Reforma da Previdência vai gerar uma massa de pessoas que nunca irá se aposentar
As implicações da reforma e a defesa da necessidade de incluir proteções adicionais à proposta e maior controle social e fiscalizatório do sistema previdenciário
Publicado: 19 Agosto, 2019 - 11h37
Escrito por: Redação CUT
O texto-base da reforma da Previdência aprovado na Câmara dos Deputados tem três eixos centrais, as alterações paramétricas, a desconstitucionalização da matéria previdenciária e a privatização da previdência complementar pública, que vão impedir milhares de brasileiros de ter acesso aos benefícios previdenciários e criar de uma massa de ‘inaposentáveis’.
O governo de Jair Bolsonaro (PSL) encaminhou ao Congresso Nacional Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 06/2019, nome oficial da reforma, que está tramitando no Senado onde também precisa passar por duas votações no plenário, que muda as regras de concessão de benefícios que vão resultar em uma severa redução da taxa de cobertura (um número menor de pessoas vai acessar a previdência) e da taxa de reposição (o primeiro benefício de aposentadoria na comparação com o último salário da ativa diminui)”, avalia Filipe Costa Leiria, auditor público externo junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, em entrevista publicada no site DS, Diálogos do Sul.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Leiria comenta as implicações da reforma proposta pelo governo e defende a necessidade de incluir proteções adicionais à proposta e maior controle social e fiscalizatório do sistema previdenciário para romper com a história da Previdência Social brasileira, que “foi saqueada para financiar o orçamento fiscal”.
Ex-auditor do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – IPERGS, Filipe Costa Leiria diz que há “uma distância entre as normas (com seu conjunto de valores) e a prática previdenciária (ou cultura previdenciária, prefiro esse termo)”. Ele explica: “No geral, o que se vê ao longo da história é, de um lado, uma sucessão de governos se apropriando dos fundos previdenciários para resolverem seus problemas fiscais e, de outro lado, um conjunto resistente de servidores tentando preservar os recursos”.
Confira a íntegra da entrevista:
IHU On-Line - Que avaliação faz do texto-base da reforma da Previdência, aprovado nesta semana na Câmara dos Deputados?
Filipe Costa Leiria - O texto-base da reforma possui três eixos centrais, as alterações paramétricas, a desconstitucionalização da matéria previdenciária e a privatização da previdência complementar pública. Em relação às alterações paramétricas, há uma lógica de distanciamento entre as regras de aposentação e o cálculo do benefício de aposentadoria, bem como redução de benefícios (vide o cálculo das médias para definir o benefício de aposentadoria e a possibilidade de pensão inferior ao salário mínimo). Já o segundo eixo transfere para legislação infraconstitucional, em especial na previdência dos servidores públicos, aspectos centrais da política previdenciária (definição de benefícios, alíquotas, dentre outros), o que eleva a insegurança jurídica. A possibilidade de privatização da previdência complementar pública (hoje restrita a entidades fechadas de previdência com natureza pública) está associada a um processo de financeirização das políticas sociais.
A resultante desse conjunto de medidas é uma exclusão previdenciária e a criação de uma massa de inaposentáveis: severa redução da taxa de cobertura (um número menor de pessoas vai acessar a previdência) e da taxa de reposição (o primeiro benefício de aposentadoria na comparação com o último salário da ativa diminui). Para se ter uma ideia, em um trabalho da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal - Anfip coordenado pela professora Denise Gentil (UFRJ), caso as regras da PEC 06/2019 estivessem valendo em 2016, cerca de 57% dos trabalhadores urbanos homens não conseguiriam se aposentar. No caso das mulheres, trabalhadoras urbanas, esse percentual seria algo em torno de 74%. Aquilo que o governo almeja, se referindo como uma “economia” de R$ 1 trilhão, nada mais é que uma redução de renda que recai essencialmente sobre trabalhadores que ganham até dois salários mínimos. Não é forçoso dizer que a PEC é misógina e racista, pois acentua esses aspectos sociais.
Na sua avaliação, os pontos de discussão da reforma são de ordem técnica ou política?
