PL de Doria prevê extinção de empresas públicas e retirada de verba de universidades
Proposta do governador tucano pode paralisar pesquisas importantes sobre a Covid-19 no estado de São Paulo
Publicado: 31 Agosto, 2020 - 14h02
Escrito por: Redação CUT
Em meio à maior crise sanitária do século, que matou quase 30 mil pessoas no estado de São Paulo, o governador João Doria (PSDB) tenta emplacar um ambicioso projeto de desmonte das estruturas públicas, m ostra reportagem de Thais Reis Oliveira, da Carta Capital. O tucano apresentou à Assembleia Legislativa em 12 de agosto, em regime de urgência, um megaprojeto cuja genérica missão é “estabelecer medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas”.
O rombo no orçamento para 2021, calcula o governo, será da ordem de 10,4 bilhões de reais. O projeto de lei prevê a extinção, em um só golpe, de dez empresas públicas. Entre elas, a Fundação para o Remédio Paulista, maior laboratório público de medicamentos do Brasil, e a CDHU e o Itesp, principais companhias de habitação e titulação agrária.
Também estão na lista a Companhia Metropolitana de Transportes Urbanos, a Fundação Parque Zoológico, a Fundação Oncocentro de São Paulo, o Instituto Florestal, a Superintendência de Controle de Endemias, o Instituto de Medicina Social e de Criminologia e o Departamento Aeroviário.
Somadas, essas entidades ameaçadas de extinção possuem 4,1 mil funcionários. As entidades sindicais projetam, contudo, um número ainda maior de afetados: quase 7 mil. O governo abriu um programa de demissões voluntárias destinado a servidores celetistas estáveis que preenchem os requisitos da aposentadoria, mas ainda trabalham.
Sobre eles, diz o texto: “Embora continuem a exercer suas atividades profissionais, o fazem com dificuldade ou sem interesse, desestimulando os demais servidores”.
Os funcionários públicos apelidaram a proposta de “Cavalo de Doria”. Também não faltam comparações com a fatídica sugestão de “passar a boiada” do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles – o projeto tucano, aliás, prevê a concessão de 14 parques e unidades de conservação à iniciativa privada.
Degola nas universidades e institutos de pesquisa
A degola mira em particular as universidades e institutos de pesquisa paulistas. O texto original autoriza o repasse aos cofres do estado do superávit financeiro dos fundos de despesa de autarquias e fundações. Incluem-se nesse rol USP, Unicamp e Unesp. Cerca de um terço de todas as publicações científicas do País saem deste complexo acadêmico.
A proposta afeta ainda a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, maior do ramo. Além das bolsas de estudo, a Fapesp presta suporte financeiro, por exemplo, à produção de vacinas: assegurou 82 milhões de reais aos testes do imunizante chinês contra a Covid-19, o CoronaVac, cuja produção e distribuição no Brasil são capitaneadas pelo Instituto Butantan.
Indignada e surpreendida, a comunidade científica e universitária tenta barrar a proposta. “Sem esses recursos, as universidades correm o risco de sequer cumprirem a folha de pagamento. É um desastre para o setor público”, critica a deputada estadual Beth Sahão (PT), que pedirá supressão total deste trecho do projeto.
Também há objeção no campo jurídico. “Não me parece razoável e proporcional que o governo, para equilibrar as contas, aplique uma espécie de punição às entidades que, com planejamento e boas práticas de gestão, conseguem organizar melhor as reservas e ainda assegurar verba para pesquisas”, critica Marcela Arruda, especialista em direito administrativo e conselheira da ONG Transparência Brasil.
Da maneira como foi apresentado, aponta a advogada, o projeto “é de questionável constitucionalidade”.
A tentativa de garfar reservas, contudo, não é inédita. Em 2017, também alegando problemas fiscais, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) ensaiou reduzir o repasse à Fapesp, fixado em 1% da receita tributária do estado, para 0,89%. Cientistas reagiram e, com o apoio da sociedade civil, a tentativa não avançou.
No fim do ano seguinte o então vice-governador Márcio França (PSB) ordenou a retirada de 140 milhões de reais da fundação. Três dias depois, devolveu a grana.
A má-reputação do governo anterior entre os cientistas fez com que muitos abrissem a guarda a Doria. Em um vídeo de campanha, ladeado pela senadora Mara Gabrilli (PSDB), o tucano chegou a firmar compromisso financeiro com a Fapesp: “Não faz o menor sentido reduzir, o que nós temos é que ampliar os recursos.”A promessa parecia perto a sair do papel.
