Escrito por: CUT-RS
Se aprovada, reforma abrirá portas para casos de corrupção do setor privado dentro do setor público a exemplo do que aconteceu em cidades como o Rio de Janeiro e Canoas.
Em tramitação na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32/2020, a chamada reforma administrativa, não se restringirá, se for aprovada, a destruir os serviços públicos e a retirar direitos da população e de servidores e servidoras.
A tal reforma, proposta por Jair Bolsonaro (sem partido) e Paulo Guedes, também abrirá as comportas para o estouro de casos de corrupção do setor privado dentro do serviço público, repetindo o que, recentemente, foi denunciado, por exemplo, no Rio de Janeiro e em Canoas, no Rio Grande do Sul.
Entre outras medidas, como a possibilidade de novas formas de contratação sem concurso público e o fim da estabilidade, a PEC traz a permissão para que “órgãos e entidades”, inclusive privados, firmem “instrumentos de cooperação”. Ou seja, permite uma privatização disfarçada, ou nem tanto, de todos os serviços e de toda a estrutura do setor público.
"A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão, na forma da lei, firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira."
Esse artigo mexe em todo o setor público, abrindo espaço para o aprofundamento das práticas de terceirização, privatização e, no limite, extinção de órgãos e instituições e sua substituição pela iniciativa privada por “vouchers” ou não – o que, enfim, torna o setor público subsidiário do privado, mesmo que isso tenha saído explicitamente da proposta.
Abre, também, as portas para a aplicação, em todo o serviço público e sem quaisquer limites, do modelo já aplicado hoje a partir de entidades como as Organizações Sociais (OS’s). Não faltam exemplos que mostram que essa é uma comporta aberta para a corrupção.
Organização Social (OS) é um tipo de associação privada, sem fins lucrativos, que recebe recursos e estrutura do Estado para prestar serviços públicos, como, por exemplo, na área da saúde.
O governo reconhece uma entidade privada como Organização Social e esta passa, então, a poder receber benefícios do poder público, como dotações orçamentárias, isenções fiscais ou mesmo subvenção direta.
No dia 30 de abril deste ano, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), uma espécie de “Moro carioca”, sofreu impeachment e teve que deixar o cargo. A derrubada de Witzel relaciona-se com denúncias de corrupção envolvendo a contratação de Organizações Sociais na área da saúde.
A descoberta do esquema criminoso teve início com a apuração de irregularidades na contratação dos hospitais de campanha, respiradores e medicamentos para o enfrentamento da pandemia do coronavírus.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) afirma que o governo do RJ estabeleceu um esquema de propina para a contratação emergencial e para liberação de pagamentos a organizações sociais (OSs) que prestam serviços ao governo, especialmente nas áreas de Saúde e Educação.
Conforme a PGR, a contratação de OS’s no Rio de Janeiro movimentava um montante anual de R$ 2 bilhões e o esquema de corrupção, que tinha Witzel como um dos beneficiários, pretendia lucrar R$ 400 milhões. Organizações Sociais contratadas pelo governo para prestar serviços de saúde alimentavam uma “caixinha”.
Em depoimento à CPI da Covid-19 nesta quarta-feira (16), Witzel se disse vítima de perseguição, mas falou sobre “uma série de crimes praticados em governos anteriores, inclusive as OS’s”, que estariam sendo investigados por um delegado da Controladoria-Geral do Estado chamado Bernardo Barbosa.
Conforme o ex-governador, o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, decidiu “pedir de volta” o delegado para o governo federal, retirando Barbosa do Rio de Janeiro.
Ainda segundo Witzel, o delegado Bernardo Barbosa descobriu mais de R$ 1 bilhão de desvio das OS’s. Porém, Witzel afirma que as OS’s que desviaram recursos “continuam lá, operando, livres, leves e soltas, e fazendo dinheiro para alguém que não sou eu”.
No final de 2018, caso semelhante foi descoberto em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Dois anos antes, a Prefeitura da cidade assinara contratos com o Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (Gamp), uma OS, com valor estimado em R$ 1,8 bilhão para a gestão de hospitais e outras unidades de saúde.
Foram detectados, entre as inúmeras irregularidades, o superfaturamento de medicamentos em até 17.000%, a utilização de laranjas e testas de ferro do chefe do esquema na direção do Gamp, a cooptação de agentes públicos, o desvio de dinheiro da saúde pública para os envolvidos na fraude, além do pagamento de viagens de férias pagas com dinheiro público da saúde de Canoas.