Esta proposta teve início com uma “palavra mágica”: um trilhão. Sem esclarecer o que significava no curso de dez anos e sem dizer exatamente quem responderia por esse montante. Foi necessário um grande esforço para que o governo admitisse que os mais pobres pagariam essa conta. A proposta trazia a capitalização. Sem informar o custo de transição.
Há uma falsa dicotomia que precisa ser superada, ainda mais nas políticas previdenciárias. Toda técnica é concebida a partir de um lugar, de um determinado olhar, com uma historicidade, fatores que vão moldando uma compreensão sobre a realidade, portanto, toda a técnica é precedida de escolhas políticas. Na previdência isso já é consolidado: os modelos do Banco Mundial, os trabalhos de Peter Diamond (Nobel em Economia no ano de 2010), passando por indicadores mais sofisticados como o índice Melbourne Mercer Global Pension Index, deixam claro que a previdência é algo heterogêneo. Não há uma política plenamente universalizável, precisa haver uma adaptação às bases socioeconômicas de cada país.
As discussões da reforma, em que pese por vezes uma aparência de tecnicismo, são sobre quão inclusiva ou não será a política previdenciária. Sua estrutura central está voltada a privilegiar em especial o capital financeiro: seja de forma indireta (reduzindo os gastos sociais e abrindo mais espaço para pagamento de juros aos bancos, através do que se tem denunciado como sistema da dívida; seja de forma indireta, privatizando parte atrativa da previdência pública (a previdência complementar pública).
Em que contexto econômico e orçamentário a reforma está sendo elaborada e como esse contexto influencia essa proposta?
A reforma é parte importante do que se convencionou chamar de convergência liberal na América Latina. Na sua versão mais atual, esse processo se caracteriza não só pela diminuição do papel do Estado, mas também pela financeirização da política social. Esse último aspecto pode ser entendido como uma hipertrofia do capital financeiro, em que a entrega de bens e serviços públicos passa a ser intermediada por agentes financeiros, constituindo um colateral de alguma forma de financiamento.
No caso brasileiro, a Emenda Constitucional 95 pavimenta esse caminho. Tal emenda limita os gastos sociais à taxa de crescimento da inflação por 20 anos, sem colocar qualquer limite para pagamento de juros e serviço da dívida pública. Significa dizer que a vida, por exemplo, as despesas com crianças em uma UTI neonatal têm de observar limites inflacionários no crescimento anual de despesas, mas a rolagem da dívida com bancos, não.
Outras iniciativas nesse sentido, como projeto de securitização da dívida ativa, remuneração da sobra de caixa dos bancos pelo Banco Central, também são destinadas a privilegiar um setor bem específico da sociedade.
A reforma da previdência vem reforçar essa lógica, liberando espaço fiscal para a manutenção de um rentismo financeiro improdutivo baseado no endividamento público, através da negação de uma proteção social digna para os trabalhadores.
Muitos críticos argumentam que é preciso fazer uma reforma da Previdência, mas discordam de pontos da reforma proposta pelo governo. Na sua avaliação, é preciso uma reforma da Previdência neste momento? Por que e que aspectos deveriam ser reformados?
Entendo ser necessário fazer uma reforma previdenciária que seja na essência inclusiva e não excludente como aquela proposta pelo governo. A reforma do governo é tão nociva que nosso sistema de seguridade social atual fica parecendo maravilhoso, quando não é. Nosso modelo prevê a exclusão de pessoas, jogando-as para benefícios assistenciais. Ao longo da história, a Previdência Social brasileira foi saqueada para financiar o orçamento fiscal; é necessário pensar proteções adicionais, maior controle social e fiscalizatório. Atualmente o Brasil tem mais de 50% de sua força de trabalho na informalidade, ou seja, com chances mínimas de contribuir para previdência; é necessário incluir essa massa de trabalhadores. A questão demográfica, tão propalada, precisa ser enfrentada de forma adequada, não carregando sobre os mais empobrecidos como faz a proposta do governo.
