Escrito por: Marina Duarte de Souza e Nara Lacerda Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Racismo e infância: Brasil falha em proteger crianças e jovens pretos

Dinâmica cruel formada por preconceito e exclusões afeta a saúde mental e mina a autoestima

Fernando Frazão/Agência Brasil/ Fotos Públicas

Ao chegar à adolescência, a partir dos 15 anos, um jovem preto no Brasil tem quase três vezes mais chance de ser assassinado do que um jovem branco. O dado faz parte do estudo Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A pesquisa mostra que a questão racial está diretamente ligada ao risco de um jovem perder a vida no país. A taxa de mortalidade entre a juventude preta chega a 86,34 para cada 100 mil pessoas. Relação que entre os brancos cai para 31,89.

O risco não é teórico, já que os números levantados pelo estudo se expressam na prática no cotidiano de milhões de brasileiros. Pessoas pretas no país confiam menos na polícia, estão mais expostas a crimes como estupro e violência doméstica e compõem a maior parte da população carcerária. O cenário atinge em cheio a formação dessas pessoas, traz obstáculos à autoestima e cria condições mentais de profundo estresse e preocupação.

Ser criança preta no Brasil significa não só crescer frente a riscos maiores de violência, mas também não se ver representado, ter a capacidade intelectual questionada e fazer parte de uma sociedade que desenvolveu mecanismos precários de correção dessa realidade histórica. O psicólogo Marcos Amaral, integrante do Instituto Amma Psique e Negritude, afirma que o genocídio da população preta se expressa de diferentes modos.

“Ele (o genocídio) têm tentáculos. Se expressa na educação, na saúde e no recado diretamente dado a essa população quando policiais se sentem no direito de invadir uma casa e entrar atirando nessa casa. Em qual espaço da branquitude o policial entra atirando? É um recado de que a vida dos negros importa menos.”

O impacto no desenvolvimento, segundo Marcos, é direto. “É um impedimento de descansar, de brincar, perde a possibilidade de fantasia. É importante, do ponto de vista do desenvolvimento, que a criança possa imaginar, fantasiar, criar histórias. De que modo você vai se permitir imaginar, criar fantasias, quando precisa viver num estado de alerta constante? (...)O maior impacto, do ponto de vista da saúde mental, é a impossibilidade de construir projetos de futuro. É muito cruel a juventude ser ceifada da possibilidade de sonhar.”

A percepção de Marcos sobre os tentáculos da violência contra as crianças pretas também está confirmada em números desde os primeiros anos de vida desta população. O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) alerta que embora tenha ocorrido uma redução histórica nos índices de mortalidade infantil, os indicadores são piores entre pretos, pardos e indígenas e as políticas de proteção ainda não estão consolidadas..

Na educação, segundo dados do movimento Todos Pela Educação, o desequilíbrio no acesso é percebido da creche ao ensino médio. Entre as crianças pretas e pardas de 0 a 3 anos, 32% estavam matriculadas em creches no ano 2018. Na população branca esse índice sobre para 39%. Entre os jovens, 53,9% dos que se declaram pretos e 57,8% dos pardos concluíram o Ensino Médio até os 19 anos, mas entre os brancos, a taxa cresce para 74%.

E a cabeça, como fica?

A psicóloga e vice-presidenta do Conselho Regional de Psicologia (CRP), Ivani Oliveira, afirma que o risco à saúde mental é potencializado pelo racismo.

“A pessoa que é exposta com frequência ao racismo pode desenvolver algum transtorno de sofrimento mental e isso tudo acontece com a criança e o adolescente. Ela pode desenvolver depressão, transtorno de ansiedade e até o uso abusivo de substância está relacionado a essa exposição cotidiana a violência racista.”

Ivani ressalta que é impossível reparar as vidas perdidas, mas frisa a importância de o Estado brasileiro cuidar do bem estar psicológico da população preta.

“As adversidades que são postas para crianças e adolescentes pretos são intransponíveis, porque é a morte. Lidar com a morte cotidianamente vai esvaziando a sua potencia de dar resposta, de sobreviver.”

