Retomada da democracia na Bolívia é exemplo para o Brasil, diz presidente
Sérgio Nobre conversou com presidente da Bolívia, Luís Arce, em entrevista transmitida pela TVT, nesta quinta-feira. Arce respondeu perguntas de convidados e falou sobre a retomada da democracia no país
Publicado: 26 Fevereiro, 2021 - 15h26 | Última modificação: 26 Fevereiro, 2021 - 15h34
Escrito por: Andre Accarini
Em uma entrevista on-line exclusiva, organizada pela CUT e transmitida pela TVT, nesta quinta-feira (25), o presidente da Bolívia, Luís Arce, falou sobre a luta do povo boliviano para retomar a democracia depois do golpe de estado que destituiu o presidente Evo Morales em 2019, as semelhanças com o golpe de 2016 que destituiu a presidenta Dilma Rousseff e como a esquerda e os movimentos sociais se uniram para retomar o poder.
De acordo com Arce, a juventude, em especial teve papel importante nessa história, porque se antes o que se fazia era uma degradação da imagem de Evo Morales, tratando-o como ditador, o que se viu durante o breve período de golpe foi tortura de dirigentes de movimentos, censura e perseguição à liberdade de expressão.
Em especial os jovens, ele diz, sentiram o que era a ditadura de fato. “Direitos foram violados, eles foram intimidados e perseguidos, por isso foram protagonistas contra essa ditadura moderna do golpe”.
Sérgio Nobre, o presidente da CUT, que recebeu Arce para a conversa sobre a retomada de democracia no país vizinho, ressaltou que, em ambos os casos, o que motivou o golpe foi a disputa do controle de riquezas naturais do país.
“Há muita semelhança com o que acontece no Brasil. O golpe que a Bolívia sofreu teve interesse econômico internacional forte em relação às riquezas naturais. Petróleo no Brasil, Lítio na Bolívia”, disse Sérgio Nobre durante a entrevista.
Luís Arce, ao responder as perguntas de convidados, contou um pouco da história de seu país – as motivações para o golpe e o levante popular para recuperar a democracia e o Estado de direito – leia mais no final do texto – e mostrou como a Bolívia saiu na frente na retomada da democracia.
O golpe que contra Evo Morales, sob alegação de que as eleições foram fraudadas, terminou com a eleição de Luís Arce, do mesmo partido do ex-presidente, em eleições diretas, ou seja, quem escolheu o progressista e o rumo do país foi a população boliviana.
Entrevista
Além do papel da juventude, outros temas foram abordados na entrevista, como a regularização migratória e a criminalização de imigrantes bolivianos em outros países. O jornalista Leonardo Sakamoto questionou o presidente boliviano sobre o trabalho escravo, que no Brasil tem em grande parte dos resgatados, os bolivianos.
O presidente boliviano disse que as conversas entre países têm de ser um espaço de discussão bilateral no que diz respeito ao combate discriminação, à xenofobobia e à exploração. “Não só com o Brasil, mas com outros países onde a situação se repete como Argentina e México”.
Mas um tema que se destacou na entrevista foi a condição econômica da Bolívia.
Milagre econômico
A taxa de crescimento da Bolívia tem sido, em média, de 5% ao ano desde 2006. Um fato relevante para o país ter chegado a esse patamar foi a desdolarização da economia, com o fortalecimento da moeda nacional – o peso boliviano. Arce explicou que a política monetária da Bolívia, desde 2006 migrou para o modelo econômico social comunitário produtivo, “feito por nós para nós”, em detrimento do modelo neoliberal.
Arce foi um dos responsáveis pela implantação dessa política, já que era ministro da Economia e Finanças, à época.
