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Posse de armas: histórias de quem quase matou ou quase morreu

Relatos nas redes sociais dão conta do desespero que toma conta de milhares de brasileiros após a liberação da posse de armas por Jair Bolsonaro; mulheres podem ser as principais vítimas

Publicado: 16 Janeiro, 2019 - 17h05 | Última modificação: 16 Janeiro, 2019 - 17h24

Escrito por: Cláudia Motta, da RBA

Reprodução
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“Historinhas de armas” tomaram conta das redes sociais desde que o presidente Jair Bolsonaro publicou decreto liberando a posse de armas, nessa terça-feira (15).

A maior parte delas dá conta de tragédias que poderiam ter acontecido, mas foram evitadas por falta de munição nos armamentos. Outras têm finais dramáticos.

O jornalista Rodrigo Wrolli conta no Facebook: “Eu não devia ter mais de 7 anos, mas me lembro como se fosse hoje. E nunca vou me esquecer. Tínhamos um sítio. Um dia meu pai deixou seu revólver calibre 38 em cima da cama. Eu peguei a arma, apontei em sua direção e atirei. Por sorte estava descarregada”.

A mesma sorte não tiveram os vizinhos da também jornalista Hildegard Angel. “Vivi num prédio em que tinha como vizinhos uma família de campeões de tiro ao alvo. Gente generosa e pacífica. Um dia, a tragédia: o caçula dos filhos, brincando, deu um tiro e matou o amiguinho da escola. A arma estava bem escondida, mas ele encontrou”, lembra em relato no Twitter.

Em 2004, o Estatuto do Desarmamento restringiu a posse e o porte de armas. Com isso, o ritmo de crescimento de homicídios se reduziu, passando de 8,1% ao ano, entre 1980 e 2003, para 2,2% de 2004 a 2014. 

A postagem de Rodolfo atraiu outros tantos relatos desses tempos, agora de volta, em que ter arma em casa era corriqueiro. “Aos sete anos de idade em uma confusão entre amigos meu pai foi atingido por uma bala perdida da arma de um amigo... eu estava com braço em volta de sua cintura e até hoje sinto o peso do seu corpo caindo e eu não conseguia segurar”, diz trecho de um desses relatos.

“Duas balas o atingiram e uma terceira passou de raspão no meu pulso... Ele morreu ali mesmo, todos fugiram até o amigo. Ficou eu e meu irmão de 5 anos chamando ele e eu sangrando... Meu irmão deitou no peito dele e eu fique sentada numa cadeira o sangue descendo no meu pulso... Ficamos uns 20 a 30 minutos eu acho... Aí chegou a polícia. O amigo dele ficou com depressão profunda e nós sem um pai. Hoje aquela sensação de desespero e impotência me dominaram. Muito ruim”, conclui.

As tragédias com armas nunca são esquecidas, afirma outra postagem: “o ladrão tomou a arma do meu cunhado e o matou com apenas 22 anos de idade. Nunca vou esquecer isso. Isso marca uma família pra sempre.”

Uma outra lembra que o pai usava armas e bebia. Ela tinha 6 anos. “Eu dormia no mesmo quarto que meus pais. Numa madrugada acordei e me deparei com meu pai apontando a arma pra minha amada mãe que estava dormindo. Agarrei nas pernas dele e comecei a chorar para que não matasse ela. Alguém tocou em seu coração além de mim para que não fizesse isso. Graças a Deus ele vendeu a arma e ficamos livres”.

Armas e violência doméstica

O deputado federal Jean Willys afirma que do total de 2.339 mulheres mortas por arma de fogo no Brasil, em 2016, 560 foram assassinadas dentro de casa. E 85% dos agressores foram maridos, companheiros ou ex-maridos ou ex-companheiros das vítimas. “Agora, graças a Bolsonaro, vai ter mais armas de fogo dentro de casa.”

O parlamentar evoca a lei Maria da Penha contra o decreto de Bolsonaro. A farmacêutica ficou paraplégica em 1983, após ser atingida por um tiro do marido agressor. Sua luta para condenar seu quase assassino resultou na condenação do Estado brasileiro, em 2002, por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em 2006, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que leva seu nome, considerada uma das legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres.

Posse de armas: a morte mais perto

“Tive um amigo que era PM. E ia com ele e a namorada em stand de tiro. Eu atirava bem. Fiquei fã de atirar no stand”, conta a jornalista Lourdes Nassif. “Um dia, lá nos idos dos tempos sem celular, fomos buscar a namorada dele no trabalho, um lugar ermo, meio preocupante”, relata para explicar que teve de ficar sozinha no carro, enquanto o amigo ia chamar a namorada. “Ele pegou a arma e me deu, dizendo que era para minha proteção. Eu acreditei. Fiquei com aquela coisa na mão me sentindo a rainha da defesa pessoal. Dedinho ao lado do gatilho e na cabeça a certeza que acertaria mesmo.”

Lourdes ficou chocada com sua própria postura. “Passavam trabalhadores ao lado do carro e eu, corajosa com a arma na mão, já fazia pose de justiceira. Eram trabalhadores. Quando me toquei do que estava fazendo, coloquei a arma no chão e esperei. Eles voltaram pro carro. Entreguei a arma e decretei luto oficial por três dias para a minha humanidade, e a certeza de que nunca mais colocaria uma porra daquela na minha mão.”

Para ela, o resultado não foi desastroso porque teve consciência do absurdo da situação. “Eu sou consciente e senti tudo aquilo, mas imagina um bolsominion com a arma na mão.”

Um dos comentários no post de Rodolfo Wrolli é uma confissão. “Quase tirei minha própria vida, por ter uma arma dentro de casa num momento de muita depressão. Peguei, apontei para meu ouvido e depois pensei na merda que eu iria fazer na vida da pessoa que tinha o porte dessa arma.”

A jornalista aposentada Maria Ester Costa acredita que “se todos puxarem pela memória”, são inúmeras as histórias de tragédias com armas de fogo. Ela mesma viveu uma situação terrível. “Meu ex tinha uma arma com registro, que herdou do pai. A empregada, que tinha 16 anos, roubou e deu para outra de 14 que estava grávida atirar na barriga, porque estava grávida.”

Ester conta que ela e o ex só descobriram o ocorrido bem depois, porque a empregada da vizinha, que era amiga da que furtou a arma, contou parte da história. “Levamos um susto! Tivemos de registrar boletim em São Paulo e em Itapevi. A menina do tiro na barriga sobreviveu e a criança também. História de estarrecer.”

Ela conta ter herdado da mãe – que teve um irmão assassinado com um tiro nas costas – o ódio pelas armas. Como milhões de brasileiros, está inconformada com a liberação decretada por Bolsonaro. Pesquisa Datafolha indica que 62% dos brasileiros são contra a medida.

“Mas todos se calam e deixam um maluco dar direito a quatro armas para cada cidadão. Falta juízo, falta amor, falta responsabilidade e cidadania. Falta vergonha na cara, também, e respeito pelas novas gerações. Tomara que ao tentar mudar o Estatuto do Desarmamento, que é atribuição do Congresso, este governo já tenha sido triturado no liquidificador do bom senso. É o que nos resta de esperança.”