Escrito por: André Accarini
Estudos comprovam que o Bolsa Família reduziu o déficit de estatura e a mortalidade de crianças e transformou a vida de pessoas socioeconomicamente vulneráveis ao promover acesso à alimentação e renda
A história do programa Bolsa Família se confunde com a história recente do país, quando há 20 anos, em outubro de 2003, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, então em seu primeiro mandato, reformulou e turbinou programas sociais para que atendessem, de fato, às populações mais vulneráveis.
O Programa foi uma das marcas de Lula no combate à fome, à pobreza e à desigualdade. Fazia parte de um conjunto de medidas voltadas a reverter cicatrizes históricas do país relacionadas à exclusão social. O Bolsa Família, que reuniu num só benefício o Bolsa Escola, Vale Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação, do governo de FHC, era o carro chefe do Fome Zero, uma das primeiras ações de Lula como presidente.
“É um programa importantíssimo na linha do que ainda precisa ser feito que é o direito a uma renda mínima a todo cidadão brasileiro. E tem uma grande relevância no combate à pobreza principalmente entre as mulheres e crianças, porque o programa, como foi pensado, as ampara diretamente”, diz a secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT, Jandyra Uehara.
A dirigente ressalta que a iniciativa vai de encontro aos princípios básicos defendidos pela CUT, desde a sua fundação, que incluem a promoção e defesa de justiça econômica e social no país.
“Em 2002, assim como no ano passado, a CUT apoiou a candidatura de um governo democrático e popular cujo objetivo era justamente esse, o de amparar as populações mais vulneráveis. Portanto programas sociais como o Bolsa Família são essenciais para que a sociedade seja menos desigual e que todos tenham acesso a uma renda mínima”.
Ela reforça que a CUT ainda defende a ampliação do programa e a criação e um programa voltado a uma renda mínima para todos os brasileiros.
“E isso não se significa, em absoluto, que o programa se contraponha à geração de emprego e renda para todos, o que também é defesa da CUT”, ela ressalta.
Ao longo dos tempos, os setores elitistas e conservadores da sociedade argumentam que o programa criaria ‘vagabundos’, que não trabalhariam para receber o benefício, que à época da criação era de R$ 50 reais, além de ‘mulheres que engravidariam apenas para receber os benefícios”, entre outras tantas mentiras. Números levantados por vários estudos e a própria história mostraram os impactos positivos para as populações mais carentes.
Esses estudos realizados no Brasil e no mundo comprovaram que o programa deu um novo horizonte, mudou a trajetória de muitas vidas no país, diz o consultor da Action Aid, organização não governamental de combate à desigualdade social, e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Francisco Menezes.
“O Programa Bolsa família teve um papel junto com outros programas e medidas executadas, em um determinado momento da vida brasileira, de enorme efetividade no enfrentamento da pobreza e da desigualdade”, ele afirma.
Entre os êxitos do programa, citados pelo consultor, estão a transferência de uma renda essencial para garantia de direitos mínimos, como é a questão da alimentação, da habitação e da mobilidade, além de outras necessidades materiais, a disposição e possibilidade de trabalhadoras e trabalhadores não aceitarem mais remunerações absolutamente rebaixadas diante do que lhes era exigido como força de trabalho e a elevação da autoestima dos mais vulneráveis, com destaque para mulheres negras que formam a maioria das titulares do programa.
Estudos comprovam os benefícios do Bolsa Família
Um dos levantamentos acompanhou 360 mil crianças de 2008 a 2012. Entre os resultados constatou-se que houve uma redução no déficit de estatura em média de 17,5% dessas crianças, de zero a 5 anos, que até 2008 era menor do que média das demais. Já em 2012, verificou-se que o índice caiu para metade entre essas mesmas crianças, já com idade entre 5 e 9 anos.
Outro estudo publicado pela revista The Lancet, publicação científica sobre medicina do Reino Unido, mostrou a redução na mortalidade infantil como efeito do programa. Uma das mais fortes evidências sobre a importância do Programa Bolsa Família está nos estudos sobre a expressiva redução da mortalidade infantil entre as crianças de famílias beneficiárias, em especial quando associados o Bolsa Família e ao Programa de Saúde da Família. A mortalidade infantil causada por diarreia recuou em 46% e a causada por desnutrição em 58%”, afirmou a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, em entrevista a Carta Capital.
Promovendo um futuro melhor: o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), também fez diversos estudos avaliando a permanência dos filhos de beneficiários do Bolsa Família. Os dados mostraram que 64% dos dependentes de beneficiários de 7 a 16 anos em 2005 já haviam deixado o Cadastro Único (CadÚnico) em 2019, quando a faixa de idade dessas pessoas já estava entre 21 e 30 anos.
Dos que permaneceram no cadastro, somente, 20% recebiam o Bolsa Família no início da vida adulta. Outros 14% estavam cadastrados, mas não recebiam o benefício, o que indica que já estavam acima da linha de pobreza.
"A taxa de saída do Cadastro Único nos leva a entender que as condicionalidades do programa surtiram efeito, ou seja, a manutenção da criança na escola e os cuidados com sua saúde permitiram que essas crianças acumulassem capital humano que lhes garantisse um emprego formal que lhes tirasse da pobreza, embora um choque como a pandemia possa jogá-los novamente nessa condição", disse Paulo Tafner, diretor-presidente do IMDS à BBC.
Transformando vidas
O acesso à alimentação foi certamente o ponto que registrou maior impacto entre as transformações sociais que vinham sendo promovidas até o golpe de 2016, contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), que resultou na ascensão da extrema direita ao poder.
