PL do aborto é usar os corpos das mulheres como moeda de troca política
Eleições municipais e sucessão da presidência da Câmara fazem bancada conservadora propor pautas de costumes de olho na repercussão junto ao seu eleitorado, nem que isso coloque a vida das mulheres em risco
Publicado: 20 Junho, 2024 - 08h05 | Última modificação: 21 Junho, 2024 - 09h30
Escrito por: Rosely Rocha
A discussão sobre o Projeto de Lei nº 1904/24 que criminaliza meninas e mulheres que praticarem o aborto em casos de estupro, anencefalia (ausência parcial do cérebro e da calota craniana), e com risco de morte da gestante, após a 22ª semana de gravidez, colocou luz no debate de como a extrema direita, que tem no Congresso Nacional representantes conservadores, usa o corpo das mulheres como moeda de troca política. A bancada da extrema direita quer retroagir em 84 anos propondo o fim da lei que permite o aborto legal, nos casos citados, que remonta a 1940.
Este ano ocorrerão eleições municipais, o que para analistas políticos será um teste para as próximas eleições presidenciais diante do embate entre progressistas x conservadores, e também a eleição que definirá o sucessor do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PL-AL). Foi Lira quem acatou o pedido da extrema direita e colocou o PL do estuprador, como tem sido chamado pelas mulheres, em regime de urgência para evitar que o tema seja debatido em comissões e siga o rito normal, pois precisa desses votos para eleger seu escolhido à sua sucessão. Após desgaste político vindo das ruas e das redes sociais, Lira decidiu retomar o debate sobre o tema após o recesso parlamentar, que ocorre em julho.
O uso político de um tema tão delicado para as mulheres é criticado pela mestra em saúde pública e Secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, do Ministério das Mulheres, Denise Motta Dau, que vê no projeto a retirada de direitos conquistados por lei, como pauta de costumes ou pauta moral para atacar os direitos conquistados pelas mulheres.
Esse tipo de politicagem, que não é a boa política, não visa atender aos interesses públicos, laicos e coletivos, mas sim uma politicagem no sentido de instrumentalizar e incentivar uma disputa do campo conservador da extrema direita contra o campo democrático e popular
Pensamento semelhante tem Amanda Corcino, secretária da Mulher Trabalhadora da CUT Nacional. Segundo ela, todo ano eleitoral essa questão do aborto surge como pauta política.
“Usam os corpos das mulheres para questionar seus direitos e este ano não seria diferente. Todo ano eleitoral é isso, e novamente são homens decidindo sobre os corpos das mulheres e a gente tem que fazer esse debate com a sociedade porque não podemos retroagir naquilo que já foi conquistado”, ressalta Amanda.
O PL do estupro que prevê até 20 anos de prisão para as vítimas que abortarem enquanto os estupradores pegam penas em média de oito a 15 anos, mostra, segundo a Secretária de Combate ao Racismo da CUT Nacional, Julia Nogueira, a inversão de valores da bancada da extrema direita no Congresso brasileiro.
“Em pleno século 21 o parlamento brasileiro esquece os problemas de desigualdade e de pobreza do país, que são fundamentais para a discussão de uma sociedade mais justa, para defender um projeto que, na verdade criminaliza a vítima? “, questiona a dirigente.
O que nós queremos é que todo o povo brasileiro entenda. Menina não é mãe. Uma criança não pode ser mãe e não pode arcar com trauma de ter corpo muitas vezes deformado porque se seu aparelho reprodutivo ainda não está amadurecido para conduzir uma gravidez. É um absurdo, é uma vergonha que isso esteja sendo discutido no Brasil
O fato de meninas pobres e de maioria negra serem as maiores vítimas de crimes sexuais, como apontou o último Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado na terça-feira (18), certamente vai revitimizar essas meninas, acredita Julia Nogueira.
As agressões sexuais foram o tipo de violência mais recorrente registrada contra meninas de 10 a 14 anos no Brasil em 2022. A agressão sexual representa quase a metade (49,6%) dos casos de violência contra meninas nesta faixa etária, e 30% entre bebês e crianças de até nove anos. Leia aqui o conteúdo na íntegra.
