Escrito por: Marco Weissheimer do Sul 21
A avaliação é do ex-presidente da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), Gerson Carrion, que denuncia as consequências para o estado do Rio Grande do Sul se projeto for adiante
Se o governo Eduardo Leite der continuidade ao projeto de privatização e de eliminação das empresas que compõem a matriz energética do Estado, estará incorrendo em uma irresponsabilidade fiscal que agravará a crise financeira do Estado e comprometerá o futuro das novas gerações. A afirmação é do ex-presidente da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), Gerson Carrion, que elaborou um documento para alertar a Assembleia Legislativa, o Executivo e à sociedade em geral das conseqüências de privatizar a CEEE e as demais empresas do setor energético do Estado (Companhia Riograndense de Mineração e Sulgás). Caso a empresa seja privatizada, diz Carrion em entrevista ao Sul21, “o Estado assumirá passivos expressivos superiores a 5,5 bilhões, em contrapartida ao recebimento de R$ 2 bilhões com a venda dos ativos elétricos das empresas públicas do grupo CEEE”.
Presidente da companhia no governo Tarso Genro, Gerson Carrion avalia que o projeto de privatização dessas empresas tem uma base puramente ideológica que está na contramão do que vem ocorrendo em países como Alemanha, França, Espanha e Portugal que estão reestatizando serviços públicos privatizados em décadas passadas. Ele também critica a posição do governador Eduardo Leite que pretende extinguir a exigência do plebiscito para a privatização dessas empresas por se tratar, supostamente, de um tema complexo demais para a população decidir:
“Esse argumento do ‘tema muito complexo vou colocar na conta de uma expressão descuidada do governador, talvez pela sua juventude. É exatamente o contrário do que ele diz. O povo gaúcho, nas questões mais complexas, sempre fez questão de se posicionar de forma protagonista e de vanguarda em âmbito estadual e nacional, como aconteceu na Revolução Farroupilha e na Campanha da Legalidade, só para citar dois casos”.
O ex-presidente da CEEE também fez uma versão em vídeo do documento intitulado “Razões para manter a CEEE pública” que pretende difundir nas redes sociais para provocar um debate que, na sua opinião, está sendo atropelado de forma açodada e irresponsável. (ver vídeo abaixo)
Sul21: Nesta terça-feira deve ser votado na Assembleia Legislativa o projeto do Executivo que retira a obrigatoriedade do plebiscito para a privatização da CEEE, da CRM e da Sulgás. O governo Eduardo Leite tem sólida maioria na Assembleia para aprovar esse projeto e levar adiante a privatização das empresas do setor energético do Estado. Que impacto isso pode trazer para o Rio Grande do Sul na sua avaliação?
Gerson Carrion: A forma açodada e atropelada como vem sendo feitos os encaminhamentos para a retirada do plebiscito representa um lamentável retrocesso do ponto de vista da manifestação da soberania popular. Ainda que já tenha sido marcada a plenária de terça-feira para votar a retirada do plebiscito, há tempo ainda para uma reflexão profunda por parte do Legislativo de modo a corrigir esse grave do Executivo. O governador Eduardo Leite assumiu com a marca do novo e da inovação, mas assume uma prática ultrapassada de privatização que, comprovadamente, já causou sérios prejuízos ao Estado do Rio Grande do Sul, como se viu com o que foi feito pelo governo de Antonio Britto. A CEEE carrega até hoje as consequências do esquartejamento de dois terços que ela sofreu então, onde ficou com um passivo de 88% nos seus balanços e uma redução de 54% na receita, o que provocou um desequilíbrio histórico.
Essa empresa pública resiste até hoje pela capacidade técnica dos seus trabalhadores, forjada na luta. Eles conseguiram renovar quatro contratos de concessão ao longo desse período, com indicadores de satisfação do cliente superior a 80%, com todas as dificuldades enfrentadas. Eu costumo dizer que é um caso para ganhar o prêmio Nobel de Economia. Como é que uma concessão fica com 88% do passivo e 54% de receita a menos e consegue sobreviver desde 1997 até hoje. O ativo humano da CEEE é um dos melhores do Brasil e é internacionalmente reconhecido. Nós conquistamos, no governo Tarso Genro, um financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento e um co-financiamento da agência francesa de desenvolvimento. Isso é motivo de orgulho para todos nós pois envolve uma certificação técnica e financeira em nível internacional. Deixamos como legado ao governo Sartori e também ao atual governo a possibilidade de inaugurar obras graças a esses financiamentos.
