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Precarização faz trabalhadores adoecidos não se afastarem com medo de demissão

Homens e mulheres que sofreram acidentes de trabalho contam dificuldades enfrentadas para ter seus direitos garantidos

Publicado: 29 Abril, 2019 - 10h07

Escrito por: Anelise Moreira, Brasil de Fato

Reprodução
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Uma queda entre a cozinha e a lavanderia mudou a vida de Gertide Maria Lopes, que hoje se divide entre emprego, fisioterapias, consultas e exames. Por conta do acidente ocorrido no local de trabalho, em 2016, ela passou por três cirurgias nas duas pernas, tem três pinos e anda com dificuldade.

“O médico pediu mais exames, porque sinto formigamento, queimação, coceira e não consigo ficar mais do que uma hora de pé. Eu sinto muitas dores, tomo remédio frequentemente. Tenho que fazer exames, porque estou com risco de trombose nas pernas”, lamenta.

Gertide caiu no local onde trabalha como empregada doméstica há 19 anos em um apartamento luxuoso, de 200 metros quadrados, na região da Avenida Paulista.

Com ambientes amplos e claros, o imóvel é habitado por uma pessoa. De origem pernambucana, Gertide exerce o cargo de governanta, e diz que os trabalhos vão desde a limpeza, compras no mercado até a organização de festas. Quando ela comunicou o acidente de trabalho, a patroa disse: "Logo agora que minha família ia passar alguns dias em casa?".

A história de Gertide, de 58 anos, exemplifica a situação de milhares de trabalhadoras domésticas no país. A categoria é composta majoritariamente por mulheres, negras, mais velhas e com baixa escolaridade, segundo os últimos dados da Fundação Seade, especializada em estatísticas socioeconômicas e demográficas.

Só quando Gertide procurou a Previdência Social, descobriu que o seguro não estava sendo pago: "A patroa disse que só fazia dois meses que não estava pagando, mas o INSS informou que era um ano e seis meses. Descobri que não estava assegurada e não pude receber o beneficio”.

A governanta conta que passou necessidades básicas, pois não tinha dinheiro para pagar as contas e a medicação. "Eu não tinha luz, gás, nada, nem a medicação, e tinha que contar com a ajuda dos meus irmãos”, lembra.

Gertide ficou afastada por dois anos e três meses, mas após o período período de afastamento pelo INSS passou três meses sem receber salário.

 

A responsabilidade de comunicação do acidente de trabalho é do empregador, por meio da Comunicação de Acidente de Trabalho. Esse documento garante que o trabalhador seja amparado financeiramente pelo auxílio-doença durante o período em que precisar ficar afastado do emprego para sua recuperação. O acidente de trabalho é caracterizado tecnicamente pela perícia médica do INSS.

Para a médica do trabalho Maria Maeno, devido à precarização do mercado de trabalho, o trabalhador está com cada vez mais dificuldades de se afastar para cuidados com a saúde.

“Com vínculos curtos, menos estabilidade e precarização no mercado de trabalho, o trabalhador, mesmo sentindo dor ou adoecido, vai pensar muito mais para se afastar. No momento em que ele se afasta do trabalho, o risco de ser demitido aumenta. E isso aumenta também o presenteísmo, que é quando a pessoa trabalha mesmo adoecida, mas não tem produtividade por conta do estado de saúde”, ressalta.

O MAIOR ACIDENTE DE TRABALHO DO BRASIL

O crime socioambiental de Brumadinho (MG), em janeiro de 2019, chocou o mundo. A tragédia ocorrida há três meses foi considerada o maior acidente de trabalho do país e o segundo maior do mundo. O número de vítimas fatais em Brumadinho chegou a 233, e cerca de 37 corpos seguem debaixo da lama tóxica, segundo a Defesa Civil de Minas Gerais.

“Eu fazia planos, agora não faço mais. Eu vivo o agora, não vou viver o amanhã mais. Tiraram meu direito de sonhar. Não só meu, mas de muitas pessoas”, lamenta Luiz Sávio Castro, terceirizado da Vale como armador de ferragem e afastado pelo INSS. Aos 60 anos, Luiz é um dos trabalhadores sobreviventes de Brumadinho e hoje toma calmantes todos os dias, pois sofre com insônia, ansiedade e melancolia após a tragédia.

“Transporte de ida e volta para consultas médicas estão dando [a mineradora Vale]. Remédios, foi negado, como é o caso de um que tomo que custa R$ 80,00 e disseram que eu podia pagar. A Vale até agora não me procurou para nada. Sou eu que tenho que ir atrás, mas eles me humilham. A gente fica indignado.”