Recentemente, o autor do projeto do estupro, deputado federal, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), em entrevista, disse que as meninas violentadas, menores de idade, não irão para a prisão, mas passarão por medidas socioeducativas, o que também é uma punição. Para as mulheres, a vítima com medo da repressão pode não denunciar o agressor e manter a gravidez.
Medidas socioeducativas vão diminuir o número de denúncias encobrindo o agressor e punindo novamente a vítima. Não tem nenhum cabimento esse projeto; é totalmente incoerente
Já existe um grande entrave à denúncia de meninas porque os estupros nessa faixa etária ocorrem no seio do lar, praticados por amigos e parentes próximos como um irmão, um tio, até mesmo um pai.
“Isso por si só já é uma tragédia porque você confia em uma pessoa e num determinado momento ela começa a abusar da sua filha, da sua sobrinha, de alguém próximo. Então, se quebra a relação de confiança total e se instala um trauma na cabeça dessa criança que vai carregar isso pro resto da vida”, lamenta Julia Nogueira.
Educação sexual como forma de prevenção
Um debate que vem sendo feito pela Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, é a inclusão da educação sexual nas escolas para que as meninas e os meninos entendam quais as formas de abordagem em seus corpos são aceitáveis no convívio social e familiar. Segundo Denise Motta Dau, a pasta tem planejado com o Ministério da Educação a inclusão do debate de igualdade de gênero, incentivando dentro desse contexto o retorno com foco na educação sexual nas universidades.
“Nas universidades, inclusive, pretendemos fazer a qualificação do protocolo de enfrentamento ao assédio sexual. É fundamental dentro desse contexto de indicadores altos de violência contra meninas que têm muito mais dificuldade de identificar, de nomear a violência sofrida. As meninas não sabem exatamente o que é aquilo, estão sob sofrimento psicológico, estão sob impacto dessa violência, mas não sabem expressar”, diz Denise.
Segundo ela, a experiência de quem faz formação nessa área de educação sexual e de igualdade de gênero entre meninos e meninas é muito forte no sentido de que, ao passar as informações, ao orientar, ao dialogar sobre o tema, as meninas buscam as pessoas que estão dando a palestra para dizer o que o padrasto, o tio, o primo, o irmão estão fazendo.
“A violência sexual que foi apresentada, informada num debate, num diálogo de educação sexual é entendida. Portanto, como demonstram experiências exitosas, implementadas por alguns governos estaduais que começam a se multiplicar, reforçam a importância da retomada da educação sexual, do debate de igualdade de gênero, nos planos municipais e estaduais de educação porque ajuda que meninas e meninos também possam se defender das diversas violências sexuais que possam sofrer. Então, é importante sim porque isso é a defesa dos direitos e da vida de meninas e meninos”, declara Denise.
A resistência e recusa dos conservadores em permitir a educação sexual nas escolas levantam outro debate que precisa ser feito, acredita Julia Nogueira. Isto porque a educação sexual nas escolas vai permitir que as crianças entendam o que pode e o que não pode ser permitido.
“Eu me pergunto e deixo essa pergunta: a quem interessa que esse debate não seja feito e que as crianças não entendam que determinadas formas de abordagens não são corretas?. Por que será que a maioria dos parlamentares que subscrevem o projeto são homens? A gente deve se perguntar também. Por que defender estuprador? A quem interessa? As pessoas têm de entender que tudo tem uma consequência e qual é a consequência de homens brancos, velhos, estarem defendendo esse projeto? Estão aí perguntas que todo mundo busca responder e saber, inclusive, procurando conhecer os antecedentes de cada um deles”, observa a secretária de Combate ao Racismo da CUT.
O estupro é abominável, é a maior violência que se pode cometer contra uma mulher. Como é que nós queremos que as nossas crianças convivam com esse estigma e esse trauma, se isso vai perdurar pelo resto de suas vidas? Então, se nós queremos que o Brasil seja um país desenvolvido, nós precisamos também tratar das mazelas que, infelizmente, ainda estão presentes na sociedade brasileira
Além da educação nas escolas, Denise Motta Dau, vê a cultura como parte importante na prevenção à violência sexual, que segundo ela, também muda as mentalidades e ajuda o país a se atentar para diversas questões importantes relacionadas aos direitos, à vida das meninas e aos problemas sociais.