O Bolsa Família teve papel de relevância no combate à fome. “Sem dúvida, foi corresponsável da saída do Brasil do mapa da fome em 2016. Indo mais além, precisamos também considerar os efeitos de mais longo prazo, especialmente junto ao público infantil, no sentido do enfrentamento da desnutrição nessa faixa de idade, reduzindo o contingente de crianças com um futuro comprometido física e cognitivamente, diante da falta de acesso a uma alimentação adequada e saudável”, diz Francisco Menezes ao avaliar a importância do programa no futuro das pessoas.
“Infelizmente esse processo foi interrompido após 2016 e muito agravado entre 2019 e 2022. E isso exige agora um esforço de reconstrução de políticas e atenuação dos danos já causados”, ele ressalta.
Os exemplos de ‘crianças’ que foram beneficiadas pelo programa e obtiveram a chance de um futuro melhor são muitos. Entre os mais conhecidos está o economista e ex-BBB, Gil do Vigor.
“O Bolsa Família, literalmente, salvou a vida da minha família. Eu fui salvo, eu sou real, eu sou uma representação de uma pessoa que saiu da pobreza, que não tinha o que comer, não tinha casa, não tinha como pagar aluguel e hoje está num PHD na Califórnia”, disse em entrevista ao PodCast Podpah.
As políticas públicas elas salvam, é real. As pessoas às vezes querem fingir que não existe, que não acontece. As pessoas precisam entender, é importante tratar. Quantas crianças, assim como eu, são talentos que podem mudar a ciência, desenvolver nosso país, que se perdem porque olham para o lado e falam assim: ‘eu não vou aguentar viver isso’- Gil do Vigor
A baiana de Cândido Sales, Isamara Mendes da Silva, doutora em biologia, é outro exemplo. No Palácio do Planalto, durante a cerimônia de relançamento do programa em março deste ano, ela contou sua história.
“Pela primeira vez podíamos comprar cadernos de capa dura e lápis de cor. Graças ao Bolsa Família pude comprar meu primeiro livro de ficção e, desde então, a literatura se tornou parte importante da minha vida. Também graças ao Bolsa Família passamos a comer o pão todos os dias antes de ir para a escola. Me lembrei de ouvir painho falando: ‘Lula disse que até filho de pobre vai ser doutor.’. Hoje, posso dizer com orgulho: painho, Lula estava certo. Eu me tornei doutora”, disse ela.
A mãe da bióloga começou a receber o benefício em 2006 o que possibilitou que ela e as irmãs se mantivessem na escola. Além do Bolsa Família, Isamara contou com outros programas sociais para poder se formar.
A roda gira
Já no que se refere à economia do país, um estudo apresentado em 2019, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostrou que que para cada 1% do Produto Interno Bruto, aplicado na execução do Bolsa Família, há um aumento de 1,78% da atividade econômica do país. O custo do programa aos cofres públicos, de acordo com a ex-ministra é de cerca de apenas 0,5% do PIB.
Combate à pobreza
O mesmo estudo do Ipea mostra ainda que um dos alvos do programa – erradicar a pobreza – estava sendo atingido. Em 2017, mas de 3,4 milhões de pessoas já haviam saído da condição de extrema pobreza, desde o início do programa, em 2003, e outros 3,2 milhões haviam deixado a linha de pobreza.
Para erradicar a pobreza em uma sociedade, necessariamente deve haver sistemas de transferência de renda e o Bolsa Família é um dos exemplos mais reconhecidos em todo o planeta como um programa eficaz.
“A transferência de renda com programas efetivos como é o caso do Bolsa Família traz uma contribuição grande para que possamos reduzir o enorme déficit de justiça social existente no Brasil. Mas não é só ela. É necessário que esteja articulada com um conjunto de outras iniciativas” avalia o consultor do Action Aid.
Ele cita outras políticas importantes como coadjuvantes tais quais a recuperação do valor real do salário mínimo e a garantia de condições dignas de trabalho. “Temos que considerar que esse déficit de justiça social não se dá apenas pela insuficiência de renda de um enorme número de trabalhadores, mas também pela oferta insuficiente de serviços para os grupos sociais mais carentes e outros fatores como o baixo índice de participação desses mesmos grupos nas instâncias políticas do país”, observa Menezes se referindo a representatividade da classe trabalhadora no Congresso Nacional, atualmente com maioria conservadora.
Sem dúvida bolsa família cumpre um papel muito importante no enfrentamento da desigualdade, seja pela via da renda, mas também dentro da promoção da cidadania. Agora com o relançamento do programa em bases ainda mais avançadas, essa sua qualidade certamente se intensificará- Francisco MenezesReconhecimento mundial
“Uma experiência importante que contém lições a outros países sobre políticas de redução da desigualdade social”. Foi desta forma que, em 2014, o Banco Mundial, entidade ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) se pronunciou sobre o Bolsa Família, quando o programa estava preste a completar 10 anos.
“Montar um sistema de proteção social não é apenas algo que pode ser feito, mas que deve ser feito e que é possível”, disse o então diretor de Proteção Social da entidade , Arup Banerji, citando ressaltando o caráter de ‘foco das ações nas famílias”, ou seja, priorizar brasileiros de baixa renda nas políticas de Estado.
O programa foi ainda reconhecido diversas vezes por entidades internacionais. Um ano antes do reconhecimento do Banco Mundial, a ex-ministra Tereza Campello, havia recebido, em Doha, no Catar, o I Prêmio por Desempenho Extraordinário em Seguridade Social, concedido ao Bolsa Família pela Associação Internacional de Seguridade Social (ISSA, na sigla em inglês).