“É um modelo em que apontamos nosso modelo ideal, a partir da nossa produção para gerar riqueza e redistribuição dos recursos à população. Assim, quem tem menos, recebe incentivos econômicos para podermos ser um país mais igualitário”, disse o presidente boliviano;
Tal como foi no Brasil durante os governos Lula e Dilma, na Bolívia, à medida em que havia menos desigualdade, o crescimento crescia. Luís Arce aponta que esses foram e serão “os pilares fundamentais da política econômica: gerar produção com as riquezas naturais para o país e diminuir a desigualdade com redistribuição de renda”.
Onda à esquerda.
México, Argentina e Bolívia já deram o primeiro passo contra a dominação neoliberal da América Latina (possivelmente o Equador seja o próximo), elegeram governos progressistas, com olhar para o social e não voltado a atender exclusivamente aos interesses das elites econômicas.
“A recuperação do governo na Argentina, por exemplo, é um elemento que nos faz pensar que o modelo liberal não se adaptou, não se reinventou e quando foi implantando não deram resultado e o povo esperar para resolver seus problemas”, disse o presidente boliviano.
Na Bolívia vivíamos um bom momento reduzindo índices de desigualdade, aumentando a renda per capita, a expectativa de vida. Não havia motivos para o golpe de Estado a não ser os interesses econômicos
Carta aos brasileiros
Em 2022 será a vez de o Brasil decidir nas urnas o que quer para seu futuro. O ex-ministro da Justiça, Celso Amorim, durante a entrevista, saudou o presidente boliviano afirmando que as eleições da Bolívia foram uma vitória contra o golpe e que o país tem papel central na onda de recuperação de governos democráticos na região, se referindo à América Latina.
Sobre o Brasil, Luis Arce afirmou que a relação do país vizinho com o Brasil é cordial.
“Estamos observando o que acontece Brasil, pelas notícias. Temos visto como enfrentam a pandemia, como controlam a pobreza. Estamos vemos o aumento do desemprego e confiamos na consciência do povo brasileiro, a partir de experiências como a nossa para que avaliem qual é melhor caminho para o país. Desejamos que o povo brasileiro decida o que será melhor para ele”, disse Arce.
Para Sérgio Nobre, presidente da CUT, “a experiência boliviana nos ensina e nos inspira”. Ele afirma que o campo da direita é forte e no Brasil a disputa será dura como foi na Argentina, além de dramática como na Bolívia. “Mas assim como foi na Bolívia, onde o movimento sindical e partidos de esquerda se uniram, aqui se a classe trabalhadora construir unidade em torno de um projeto democrático podemos vencer como a Bolívia venceu”, ele disse.
Nosso maior desafio será governar e desfazer tudo o que Bolsonaro, Paulo Guedes e esse governo fizeram – a destruição não foi pequena e teremos uma tarefa enorme que exigirá unidade
Sérgio ainda reforçou que a experiência da Bolívia comprova que proteger e investir em estatais estratégicas é fundamental para o desenvolvimento.
Lula
Em vídeo, o ex-presidente Lula saudou a presença do presidente boliviano na entrevista e, em seu recado, ressaltou a importância da recuperação da democracia na Bolívia.
“Fiquei feliz quando Arce venceu as eleições para o povo ter o direito de continuar estabelecendo política de inclusão e fortalecendo o processo democrático, tanto nas suas relações internas e como com a América do Sul e o Brasil”, disse Lula.
Histórico do golpe
A vitória da Bolívia contra o golpe militar de 2019 juntamente com a eleição de outros governos democráticos na América Latina como na Argentina e no Equador, mantém acesa a esperança da retomada da plena democracia no Brasil. O golpe no país vizinho, que tirou Evo Morales do poder, foi motivado pela disputa do controle de uma das maiores riquezas naturais do país.
O lítio é um elemento usado na fabricação de baterias e pilhas. A ‘pecinha’ que mantém seu celular ligado agora, por exemplo, é feita com esse material. Um terço da reserva mundial do lítio está na Bolívia. Por se tratar de uma riqueza natural, seu controle econômico é alvo de disputa, assim como de outros minerais – o petróleo brasileiro, por exemplo.