O trabalhador ressalta que é preciso que a Vale entenda que depois da tragédia “ela [Vale] precisa ter respeito, igualdade com todos os funcionários e terceirizados e que assuma o erro com dignidade, respeito e não fique só na embromação”. O setor mineral mata mais que os demais setores de atividades. É o que afirma Mário Parreiras de Faria, auditor-fiscal do trabalho e coordenador da Comissão Nacional Permanente do Setor Minerário.

“A indústria extrativa mineral é um setor que tem muitos acidentes de trabalho. As estatísticas mostram que em 2017 a taxa de mortalidade de trabalhadores nessa área foi superior às outras em 2,6%”, conta. “Ela também tem uma gama de fatores de risco que o tornam um motivo de preocupação para a auditoria, como exposição a ruídos e poeira, trabalho físico intenso, equipamentos pesados.” Para ele é essencial que se invista em fiscalização para se reduzir o número de acidentes. “Em Minas Gerais, temos apenas 230 auditores de fiscalização externa direta para os 863 municípios do estado. Ou seja, um número muito pequeno para o tamanho da demanda”, completa.

ÁREA DA SAÚDE TEM RECORDE DE ADOECIMENTOS

De acordo com Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, o Brasil registrou, de 2012 a 2018, 4,5 milhões de acidentes de trabalho. Desses, quase 18 mil foram fatais. Estima-se que ocorra um acidente a cada 49 segundos.

A plataforma é desenvolvida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trabalhadores do setor de saúde têm a maior quantidade de ocorrências registradas, cerca de 10% dos casos.

As ocupações que possuem o maior número de registros predominam entre alimentadores de linha de produção com 5,5%, técnicos de enfermagem 5%, faxineiros 3,2%, serventes de obras 2,8% e motoristas de caminhão 2,4%.

Samira Alves* tem 48 anos e é servidora de um hospital público na zona leste de São Paulo (SP). Ela está afastada há cinco meses, pois sofreu perseguição e assédio moral no ambiente de trabalho.

"Lá [no hospital] eles não veem a doença. Principalmente as doenças psicossomáticas são consideradas ‘frescura’. Alguns não conhecem as doenças mentais ou não têm essa compreensão sobre o adoecimento do trabalhador", ressalta a trabalhadora.

A área em que Samira atua lidera as atividades econômicas que mais registram acidentes de trabalho em São Paulo, que é atendimento hospitalar. “O trabalhador que está doente física ou psiquicamente e precisa se manter em um trabalho onde se cobram metas e com condições precárias de trabalho tem a sua saúde ainda mais afetada. Vejo até enfermeiras estressadas, gritando com paciente, mas porque ela está doente, por conta de toda a pressão”, relata Samira.

O não reconhecimento da situação de adoecimento levou a trabalhadora a uma série de humilhações. Tudo começou com a síndrome do pânico: ela tinha dificuldades de sair de casa para trabalhar, e na sequência passou a ter uma série de doenças desencadeadas pelo trabalho, como ansiedade, diabetes, problemas de tireoide e psoríase. Para ela, o empregador deveria ter outro olhar sobre o adoecimento.

O INIMIGO SILENCIOSO DO TRABALHADOR RURAL

Pelo menos 152 registros de novos agrotóxicos foram liberados no Brasil nos primeiros 100 dias de governo Bolsonaro (PSL). O Brasil lidera o ranking mundial de uso de veneno.

Nos últimos anos, o número só cresceu. Em 2015, no governo Dilma Rousseff (PT), foram aprovados 139 novos agrotóxicos em um ano. Já em 2018, no governo Michel Temer (MDB), o número mais que triplicou, saltando para 450. De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz , foram registrados 4 mil casos de intoxicação por agrotóxicos no país em 2017, quase o dobro de registros em relação a uma década atrás. Em 2018, 154 pessoas morreram por conta do contato com o veneno.

“Podemos afirmar que todo cidadão está exposto de alguma forma aos agrotóxicos: tanto quem trabalha diretamente com os produtos em lavouras, fábricas com exposição direta ou consumidores que estão nas grandes cidades quanto quem nem tem contato com o produto, mas consome alimentos com agrotóxicos”, lembra Ada Pontes, médica da Universidade Federal do Ceará (UFC). O agrotóxico é um produto químico ou biológico utilizado para exterminar pragas das lavouras. Representantes do agronegócio usam o termo “defensivo agrícola” ou “fitossanitário” para afastar a imagem de que a substância é tóxica.

