Escrito por: Redação CUT
Mirela Dutra Alberton, que se opôs ao aborto legal da menina de 11 anos estuprada em Santa Catarina, deu início a uma investigação para determinar a “causa que levou à morte do feto” após o procedimento
A promotora Mirela Dutra Alberton, que se opôs ao aborto legal da menina de 11 anos estuprada em Santa Catarina, deu início a uma investigação para determinar a “causa que levou à morte do feto” após o procedimento. A informação é da repórter Paula Guimarães e foi publicada nesta quarta-feira (6) pelos sites Catarinas e The Intercept, os mesmos que denunciaram a juiza que quis impedir o aborto, pedindo para a menina "aguentar um pouquinho mais" e a mandando para um abrigo para impedir o aborto legal.
Pela lei não há crime a ser investigado pois o aborto em caso de estupro é autorizado por lei desde 1940 no Brasil. Como a criança é menor de 14 anos, ficou caracterizado que houve estupro de vulnerável.
Segundo a reportagem, a promotora pediu, no último dia 24, que os restos fetais fossem recolhidos por policiais do Instituto Geral de Perícias no Hospital Universitário da UFSC para a realização de uma necrópsia. No mesmo dia, véspera da alta da menina, o juiz José Adilson Bittencourt Junior afirmou em despacho que não se opunha ao requerimento, nem ao acesso a informações médicas da paciente.
No requerimento enviado ao perito-geral da polícia científica de Santa Catarina, Giovani Eduardo Adriano, com o título “urgente”, a promotora busca confirmar, em especial, se houve a aplicação de cloreto de potássio para a parada dos batimentos cardíacos ainda no útero, ou seja, se foi realizada a assistolia fetal. Mirella é lotada na 2ª Promotoria de Justiça do município de Tijucas (SC).
“No tocante ao requerimento de autorização para que o IGP possa buscar e efetuar necropsia do corpo de delito (feto), bem como o acesso do prontuário da paciente, não há óbice deste juízo, pois tais órgãos (MPSC e IGP) possuem competências que o autorizam a assim proceder”, afirma o juiz no despacho. A decisão afirmava que o HU havia sido intimado a encaminhar “toda a documentação e relatório médico detalhado” sobre a realização do aborto em até 48 horas.
O procedimento foi feito por meio de medicamentos, de forma que o feto saísse do útero já sem batimentos cardíacos. A garota ficou na companhia da mãe durante todo o processo. De acordo com o médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco e diretor do Cisam, hospital referência em aborto legal no Recife, para casos acima de 22 a 24 semanas de gestação, é recomendada a indução de assistolia fetal antes da indução do aborto. “Induz ao óbito do feto intra-útero para não ocorrer sofrimento”, explicou.
Na mesma audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer tentou induzir a menina a desistir do aborto legal, Mirella propôs que a criança mantivesse a “barriga” por mais “uma ou duas semanas”. “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele”,disse ela à criança. A conduta da promotora é investigada pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
Procurada pela reportagem, a polícia científica disse que não irá se pronunciar “até a finalização dos procedimentos médico-legais, devido às repercussões e por estar tramitando em segredo de justiça” e que, quando finalizado o procedimento, o resultado será enviado à vara criminal responsável.
O Hospital Universitário da UFSC disse que “as informações confidenciais sobre o caso da menor apenas foram compartilhadas com órgãos que detêm poder requisitório previsto em lei, em autos sob sigilo” e que se “solidariza com a criança e seus familiares, bem como com a sua equipe assistencial”.
Segundo fontes ouvidas pelo Intercept e pelo portal Catarinas, a investigação que Mirella deseja iniciar não têm fundamento legal, já que a garantia do direito ao aborto nos casos previstos em lei não pode ser criminalizada. “É um delírio, porque é uma excludente de ilicitude, não tem nenhum indício de crime”, analisa a criminalista Marta Machado, professora FGV São Paulo e pesquisadora da Afro Cebrap — Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial. “Ela está criando um crime na cabeça dela, de acordo com a orientação ideológica dela, contra a lei. Está violando o princípio da legalidade, que é o direito ao aborto legal”.
Para a criminalista, a iniciativa da promotora aumenta a revitimização da menina e de sua família. “Ela está instrumentalizando o Estado para perseguir um crime que não existe. Está claramente abusando do poder dela. Além disso, viola o direito à intimidade da menina”, avalia.
A constitucionalista Eloisa Machado, professora da FGV em São Paulo, considera que a investigação da “causa da morte” do feto, após a garantia do direito da menina, é grave. “Caso o sistema de Justiça continue perseguindo a menina e sua mãe pela busca do exercício regular de seu direito, teremos uma situação ainda mais grave. A tentativa de transformar o aborto legal, previsto em lei desde a década de 1940 em um crime de homicídio, é algo inconstitucional, inconvencional e ilegal”, afirmou.
Procurada por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público, Mirella respondeu que não poderia se manifestar, já que o processo corre em sigilo.
O juiz José Adilson Bittencourt Junior, via assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, disse que “são inverídicas as informações de que o juiz autorizou o recolhimento do feto e deferiu a disponibilização do prontuário médico”.
Por telefone, a assessoria acrescentou que “o magistrado tão somente se manifestou no sentido de que não caberia a ele decidir sobre tal pedido”. Na prática, foi o despacho do juiz que possibilitou que os restos fetais fossem recolhidos. O IGP foi ao hospital na tarde de 24 de junho e o hospital se recusou a fazer a entrega. De noite, contudo, os policiais retornaram com um novo documento e foram liberados os restos.
A promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas, presidente da Comissão de Saúde Reprodutiva da Fédération Internationale des Femmes des Carrières Juridiques [Federação Internacional das Mulheres de Carreira Jurídica, em tradução livre], explica que a equipe médica não pode ser investigada por garantir o exercício do direito da criança. Ela lembra que os profissionais estão respaldados pelo artigo 128 do Código Penal e pela própria recomendação do Ministério Público Federal para que o hospital realizasse o aborto na menina vítima de estupro.
“O que a gente vê é que há uma tentativa do Estado brasileiro como um todo de impedir o acesso das meninas e mulheres aos seus direitos sexuais e reprodutivos, inclusive o direito ao aborto legal”, contextualiza.