Escrito por: Nara Lacerda Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Primeira semana de vacinação escancara falta de preparo do governo

Com poucas doses disponíveis, país ainda não tem condições de imunizar nem mesmo os grupos prioritários

Reprodução

Os dias que se seguiram à aprovação da vacina contra o coronavírus por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 17 de janeiro, deram a dimensão do desafio que o Brasil tem pela frente. Com dois imunizantes aprovados para uso emergencial, o país iniciou a campanha de vacinação contando apenas com 6 milhões de doses da vacina do Butantan garantidas, menos de 2% do necessário para vacinar toda a população.

Dias antes do aval da Anvisa, o Governo Federal vinha alardeando o carregamento de 2 milhões de doses da vacina de Oxford, fabricadas na Índia. A data de entrega prevista pelo Ministério da Saúde foi frustrada, o que diminuiu ainda mais a quantidade disponível para o começo da vacinação. A compra de material da China para produção no Brasil também emperrou.

Em participação no podcast Covid-19 na Semana, a médica de família e comunidade Nathalia Neiva dos Santos, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, afirma que a situação do Brasil é muito complexa. "Nós estamos em maus lençóis. Não é um caos não planejado, não é um caos não organizado. Tem uma política que tem sido mantida. A análise que a gente faz é que a vacina nunca foi prioridade", alerta a profissional.

As dificuldades em conseguir doses e matéria prima da vacina contra o coronavírus para toda a população eram previstas há meses, diante da demanda altíssima do mundo todo. O Brasil, no entanto, tem outros empecilhos que jogam contra, o mais grave deles está nas relações diplomáticas estabelecidas pelo governo de Jair Bolsonaro com o resto do mundo. 

Na terça-feira (19), o ministério das Relações Exteriores da Índia anunciou a primeira lista de nações para as quais enviaria a vacina, que não tinha o Brasil. No mesmo dia, um representante indiano afirmava na Organização Mundial do Comércio que a falta de acordo para derrubar os direitos de propriedade sobre o imunizante estava causando a escassez.

Junto com a África do Sul, a Índia apresentou uma proposta de quebra de patentes à Organização Mundial do Comércio (OMC) no ano passado. O Brasil não se uniu ao grupo, cortando uma relação de cooperação consolidada e histórica entre as nações emergentes. Quase uma semana depois do previsto, as doses acordadas com o país asiático chegaram ao Brasil, mas o desgaste diplomático já estava consolidado.

As relações internacionais também pesam para a aquisição de insumos necessários para produção das vacinas em território nacional. O material tem origem na China, país que já foi alvo de acusações, piadas e chacota por membros da gestão de Jair Bolsonaro e integrantes da família do presidente. Sem diálogo apropriado, o Brasil parece ter ido para o fim da fila nas negociações para tentar agilizar o envio da matéria prima.

A médica Nathalia Neiva enfatiza que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições de levar o plano nacional de imunização à frente, mas a restrição de doses, a falta de insumos e a situação diplomática dificultam o andamento adequado desse processo. "A gente tem o aparato. A gente tem estrutura para isso. Mas, de fato, o nosso maquinário não está sendo colocado para operar", ressalta.

Por conta da falta de insumos, o Instituto Butantan passou mais de uma semana sem condições de produzir novas doses. Especialistas já calculam que a população brasileira só estará totalmente imunizada em 2022. No sábado (23), mais um elemento se somou às sucessivas comprovações de que falta organização. O Ministério da Saúde admitiu que optou, conscientemente, por não comprar 70 milhões de doses da Pfizer.

A escolha, segundo o ministério, ocorreu porque as doses não seriam suficientes, o que causaria "frustração" na população. Em nota, a pasta disse que a aquisição representaria apenas publicidade para o laboratório fabricante e acusou a farmacêutica de colocar cláusulas "abusivas" no contrato. Os termos, no entanto, seriam os mesmos oferecidos e aceitos por nações como Estados Unidos, Japão e Israel.