O mundo do trabalho vem sofrendo transformações radicais. Por um lado, a tecnologia está excluindo postos de trabalho, novas formas de trabalho estão surgindo etc. Por outro lado, o Brasil não resolveu agendas seculares de raízes escravocratas, como a inserção da população negra e indígena no mercado de trabalho, em especial, os white collars. Há um debate a sério a ser feito em relação aos bônus econômicos no setor público. Contudo, não se resolvem essas questões taxando as pessoas como privilegiados (muitas vezes como sinônimo de pilantras) ou produzindo regras eivadas de insegurança jurídica. É necessário um debate maduro mediado pelos diversos atores sociais.
Na previdência e na seguridade social como um todo temos que enfrentar agendas de séculos distintos que se acumulam. Entendo que as soluções previdenciárias devem considerar esse aspecto, trabalhando com regras mais flexíveis, adaptadas aos distintos públicos: trabalho físico, intelectual; realidades intergeracionais, grau de desenvolvimento das distintas regiões do País, e outras variáveis.
De quais pontos técnicos da reforma proposta pelo governo o senhor discorda e com quais concorda e por quê?
Na essência, pressupostos teóricos que concebem a PEC advêm em grande medida de formulações que não dialogam com a realidade social brasileira e isso limita analisar dispositivos da PEC isoladamente, fora de um contexto. Mesmo o fim das desvinculações da receita da União, a famigerada Desvinculação de Receitas da União - DRU, cuja extinção aparenta ser uma medida tendente a preservar recursos previdenciários, vem acompanhada de desonerações de setores do agronegócio, alivia a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL para o setor financeiro.
A problematização com a questão demográfica, algo importante, é outro exemplo. Diante de um aspecto legítimo a ser trabalhado, a solução da PEC indica a criação de uma massa de inaposentáveis.
No geral, a PEC é extremamente contraditória entre os diagnósticos e soluções propostas. Finalmente, a própria forma de condução do debate sobre a previdência, à base de negociação de emendas parlamentares, ocultando informações, desqualificando os interlocutores com ideias contrárias, não indicam um bom resultado. Essa forma de condução necessita de períodos como o que estamos vivendo, ou seja, um certo crepúsculo da democracia, do Estado Democrático de Direito.
O senhor já fez auditoria em órgãos públicos de esfera estadual, como o Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - IPERGS. Pode nos falar sobre esse processo e as principais conclusões?
Durante pelo menos três anos realizei auditorias no então IPERGS, hoje atual IPE-PREV. Aprendi, nessas oportunidades, a identificar uma distância entre as normas (com seu conjunto de valores) e a prática previdenciária (ou cultura previdenciária, prefiro esse termo). No geral, o que se vê ao longo da história é, de um lado, uma sucessão de governos se apropriando dos fundos previdenciários para resolverem seus problemas fiscais e, de outro lado, um conjunto resistente de servidores tentando preservar os recursos. Sob o ponto de vista de cultura previdenciária, a noção de que um fundo previdenciário não pertence exclusivamente ao Estado, que os recursos devem ser coadministrados, de forma profissional, capacitando o gestor do fundo, é algo relativamente recente. Diria que ainda em construção, e sempre com muita vigilância para que o mandatário da vez não desvie os recursos dos propósitos para os quais são destinados.
Hoje muitos especialistas chamam atenção para a crise fiscal do RS. O senhor compõe a equipe que faz o parecer prévio sobre as contas do governo estadual do Rio Grande do Sul. Qual é a situação das contas públicas do estado e quais as causas da crise fiscal do RS?
Não dá para entender o agravamento das condições do Estado gaúcho sem levar em conta que o Brasil enfrenta cinco anos de recessão. Estamos a 94% da produção de 2014 e com expectativa de crescimento zero em 2019. A queda da atividade econômica determina crise fiscal e aumenta a pressão social sobre os serviços públicos.
A razão de existir a proposta do Regime de Recuperação Fiscal é a existência da Dívida. A dívida se autoalimenta. Cresce por razões financeiras e seguirá crescendo. Pagamos e devemos mais. Este é o modelo de subordinação do Estado. Denominamos de Sistema da Dívida.
Deixei de compor a equipe que faz o parecer prévio (o que representa os dados agregados para julgamento de cada ano de mandato do governador do Estado) há cerca de dois anos. Tenho muito orgulho de ter passado por esse setor e muita consideração pelos colegas que conduzem esse trabalho.