A sociedade gaúcha é a legítima dona desse patrimônio público energético representado pela CEEE, pela CRM e pela Sulgás e deve ser consultada se quer que ele seja vendido para o setor privado ou não. Esse é um debate do qual a população deve participar. Hoje, vemos notícias no mundo inteiro de governos que estão adotando o caminho contrário, reestatizando empresas e serviços públicos que tinham sido privatizados. Isso está ocorrendo na Alemanha, Espanha, França, Portugal e vários outros países. Temos nossos exemplos aqui. A Oi, um dos players da privatização da CRT, em seu processo de falência e de recuperação judicial, entregou uma conta de R$ 65 bilhões para o Brasil, valor equivalente à dívida do Estado do Rio Grande do Sul. Uma única empresa conseguiu fazer uma dívida que equivale à dívida de um estado como o Rio Grande do Sul. Esse modelo de privatizar está correto?
Sul21: O governador Eduardo Leite, ao defender o fim da exigência do plebiscito, afirmou que esse é um tema complexo demais para ser decidido pela população. O que o senhor acha dessa posição?
Gerson Carrion: Esse argumento do “tema muito complexo” vou colocar na conta de uma expressão descuidada do governador, talvez pela sua juventude. Quem sabe ele amadurecendo, no seu íntimo, seu pensamento sobre o povo gaúcho, possa mudar de opinião. Seria muito bom uma dose de humildade neste momento. É exatamente o contrário do que ele diz. O povo gaúcho, nas questões mais complexas, sempre fez questão de se posicionar de forma protagonista e de vanguarda em âmbito estadual e nacional, como aconteceu na Revolução Farroupilha e na Campanha da Legalidade, só para citar dois casos. É um equívoco do governador. Quem sabe ele possa rever essa posição e pedir desculpas ao povo gaúcho que é esclarecido, politizado e faz questão de opinar sobre temas que dizem respeito ao desenvolvimento e ao futuro do Estado. O caminho do plebiscito significa respeitar a soberania popular em toda a sua amplitude. Retirar esse direito é um retrocesso e uma agressão ao povo do Rio Grande do Sul. É um ato deformado e de exceção contra a democracia e a soberania popular.
Além de cassar os direitos democráticos do gaúchos e gaúchas de se manifestarem por consulta plebiscitária sobre o destino das empresas que estruturam a matriz energética do Estado, o governador Eduardo Leite completa o seu ato de exceção, externando que a essência da sua proposta é única e exclusivamente um desejo ideológico, ao suprimir o parágrafo §2° do Artigo 163 da Constituição Estadual que estabelece que os serviços públicos considerados essenciais não poderão ser objeto de monopólio privado, demonstrando uma sinalização arriscada para o futuro do Estado de ficar prisioneiro e dependente de uma única empresa privada monopolista, ditando e pautando com a sua lógica prioritária do lucro as demandas de políticas públicas para o desenvolvimento do Estado. É imaginável uma subserviência dessa dimensão ao domínio de um monopólio privado de um serviço público essencial de energia elétrica. É algo sem precedentes na história Farroupilha!
Sul21: Poderia detalhar um pouco mais como esse monopólio privado poderia se constituir no setor energético do Rio Grande do Sul? Qual a dimensão desse risco?
Gerson Carrion: Nenhum Estado, que mereça esse nome, abre mão, ou melhor entrega a sua matriz energética e todo o seu poder de concretização de políticas públicas de desenvolvimento energético para uma única empresa privada. Esse é um triste destino de uma população refém da boa vontade do “senhor dos lucros”. Por esse caminho, não seremos um Estado novo, ou um Estado do futuro, mas sim o Estado do atraso e do retrocesso. Essa proposta é de causar inveja aos mais radicais dos liberais, por que elimina a própria essência do modelo liberal alicerçado na livre concorrência e competição ao permitir, induzir e estimular no Estado o monopólio privado já em curso a passos largos com dois terços da distribuição de energia elétrica nas mãos da estatal chinesa State Grid, controladora do Grupo CPFL e, por conseguinte, da RGE SUL, que absorveu recentemente a AES SUL e planeja como já expressado publicamente comprar as empresas públicas do Grupo CEEE.
Isso será uma tragédia para o desenvolvimento regional. Ao invés de trilharmos o caminho da recuperação e retomada de um ciclo virtuoso da nossa economia, estaremos na contra mão aprofundando a crise com a privatização da CEEE, mergulhando o Estado num ciclo vicioso de agravamento da crise das finanças públicas, sistematizando assim um fenômeno econômico perdulário de migração de empresas, perda de mercado das indústrias regionais para empresas internacionais, queda acentuada e nociva de postos de trabalho e, o pior e a mais grave das perdas, que é a migração do valoroso ativo humano capacitado tecnicamente e reconhecido nacionalmente e internacionalmente. Que Estado vamos entregar para as futuras gerações de gaúchos e gaúchas?
Sul21: Em que sentido a privatização da CEEE e das demais empresas pública do setor energético poderia agravar a crise financeira do Rio Grande do Sul? O discurso que defende a necessidade das privatizações é exatamente o contrário.