Conforme denúncia do Ministério Público na época, o Gamp, travestido de entidade assistencial sem fins lucrativos, “se trata de uma típica organização criminosa voltada para a prática de inúmeros delitos, em especial peculato e lavagem de dinheiro, entre outras fraudes que esvaziam os cofres públicos”.
Assista ao vídeo do Ministério Público
O Sintrajufe/RS conversou sobre o tema com o ex-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do RS (Sergs), Estêvão Finger. Ele conta que praticamente 100% dos postos de saúde de Porto Alegre foram terceirizados para corporações hospitalares, em uma lógica de empresariamento:
“O que eu observo é que aqueles postos de saúde extremamente periféricos ou com infraestrutura mais precarizada não foram terceirizados, pois não interessa para o conglomerado empresarial. Ainda, na gestão do governo Marchezan (PSDB), foram fechados pelo menos dez postos de saúde, e a atual gestão não reabriu todos, infelizmente. Quem perde com isso? Os próprios trabalhadores e a sociedade, sobretudo quem mais precisa do serviço público descentralizado”.
Para Estêvão, esses processos de terceirização e privatização têm duplo efeito maléfico: para os trabalhadores e trabalhadoras da saúde e para a sociedade: “Os trabalhadores sofrem com um vínculo frágil em se tratando das relações trabalhistas, sobretudo com o advento da famigerada reforma trabalhista implantada pelo governo golpista do Temer. Diante do contexto da reforma, com a fragilidade do importante papel dos sindicatos trabalhistas, os patrões ganham notório poder nos processos de negociações entre patrão e empregado."
"No caso da reforma administrativa, por exemplo, a não obrigatoriedade da realização de concurso público propicia a prática de nepotismo nas gestões ou os famosos ‘apadrinhamentos’ políticos. Voltaremos ao Brasil do início do século XX, tamanho retrocesso. Para a população, a ausência de concurso público também traz consequências terríveis", explica..
"O concurso permite a tão criticada estabilidade pelos setores neoliberais. Ocorre que a estabilidade é uma ferramenta de proteção à própria sociedade, uma vez que condiciona o tão desejado vínculo entre o trabalhador da saúde e a população. Um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e os agentes comunitários de saúde com estabilidade em seu emprego constroem relações positivas e que afeta diretamente no bom cuidado para toda uma comunidade”, salienta Estêvão.
A dirigente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp) e da CUT/SP, Juliana Salles, destaca que “os escândalos revelados pelos hospitais de campanha no Rio de Janeiro e em outros estados são a constatação do que os trabalhadores de saúde vinculados às Os’s vivem: contratos fraudulentos que não são auditados, corrupção solta. E, para os trabalhadores nesse modelo, a realidade é: crescimento de quarteirizações e pagamentos por ‘caixa 2’; nada de reajuste salarial por anos, sem reposição nem da inflação; alto turn-over; sobrecarga de trabalho; e perda de qualidade de assistência para a população".
"A reforma administrativa entra com o objetivo de reduzir os serviços públicos diretos e seus servidores e ampliar a atuação das OS’s na saúde. É isso o que se quer? Saúde de pior qualidade para a população, mais corrupção e trabalho precário para os médicos e enfermagem?”, questiona a médica.
O jornalista e assessor de imprensa do Sindicato dos Servidores Municipais de São Pauo (Sindsep-SP), Alexandre Linares, também critica o mecanismo das Organizações Sociais. Para ele, esse formato, “nas suas diferentes modalidades jurídicas (OS’s, Osicips, fundações público-privadas…) tem um objetivo: tirar da administração direta a prestação dos serviços à população e entregá-lo para um sistema de apropriação privada dos orçamentos públicos".
"É um sistema engenhoso e blindado de privatização do dinheiro público, através de sistemas de corrupção. Nas Organizações Sociais, as condições de trabalho são piores, a perseguição sindical aos trabalhadores é maior, a rotatividade não para, os salários dos trabalhadores são menores e os dos gestores são super salários. É urgente recuperar os serviços públicos para a administração direta de cada esfera pública”, defende.
Por isso, a reforma administrativa que o governo Bolsonaro tenta aprovar com a PEC 32 abrirá caminho para que casos assim se repitam em todas as esferas da administração pública. Se hoje o modelo das Organizações Sociais está mais arraigado na saúde, se a reforma for aprovada, o artigo 37-A garantirá a possibilidade que educação, Justiça e outros setores também vejam aplicadas as mesmas práticas.
Uma privatização disfarçada de tudo o que é público, trazendo prejuízos graves para servidores e servidoras e para toda a população, além de escancarar as comportas da corrupção.