As crises das contas públicas do Rio Grande do Sul estão muito associadas às sucessivas alterações do nosso federalismo. Uma sucessão de medidas adotadas pela União, ao longo das décadas, foram afetando a capacidade de financiamento do Estado, seja por criarem encargos desacompanhados dos recursos para executá-los, seja por submeter à visão do governo central. Como resistência a esse processo, para poder operacionalizar o estado, os governos foram criando arquiteturas financeiras regionais que também foram apresentando limites (caixa único, depósitos judiciais, parcelamento de salários, dentre outros). Isso tudo resultou em uma armadilha financeira de curto prazo, ou seja, os recursos são tão consumidos no cotidiano que não se consegue investir para dar um salto de desenvolvimento.
O regime de recuperação fiscal apresentado pela União como uma aparente solução para a saída dessa crise, nada mais é do que consolidar a ideia de submissão do Rio Grande do Sul a um estado unitário. A ponto de, na prática, conferir a uma junta tríplice de burocratas mais poder que chefes de poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) caso o Estado venha a aderir. É importante destacar que nesse cenário todo a renegociação da dívida em 1998 fulminou a capacidade fiscal do Estado. Uma renegociação abusiva, com juros de dar inveja a agiotas.
O regime de recuperação fiscal é uma renegociação de 1998 piorada. Essas medidas só passam com um discurso público de terrorismo fiscal, como esse criado no atual cenário. A dívida do Rio Grande do Sul, se considerarmos que não pode haver cobrança de juros entre os entes federados (como diz nossa Constituição), corrigindo-se pelo Índice Oficial da União para Inflação - IPCA, já teria sido quitada em 2013. Isso é informação oficial, produzida pelo Tribunal de Contas do Estado que, inclusive, instrui a ação que dispensa em caráter liminar que o Rio Grande do Sul continue pagando a dívida com a União.
É possível reverter a crise fiscal do RS? Como?
Sim, plenamente possível. Mas isso passa por romper com certos paradigmas. O primeiro deles é a questão da dívida com a União. O Rio Grande do Sul já a quitou. Deveria reafirmar isso, não se submeter a um debate público capturado pela ideia de um regime de recuperação fiscal voltado aos interesses da União.
Nosso estado tem capital humano, produção diversificada, terras cultiváveis. Vivemos uma espécie de diáspora intelectual, exportando mentes altamente capazes para outros estados e países. Essas potencialidades devem ser direcionadas para pensar um projeto de nação soberana, para os brasileiros e não sub-rogado aos interesses de um capital financeiro internacional, sem compromisso com algum projeto civilizatório.
Não acredito em solução que não passe por uma repactuação do nosso federalismo, articulando essa iniciativa juntamente com outros estados em situação similar de asfixia fiscal, Rio de Janeiro e Minas Gerais, por exemplo. A crise gaúcha não é um processo com uma solução endógena, ou seja, é necessário articulação com outros entes da federação que acreditem em autonomia dos estados.
Deseja acrescentar algo?
Sim, algo muito necessário. É importante dizer para as pessoas não desistirem apesar dos pesares. Não quero parecer ingênuo, tampouco um alienado, mas é preciso ficarmos atentos e pensarmos alternativas. Convivo na mesma realidade antidemocrática, racista, misógina e homofóbica que vem massacrando nosso convívio social. Apesar de termos um mandatário digno de interdição, agravando essas questões, temos de manter a luta pelas ideias. Às vezes nossa luta é para que as ideias continuem sobrevivendo em tempos adversos, para que as ideias não morram. A democracia não pode morrer, pois não há ideias razoáveis fora dela.
Filipe Costa Leiria é doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas - Rio de Janeiro – FJV-RJ e graduado em Administração e em Ciências Contábeis pela UFRGS. Exerceu o cargo de analista de Planejamento, Orçamento e Gestão junto à Secretaria de Planejamento e Gestão do Estado do Rio Grande do Sul entre 2006 e 2010. Desde 2010, exerce o cargo de auditor público externo junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul – TCE-RS, realizando auditorias em órgãos públicos da esfera estadual.