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Rede de solidariedade transforma números de vítimas do Covid-19 em histórias

CUT, centrais, federações e sindicatos estão contribuindo contando histórias de trabalhadores e trabalhadoras que estão perdendo suas vidas, por categorias de trabalho

Publicado: 27 Abril, 2020 - 09h00 | Última modificação: 27 Abril, 2020 - 13h14

Escrito por: Érica Aragão

Divulgação do Memorial Virtual
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O número de vítimas fatais da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, tem batido recorde nos últimos dias no Brasil e em diversas partes do mundo, mas o destaque é sempre para as estatísticas e não para as pessoas que estão morrendo. Quem eram, o que faziam, eram casados, solteiros, tinham filhos, trabalhavam com quê?

Transformar números em histórias é um dos objetivos da “Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais do Covid-19”, formada por mais de 100 pessoas, instituições e entidades, inclusive sindicais, que criou uma página no Facebook para homenagear e contar as histórias de vida das pessoas que estão morrendo pela doença no país.

A família do chapeiro Paulo Andrade de Moura, nordestino e morador da periferia de São Paulo, que não pode se despedir, pode se sentir mais confortável ao ver a história de vida dele no “Memorial Corona Brasil”.

Para a sobrinha de Paulo, Marta de Moura, o memorial entrou no momento em que toda família estava muito abalada e triste, porque além da perda de uma vida, “que já é uma coisa terrível”, descobrir que o velório terá que ser rápido, com no máximo de 10 pessoas, e com o caixão totalmente lacrado é uma coisa muito dolorida e muito difícil para família e para os amigos.

Memorial DigitalMemorial Digital
Foto do tio da Marta publicada no memorial 

“Para quem vê de fora essa atitude [de criar o Memorial] pode não ser tanto assim, mas para a família que não pode dar o adeus, não pode olhar pela última vez seu ente querido e ainda não poder fazer uma oração com corpo presente, ter a foto e a história tão linda do meu tio no memorial e poder contar a vida honesta e do trabalhador que era, é um grande conforto e um consolo”, afirma Marta, que também perdeu também um primo distante pela doença 15 dias depois da morte do tio.

Segundo um dos fundadores da Rede de Solidariedade às Famílias das Vítimas, o historiador e atuante na defesa dos Direitos Humanos, Danilo Cesar, uma das primeiras medidas da Rede foi a do Memorial Virtual como uma medida de urgência no começo pandemia. “A gente começou a ter relatos de que, pelo grande número de casos suspeitos, a família muitas vezes é separada antes mesmo do óbito, não pode ir ao sepultamento e cremação e os que vão só veem o caixão lacrado e ainda com tempo limitado”.

Vivendo o luto

“E aí a gente viu que este espaço virtual poderia ser um lugar para a família viver o luto, vendo e se emocionando com a história do seu ente querido registrada neste momento histórico que o país vive em forma de homenagem”, afirmou Danilo.

Ele contou que, segundo os dados do Facebook,  o Memorial já conta com mais de 300 histórias contadas e que vem sendo registradas outras cada dia mais. E em comparação com a semana passada, segundo Danilo, a página alcançou mais de 200 mil pessoas e os compartilhamentos cresceram também.

A sobrinha do Paulo, Marta, foi uma das primeiras pessoas a viver a experiência de ver pública a história do seu tio. Ela conta que o pai, o único irmão de João, e todos da família que não puderam ir no sepultamento, ficaram orgulhosos de ver a bela história de João contada num memorial.

“Eu fui uma das únicas da família que foi no enterro, lá a gente tem a sensação de que ninguém tá ligando para a morte da pessoa porque não não tem ninguém lá, é muito triste. Nem sabemos como foram os últimos dias do meu tio, mas dá conforto e consolo ter a história deste homem tão trabalhador e honesto que foi meu tio neste memorial de histórias”, contou Marta.

Periferia ainda em movimento

Marta também contou que outro fator importante que a levou registrar a história do seu tio publicamente foi para alertar a população deste real problema que o país passa. Ela conta que no Capão Redondo onde mora tudo está na antiga normalidade, bares e comércios funcionando e muitas pessoas na rua e isso a preocupa.

“É preciso alertar a população de que ainda estamos no meio da pandemia e que ainda não tem remédio, não tem cura e nem vacina. Precisa ter cuidado e ficar em casa quem puder”, ressalta.

Perfil das histórias

E Marta tem razão em sua preocupação, destaca Danilo. “Ultimamente tem crescido muito os registros históricos de morte de negros, trabalhadores, de jovens, nortistas e nordestinos e da periferia”.