Oásis na periferia

Raifah Monteiro, é também psicólogo e educador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, em Sapopemba, SP (Cedeca). Integrante da Rede de Proteção ao Genocídio, ele ressalta que até mesmo quando os números da violência caem, a juventude preta continua a ser a maior vítima e entre esses jovens os dados continuam se agravando.

“Essa violência produz impactos desde a primeira infância que vão se desdobrando (...) Fica muito evidente que é essa juventude que vem sendo assassinada de maneira brutal. Esses adolescentes têm, têm território. Esse adolescente da periferia, esse adolescente preto, esse adolescente que é filho da classe trabalhadora, da mãe preta solo. Esses recortes precisam ser feitos.”

Monteiro coordena o Observatório Ecos e Reflexos, que reúne 15 jovens em processos de monitoramento de violações dos direitos das crianças. A partir das discussões no grupo eles debatem a realidade que vivem e constroem o olhar que visa humanizar os dados levantados. Monteiro afirma que a ideia é que os próprios adolescentes se percebam como “os olhos que protagonizam” o processo. Ele chama espaços dessa natureza de oásis, que trazem possibilidades positivas em meios a processos de tanta violência.

“A gente precisa pensar, metodologicamente, como a gente garante essa participação. A gente vai procurar e possibilitar, criando mecanismos, que garantam isso. A gente construiu o processo formativo com eles. Como a gente mede, busca, provoca? Nós construímos com eles esse processo formativo."

A jovem de 22 anos, Gabriela Tavares Bezerra, participa do observatório há um ano. Moradora do bairro Jardim Santo André, região de São Mateus na Zona Leste de São Paulo, ela relata a percepção de que o poder público, em geral, não aborda as temáticas relativas a crianças e jovens pretos. A percepção de Gabriela não é forjada apenas pela participação no grupo ligado ao Cedeca, mas também pela experiência pessoal e a preocupação com primos, amigos e colegas, expostos a essa violência.

“A mão do estado se afasta da periferia, no entanto a mão da polícia e a violência policial estão bem mais próximas do jovem da periferia (...) Um adolescente de 16 anos ser morto dentro de casa, alvejado por vários tiros! Que mundo é esse? São jovens! Não deveria ser assim. Porque isso só acontece com um tipo de classe, um tipo de cor? A gente sabe que até chegar em um patamar em que as coisas vão ficar iguais para todos os lados, o processo é enorme. Enquanto isso, a gente ainda vai derramar muitas lágrimas.”

O contato com o trabalho social, nas palavras da própria Gabriela, amenizam os impactos em certa medida e apontam para uma solução com origem nos próprios jovens.

“É lindo acontecer isso na periferia. Eu não tinha visto antes isso ser feito por jovens da própria periferia. Estar dentro do projeto é muito bonito por isso, embora seja muito difícil algumas vezes. É inacreditável que a gente viva em um país, em 2020 e que ainda veja coisas tão bestiais. Mas a gente tem lutar, fazer alguma coisa. Se não, nada muda.”

A exclusão de crianças e jovens pretos é histórica no Brasil. No artigo de 2016 “Escravos, libertos, filhos de africanos livres, não livres, pretos, ingênuos: negros nas legislações educacionais do XIX”, a historiadora e professora Surya Pombo de Barros faz uma análise apurada desse processo. O trabalho identificou trechos de legislações de diversos estados, que condicionavam o acesso à educação a “pessoas livres”. Em alguns casos, a proibição da presença de escravos era explícita. Em outras situações, era permitido o acesso a meninas pretas somente para o aprendizado de tarefas domésticas.

Quase 200 anos depois, os resquícios dessas práticas seguem enraizados na sociedade brasileira e fica explícito que privar gerações do acesso à educação, traz consequências que perduram. Segundo o Mapa do Trabalho Infantil, hoje, as crianças pretas representam mais de 62% das vítimas de trabalho infantil no país. No caso do trabalho doméstico, esse índice aumenta para 73,5%, sendo que mais de 90%, de meninas.