Com a chegada do coronavírus, Doria encarnou o figurino de gestor que valoriza e respeita a ciência. “Mesmo quem não apoiava o governador ficou animado”, lembra Hamilton Varela, professor do Instituto de Química de São Carlos, da USP.
“O que sobrou disso? Foram apenas frases feitas para rivalizar com o governo federal”, lamenta ele.
Na relação com a ciência, Doria parece ter levado em conta uma outra das 48 Leis do Poder, a de número 20: nunca se comprometa com ninguém.
O projeto é um desastre total para o setor público; a pesquisa científica vai sofrer muito, diz a deputada estadual Beth Sahão (PT)
A tentativa remete também a um capítulo recente da relação entre o governo tucano e as entidades que o orbitam. Em meio à crise provocada pelo coronavírus, a Fundação Butantan, entidade privada que mantém o instituto público centenário homônimo, investiu cerca de 500 milhões de reais do próprio caixa no combate à pandemia: comprou e processou milhões de testes, importou da Turquia e doou 1.850 respiradores ao estado. Essa última compra, aliás, é investigada pelo Tribunal de Contas estadual. De acordo com o laudo apresentado pela fiscalização do tribunal, houve sobrepreço comparado aos valores levantados pela Controladoria Geral da União para aquisições realizadas por estados e municípios. O tribunal questiona o motivo da aquisição ter sido feita por uma entidade privada para ser doada a entes públicos. Em junho, foram adquiridos mais 350 respiradores da mesma companhia por 6,9 milhões de dólares. O papel da Fundação Butantan na estratégia paulista de combate à pandemia motivou de quebra uma manifestação recebida recentemente pelo Ministério Público Federal.
Desde 2012, o Instituto Butantan vende vacinas ao SUS por meio do programa Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), criado para fortalecer a produção nacional. Em contrapartida, é obrigado a reinvestir a margem de lucro em tecnologia para produzi-las e, consequentemente, oferecê-las a um custo menor à União. O Ministério da Saúde é, de longe, seu maior cliente. Em 2019, a Fundação Butantan recebeu da pasta federal cerca de 1,96 bilhão de reais, valor que corresponde à totalidade da receita líquida da entidade naquele ano. Em 2014, o caixa da fundação foi bem mais modesto: 42,1 milhões.
A tentativa do governo Doria de amealhar dinheiro de autarquias e fundações acendeu um alerta em relação ao gordo caixa da Fundação Butantan.
Procurada por CartaCapital, a Secretaria de Comunicação estadual garantiu que as únicas entidades alcançadas pela proposta são aquelas ligadas à administração direta. Entidades de direito privado, portanto, ficariam de fora.
Esse é também o entendimento da instituição. “Não recebemos um centavo do estado. Não haverá possibilidade nem espaço legal para isso. A não ser que desprivatizem a fundação, o que seria inconcebível e ilegal”, avalia Paulo Capelotto, diretor jurídico.
Ele não descarta, contudo, uma eventual querela na Justiça. “Existem outros órgãos de controle que podem ter um entendimento diferente. Eventualmente, judicializando, haveria uma roleta a partir do que interpreta o juiz.”
O déficit fiscal do estado no próximo ano passará de 10 bilhões de reais
Em coletiva na quarta-feira 26, Doria fez uma promessa, mais uma vez, ousada: a vacina contra o coronavírus estará no SUS em dezembro. Por enquanto, importada da China. “Nesta primeira etapa teremos acesso a 45 milhões de doses”, estimou. Depois, caso seja aprovada pela Anvisa, a vacina passaria a ser produzida no Brasil pelo Butantan. A capacidade atual do instituto é de 120 milhões de doses, suficiente para vacinar 60 milhões de brasileiros.
Na mesma entrevista, o secretário de Saúde, Jean Gorinchteyn, afirmou que, para ampliar a capacidade produtiva e chegar a 400 milhões de doses em quatro anos, o Butantan solicitou ao Ministério da Saúde um aporte de 1,9 bilhão de reais. A possibilidade de monopólio preocupa. Não apenas porque, cada vez mais, entende-se que a contenção da doença depende não de uma, mas de várias vacinas eficazes. E também pelo risco de sobrepreço.
Para evitar que o poderio de uma única empresa prejudique o acesso à imunização, o deputado e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha apresentou ao Congresso um projeto de lei que estabelece a licença compulsória de qualquer vacina ou medicamento eficaz para a Covid-19.
Ou seja: nenhuma empresa terá o monopólio da produção. “Com isso, derrubamos preços, e evitamos uma grande transferência de recursos públicos a bolsos privados”, avalia. Outros treze deputados, do PCdoB ao PSL, assinaram a proposta.