“É fundamental para que nós possamos reduzir os índices de violência, além da implementação de novos serviços de atendimento as mulheres, a mudança da mentalidade machista, racista, lesbofóbica, homofóbica, xenófoba e misógina. O Brasil precisa superar esse conservadorismo”, afirma Denise
Pacto
O Pacto Nacional de Prevenção ao Feminicídio tem sido articulado pelo Ministério das Mulheres envolvendo ações transversais e metas de nove ministérios, entre eles o da Saúde, para que meninas e mulheres que desenvolverem gravidez, fruto de estupro, tenham acesso amplo aos serviços de atendimento ao aborto permitido em lei.
O fato de as mulheres terem ido espontaneamente às ruas protestar contra o PL do estupro e deixarem claro que “criança não é mãe; estuprador não é pai”, foi um fator muito importante para que as políticas públicas em defesa das mulheres sejam mantidas e ampliadas, entende Denise Motta Dau.
“Os movimentos de mulheres mostram que estão atentos e que não admitirão sob o falso argumento de pauta de costumes ou proteção à vida, ataques aos direitos das mulheres. Porque nós queremos defender a vida, das meninas e das mulheres. E esse projeto de lei ataca frontalmente os direitos das mulheres já conquistados e regulamentados em lei”, diz a secretária.
“As manifestações foram importantes para o conjunto da sociedade compreender que sob uma falsa moral, uma falsa defesa da vida, está a retirada de direitos humanos. São as meninas que pagarão com a vida, com sofrimento e revitimização. Nós precisamos ser um país onde o Estado seja efetivamente garantidor de direito e, é fundamental a mudança da mentalidade da sociedade nesse contexto. Estamos trabalhando fortemente para isso”, complementa Denise.
Uma das formas foi a sanção pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na última segunda-feira (17), do Projeto de Lei nº 501, de 2019, que cria um plano de metas para o enfrentamento integrado da violência doméstica e familiar contra a mulher. O plano deverá ser executado de maneira colaborativa pela União, estados, municípios e o Distrito Federal, e terá validade de dez anos com atualização obrigatória a cada dois anos.
Quem assinou o Projeto do Estupro
O PL, de autoria do deputado federal, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que propõe equiparar a pena para o crime de aborto ao homicídio simples aplicando 20 anos de cadeia para a vítima de estupro que fizer o aborto, enquanto o estuprador pega no máximo 15 anos de prisão, é subscrito por outros 31 parlamentares, sendo a maioria homens brancos (20) e a menor parte mulheres (11). A deputada Renilce Nicodemos (MDB-PA), retirou sua assinatura, por, segundo ela, não saber, que a mulher teria uma pena maior do que o estuprador.
Veja a lista dos nomes e partidos políticos
PL: Carla Zambelli (SP), Delegado Paulo Bilynskyj (SP), Mario Frias (SP), Eduardo Bolsonaro (SP), Abilio Brunini (MT), Coronel Fernanda (MT), Delegado Ramagem (RJ), Bia Kicis (DF), Pastor Eurico (PE), Capitão Alden (BA), Julia Zanatta (SC), Nikolas Ferreira (MG), Junio Amaral (MG), Eli Borges (TO), Gilvan da Federal (ES), Filipe Martins (TO) e Bibo Nunes (RS).
MDB: Delegado Palumbo (SP), Simone Marquetto (SP), e Pezenti (SC).
União Brasil: Cristiane Lopes (RO) e Dayany Bittencourt (CE).
Republicanos: Ely Santos (SP) e Franciane Bayer (RS).
Partido Progressistas: Evair Vieira de Melo (ES) e Luiz Ovando (MS).
E de outros partidos: Dr. Frederico (PRD/MG), Greyce Elias (Avante/MG), Lêda Borges (PSDB/GO) e Cezinha de Madureira (PSD/SP).