Assim como no Brasil, onde Dilma Rousseff foi destituída em 2016 por meio de um golpe que teve como motivação de entregar o patrimônio nacional à inciativa privada e o petróleo aos interesses do capital estrangeiro, a Bolívia também passou por uma tentativa de controle do lítio, que até então estava sob controle do Estado.
Luis Arce, que foi responsável pelo processo de nacionalização de estatais durante o governo de Evo Morales, em resposta às perguntas feitas por jornalistas, contou que os privatistas bolivianos se articularam para viabilizar o golpe e tirar Morales do poder para entregar o controle do metal aos interesses estrangeiros.
À época, coincidentemente ou não, o bilionário americano Elon Musk, dono da Tesla, que fabrica carros movidos a eletricidade respondeu um comentário nas redes sociais sobre sua participação na anulação das eleições de 2019 na Bolívia: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso”, ele disse.
Meses antes, o vice havia declarado interesse em que a Tesla viesse a industrializar lítio na Bolívia. “Havia interesse de entregar o lítio a essa empresa”
Outro fator citado pelo presidente boliviano que ele considera como uma comprovação dos interesses da elite do país foi que durante o período de golpe a petrolífera estatal boliviana contratou executivos estrangeiros, vindos da Petrobras. Os contratos da estatal boliviana foram alterados e causaram danos econômicos à Bolívia.
Um dos pontos desses contratos era o custo de transporte de gás ao Brasil, que antes era de reponsabilidade da estatal brasileira e passaram a ser custeados até a fronteira pelo país vizinho.
“São pontos que evidenciaram que havia uma concessão em detrimentos aos cofres do Estado. Houve muitos acordos durante o período que eram contrários aos interesses do Estado, para distribuir as riquezas ao capital estrangeiro”, disse Luís Arce.
As faces do golpe e as semelhanças com o Brasil
Em 12 de novembro de 2019, o presidente boliviano Evo Morales renunciou ao cargo após as forças de direita, assim como no Brasil, promoverem uma “bagunça civil e institucional” com o objetivo de desmoralizar o governo.
Antes, porém, com uma eleição conturbada, protestos promovidos pelos opositores e o posicionamento declarado de quatro países de não reconhecer a vitória de Evo (Brasil, Estados Unidos, Colômbia e Argentina, até então governada pelo liberal Maurício Macri, e Colômbia), as forças militares e setores das polícias locais se organizaram para dar o golpe.
As instituições políticas já vinham sofrendo interferências de alas mais moralistas dos evangélicos, que já vinham ganhando destaque nas decisões tanto políticas quando jurídicas locais, ou seja, nas cidades.
Fernando Camacho, cristão fundamentalista, ídolo da direita, liderou os opositores e tomou o poder boliviano. Era o início de um breve período em que pautas morais tentariam nortear a opinião pública a fim de instituir um governo liberal que entregaria as riquezas bolivianas ao capital.
Não diferente do Brasil. Por aqui o que se viu foi a onda de notícias falsas e uma tentativa – que dura até hoje – de criminalizar os segmentos mais vulneráveis em nome da moral, do cidadão de bem, da família, em nome de Deus e outros termos comumente adotados pelos conservadores, que na verdade representam um ataque a negros, LGBTS´s, mulheres, os mais pobres e até, em questões regionais, contra o povo nortista e nordestino.
O discurso propagado pelos conservadores é praticamente idêntico aqui e lá. “Enquanto a família está em risco porque governos de esquerda estão abertos à degeneração, cidadãos de bem têm de conviver com a violência e a corrupção”.
No Brasil, essa foi a retórica que elegeu Bolsonaro. Um pano de fundo para destruir todas as conquistas sociais e econômicas ao longo de décadas de luta em nome do interesse das elites econômicas, nacionais e internacionais.
*Edição: Marize Muniz