As consequências do uso de agrotóxicos podem afetar gerações. Márcia Xavier sofre os impactos na vida da família desde antes do falecimento do pai Zé Maria, morto em 2010, por ter denunciando o uso abusivo de agrotóxicos. “As consequências destruidoras possíveis, desde o cruel assassinato do papai, o sofrimento de ver pessoas morrerem com câncer, as injustiças e também a questão da Sophia hoje com seis anos com puberdade precoce”, enumera a moradora da Chapada do Apodi, que fica entre o Ceará e o Rio Grande do Norte.

Uma pesquisa recente realizada pela Faculdade de Medicina da UFC apontou o aumento no número de más formações congênitas e puberdade precoce na comunidade do Tomé, onde viveu Zé Maria, entre Limoeiro do Norte (CE) e Quixeré (CE).

Entre 2014 e 2015, foram constatados cinco casos de crianças que nasceram, quatro com más formações e uma com puberdade precoce. Outras três meninas com menos de um ano de idade desenvolveram puberdade precoce, e essas doenças tinham a ver com exposição a agrotóxicos”, revela o estudo.
No sangue e na urina de familiares das crianças, foi encontrada uma percentagem significativa de organoclorados, veneno proibido no Brasil. Seis a cada sete domicílios apresentaram altos índices de agrotóxicos na água.

Na Chapada do Apodi, onde aviões e tratores pulverizam agrotóxicos em plantações de frutas para exportação. Márcia conta que, na comunidade, é impossível não se ter contato com nenhum tipo de substância tóxica. “Elas estão na água, no ar, no solo, nas frutas. Meu contato é indireto, pois não sou agricultora, sou psicóloga, mas tenho muito cuidado com a alimentação, principalmente por conta da minha filha. Evitamos ao máximo o consumo de frutas e verduras, pois a concentração de agrotóxico nelas é incalculável”, alerta. Este ano, o governo do Ceará sancionou a lei Zé Maria do Tomé, que proíbe a pulverização aérea em todo o estado: “Essa lei é um marco histórico. Após a morte do papai, o problema ganhou visibilidade. Depois de falecido, ele ganhou voz. Como legado, ficou a sua coragem, bravura. Para nós, ele é eterno”, enaltece a filha.

DESAFIOS PARA O AMBIENTE DE TRABALHO SEGURO E DECENTE

Na década de 1990, um ambiente de trabalho era facilmente identificado por conta das condições insalubres e inadequadas para o trabalhador. Agora, os riscos são cada vez menos visíveis: pressão, metas e disponibilidade em tempo integral para convocação ao trabalho. É o que explica a médica do trabalho e pesquisadora Maria Maeno.

“O problema é quando nós temos um ambiente de trabalho aparentemente bom, mas que esconde por trás uma série de questões. Um exemplo são empresas que, ao primeiro olhar, têm um ambiente organizado, limpo, têm ar condicionado, mas o trabalhador tem que ter disponibilidade para trabalhar no período em que o empregador necessita”, exemplifica. “É o caso das jornadas flexíveis que beneficiam a empresa, mas não o funcionário, porque ele não consegue ter tempo livre para si mesmo. Esse é o típico sinal de precaridade do nosso tempo e que não é visível”, avalia a médica.

As doenças ocupacionais se enquadram na mesma legislação dos acidentes de trabalho. “A doença mental não está associada apenas ao trabalho, mas ela é desencadeada ou agravada pelas péssimas condições de trabalho, com pressões excessivas, assédio moral, e outras condições inadequadas”, completa.

Leonardo Osório, procurador do MPT e coordenador nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho, diz que uma das ameaças no governo Bolsonaro é a aplicação da reforma trabalhista, que prevê o mínimo de prevenção e segurança no ambiente de trabalho.

 

“Quando ela desvincula a jornada de trabalho da questão de saúde e segurança do trabalho, quando ela permite gestantes e lactantes trabalharem em ambientes insalubres, quando ela permite uma jornada exaustiva em atividades também insalubres, ela tem o potencial de causar o prejuízo à saúde dos trabalhadores”, explica o procurador.

Segundo ele, há uma subnotificação dos dados de acidente de trabalho, que são apoiados apenas nos registros pela Previdência Social e não levam em conta os trabalhadores autônomos e informais acidentados.

*O nome da trabalhadora é fictício e foi trocado para preservar a fonte.

Com a colaboração de Amélia Gomes do Brasil de Fato MG

Expediente:

Reportagem especial: Anelize Moreira | Coordenação: Daniel Giovanaz e Vivian Fernandes | Edição: Tayguara Ribeiro e Daniel Giovanaz | Artes Gráficas: Fernando Badharó | Fotos: Brasil de Fato e Repórter Brasil