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O profissional era diabético, mas só foi afastado do trabalho no dia 15 de abril, quando apresentou febre e tosse, os primeiros sintomas do novo coronavírus

 Classe trabalhadora e o Covid-19

Quando você dá uma percorrida na página do Memorial dá para perceber o número enorme de profissionais da saúde que vêm morrendo pela contaminação da Covid-19.

E este momento também mostra para a sociedade o quanto a valorização e a defesa da vida e direitos de cada trabalhador e trabalhadora é importante não só para a categoria, mas para toda a sociedade.

A CUT, outras centrais, sindicatos e movimentos sociais fazem parte da Rede de Solidariedade e tem contribuído contando histórias das vítimas da Covid-19.

“A CUT São Paulo se soma à Rede de Apoio as Família de Vítimas Fatais de Covid-19 no Brasil por se solidarizar a todos e todas que tem perdido familiares acometidos por esta doença que não é uma ‘gripezinha’ e também porque, como já expressamos em nota, nossa luta em defesa da vida. Não podemos deixar que as mortes pelo coranavírus sejam lembradas apenas como números. Muitas das vítimas fatais são trabalhadores e trabalhadores da linha de frente no combate à pandemia ou dos setores essências", afirmou o presidente da CUT São Paulo, Douglas Izzo. 

Outro fundador da Rede, o historiador e coordenador da Pastoral Operária, Paulo Pedrini, que também foi assessor de Dom Paulo Evaristo Erns, conta que o vírus é democrático sim porque todos e todas podem contrair, mas o impacto é que muda com a desigualdade e é a classe trabalhadora a mais afetada.

“A medida que você vai construindo o memorial estes números vão criando cara e a gente pensou também em separar estas fotos e histórias por categorias dos trabalhadores e é aí que entra o sindicato”, afirmou Pedrini que também é conselheiro da Apeoesp e do Simpeem por ser profissional da educação.

“Os sindicatos são fundamentais nesta integração na Rede porque têm um papel fundamental nesta crise sanitária e de transformação da sociedade que acontecerá depois que a pandemia passar porque é a luta do povo brasileiro”, ressalta.

Danilo conta que o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais (Sindsep) tem ajudado muito e que começou a organizar já os álbuns por categorias de profissionais e começaram pelos da saúde e que já são mais de 50 histórias registradas de médicos, enfermeiros, técnicos “tudo no mesmo álbum igual importância que todas as categorias têm” e ele também contou em primeira mão que “tem museus nos procurando para fazer este trabalho de memória”.

Paulo reafirma que a solidariedade não tem preço e à medida que acontecem estas coisas fica escancarado a realidade da desigualdade que muitas vezes sabe que existe e tentam esconder. E agora, segundo ele, “fica mais escancarado também a necessidade de construir uma sociedade mais justa e fraterna”.

É ainda maior

Como Danilo citou acima, o Memorial Virtual das Vítimas do Covid-19 é um dos propósitos da Rede. O movimento solidário também atua em mais outras cinco frentes.

Uma outra ação é de dar orientações gerais úteis para familiares de vítimas fatais do covid-19, que muitas vezes nem sabem por onde começar as burocracias da morte e a Rede conta com pessoas, instituições e entidades que dão este apoio e ajuda.

A Rede também dá orientações para velórios, sepultamentos e rituais de despedida, que além de ajudar a família a garantir o atestado de óbito com a notificação da causa da morte, que é tão importante para garantir direitos, também tem um acolhimento com especialistas e voluntários de psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais multidisciplinares.

O acolhimento, apoio e possíveis encaminhamentos fundamentais para as vítimas e familiares dá um amparo social gratuitamente com profissionais e que, na medida do possível, encaminham casos para serviços publicados ligados à Rede.

“Já demos suportes para muitos casos e agora a tendência e crescer. A procura já aumentos pelos canais de comunicação da Rede e são familiares, amigos, colegas de trabalhos e irmãos de fé que tem nos procurado pra registrar as histórias de vítimas por esta doença”, afirmou Danilo.

A Rede também tem apoio de jornalistas e outros cientistas sociais para levantamento das informações dos casos, circunstâncias das mortes, eventuais denúncias e sobretudo o resgate das histórias das vidas atingidas pelo Covid-19.

Agora a Rede também estuda a possibilidade da criação de um “fundo de solidariedade emergencial para o apoio imediato aos familiares das vítimas fatais de covid-19 no brasil”,

“Ninguém tem interesse econômico com a proposta da Rede, a questão é que tem pessoas que nem tem dinheiro para enterrar seus entes queridos, não tem condição nem de fazer o sepultamento público, que não deixou de ser cobrado pelas autoridades e governos, e a gente também precisa ajudar”, destaca.