Gerson Carrion: Se dermos continuidade ao processo de privatização e de eliminação da matriz energética do Estado, vamos incorrer em uma irresponsabilidade fiscal. O governo passado se vangloriou de ter aprovado uma lei de responsabilidade fiscal e vamos justamente colidir com esse conceito. A CEEE tem hoje um passivo da ordem de R$ 5,5 bilhões que vai ficar na conta do Estado. O modelo aplicado no governo Britto já mostrou isso, quando ficamos com 88% do passivo. Mas a situação é pior ainda. Naquela época ainda havia o CNPJ da CEEE que restou. Agora não terá nenhum CNPJ para descarregar 100% deste passivo, que irá direto para o Tesouro do Estado.
Em resumo, o Estado assumirá passivos expressivos superiores a 5,5 bilhões, em contrapartida ao recebimento de R$ 2 bilhões com a venda dos ativos elétricos das empresas públicas do grupo CEEE. Além de ser uma irresponsabilidade fiscal é totalmente irracional. O saldo final, para os cofres do Estado, da operação de vender por R$ 2 bilhões e assumir um passivo de R$ 5,5 bilhões será um resultado negativo de R$ 3,5 bilhões. Ou seja, uma eventual privatização da CEEE configura uma irresponsabilidade fiscal, danosa e perdulária ao Estado e à população.
Sul21: A suposição é que os possíveis compradores não vão querer levar esse passivo no pacote…
Gerson Carrion: Não vão querer. O modelo será o mesmo do governo Britto. Como cidadão, eu penso que essa conta não pode ficar, de forma irresponsável, para as próximas gerações pagarem. O Estado não pode entrar na aventura de um regime de recuperação fiscal totalmente inconstitucional porque tira a prerrogativa de quem diz que foi eleito e está falando em nome do povo. O governador vai entregar o poder que lhe foi outorgado com legitimidade pela população para quatro ou cinco burocratas de Brasília. Isso é uma subversão do estado democrático de direito. O governador Eduardo Leite quer entrar para a história como alguém que agrediu a democracia, retirando um direito da cidadania gaúcha? Ele ainda tem tempo de refletir, rever sua posição, retirar a proposta do fim do plebiscito e encaminhar a realização de um plebiscito, não sobre as privatizações, mas sim sobre o regime de recuperação fiscal. Se fizer isso, ele será aplaudido e terá o apoio de 100% dos eleitores gaúchos.
Sul21: Qual a base dessa estimativa de que o Estado receberia R$ 2,2 bilhões com a venda da CEEE?
Gerson Carrion: Numa estimativa conservadora, a concessão chega hoje a valores superiores a R$ 10 bilhões. Considerando a evolução proporcional aos valores relativos à privatização realizada em 1997, no governo Britto, o Estado venderá a CEEE por algo em torno de R$ 3,5 bilhões. Como o governo do Estado detém hoje 65% do capital das empresas do Grupo CEEE, ficará com apenas R$ 2,3 bilhões. Terá que quitar imediatamente um passivo previdenciário de R$ 2 bilhões e assumir todo o passivo judicial de R$ 403 milhões, bem como um passivo referente a tributos na ordem de R$ 1,8 bilhão. Isso para não falar da quitação antecipada dos financiamentos com o BID e com a Agência Francesa de Desenvolvimento, da ordem de R$ 1,3 bilhão. Além disso , o grupo que comprar a CEEE poderá usar recursos com subsídios, pelo BNDES e, logo ali na frente, terá o direito de receber a mega-indenização de R$ 9 bilhões referente à ação judicial chamada de CRC2.
Vale lembrar que, em janeiro de 2012, a CEEE recebeu a histórica soma de R$ 4 bilhões, devido a créditos com a Conta de Resultados a Compensar (CRC). Esses créditos foram provenientes de uma ação judicial interposta em 1993, pelo então presidente da empresa, Vieira da Cunha, e por mim, que ocupava o cargo de diretor financeiro na época, com o aval do então Secretário de Energia, Minas e Comunicações, Airton Dipp, e do governador Alceu Collares. Com o volume de recursos advindos da nova indenização, a CEEE poderia realizar um empréstimo de longo prazo a juros civilizados para o Estado, com valores na ordem de R$ 4 a R$ 5 bilhões, superior ao nocivo e inconstitucional regime de recuperação fiscal exigido pela União.
O Rio Grande do Sul abandonou a ideia de desenvolvimento. Devemos retomar uma visão de desenvolvimento e não ficar só neste viés monetarista. Caso contrário, não sairemos da crise. Se isso não acontecer e eles levarem essa agenda adiante vai ficar muito claro que se trata de uma questão unicamente ideológica, que foge da dimensão técnica, foge do bom senso e do estado democrático de direito. As atitudes que estamos vendo até aqui indicam que se trata de uma visão exclusivamente ideológica. Caso se confirme a privatização do Grupo CEEE e das demais empresas do nosso setor energético, estaremos diante de um crime de lesa-Estado e de lesa-pátria. Ao invés de auxiliar o governo a encontrar uma solução para a crise, essas privatizações só agravarão a crise, podendo levar à total falência do Estado.