do governo como nos setores público e privado”, explica o procurador.

O levantamento da OIT indica que a “escravidão moderna” ocorre em quase todos os países do mundo, inclusive nos de renda média-alta. E tem entre as mais vulneráveis mulheres e crianças. 

A avaliação da organização é de que esse problema, que afeta todos os continentes, explodiu nos últimos anos, principalmente depois da pandemia de Covid-19.

O Brasil, que é um dos membros fundadores da OIT e participa das conferências anuais desde sua criação, em 1919, é considerado um bom exemplo por órgãos internacionais no combate ao trabalho análogo à escravidão.

Denúncias sobre trabalho análogo à escravidão podem ser feitas pelo sistema Ipê, do Ministério do Trabalho e Emprego. Clique aqui.