"Ruralistas e Bolsonaro não vão desistir", alerta indigenista sobre MP 910
Tema não saiu da órbita dos debates no Congresso Nacional e deve voltar à tona por meio de projeto de lei
Publicado: 14 Maio, 2020 - 11h36 | Última modificação: 14 Maio, 2020 - 11h46
Escrito por: Cristiane Sampaio, do Brasil de Fato
O adiamento da votação da Medida Provisória (MP) nº 910 pelo plenário da Câmara dos Deputados é interpretado por organizações populares como uma "vitória parcial" do campo. Representantes desses movimentos afirmam que a medida, apelidada de “MP da Grilagem”, incentiva a prática ao facilitar a concessão de títulos de propriedade para invasores de terras públicas.
Diante disso, a medida conta com o antagonismo de diferentes setores, que vão desde procuradores da República que atuam na área até movimentos populares, organizações não governamentais (ONGs), especialistas e outros atores.
Para Alexandre Conceição, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), a não votação da proposta na terça-feira (12) após intenso lobby da bancada ruralista é resultado do esforço dos segmentos sociais e políticos. A articulação teve destaque na luta institucional, junto ao Congresso Nacional, e também na internet. A hastag “#MP910Não”, por exemplo, esteve em alta nas redes sociais nos últimos dias, dentro do contexto de mobilização do campo.
“O conjunto da sociedade brasileira se mobilizou contra o latifúndio e a devastação da Amazônia. Eu acho que isso é importante porque houve mobilização de intelectuais, artistas, movimentos populares e da bancada que tem compromisso com a vida e com o meio ambiente. Nesse sentido, se criou uma grande mobilização nacional.”
Para o dirigente, a conjuntura em torno da MP teria exposto ainda o que Conceição chama de “falta de pudores” da bancada ruralista para colocar em análise propostas que afetam o meio ambiente, mesmo em meio ao avanço do coronavírus. A doença já matou mais de 12 mil pessoas no país e vem deixando um lastro de crise humanitária, econômica e social que chacoalha o jogo político nacional. A pandemia modificou, inclusive, a rotina dos trabalhos no Legislativo.
“Havia uma negociação entre os líderes dos partidos de que, neste período de sessões remotas, só seriam votadas matérias de consenso e que fossem pra resolver problemas da saúde e do combate ao coronavírus, mas, infelizmente, os latifundiários não cumprem o acordo. Isso é um alerta pras nossas próximas mobilizações”, pontua Conceição, acrescentando que o segmento pretende manter uma vigilância sobre o tema nos próximos dias e semanas.
A tendência é a mesma entre os demais movimentos e entidades que atuam contra a MP. “É difícil, porque os ruralistas e o governo Bolsonaro não vão desistir dessa intervenção no campo em favor dos interesses deles, mas nós também não vamos. Ganhamos esta primeira batalha, mas a guerra não está ganha e a nossa mobilização vai continuar”, afirma o secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira.
Debate
Para a advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), a matéria é permeada de delicadezas e por isso carece de um debate aprofundado.
Ela destaca a falta de acesso da sociedade civil aos conteúdos definidos pelas lideranças políticas para a MP. “Pra você ter ideia, ontem, às 14 horas, estava circulando o último parecer do deputado Zé Silva [relator da MP] e ninguém tinha certeza de como era essa versão que seria votada”, queixa-se, destacando que o sistema atual de votações remotas agrava o problema porque “inviabiliza a discussão e limita as regras de transparência do processo legislativo”.
A organização pede que a MP seja alvo de uma discussão que acompanhe a complexidade do tema. Juliana Batista defende que as medidas dessa natureza busquem uma governança fundiária e ambiental transparente e orientada para as questões da sociobiodiversidade.
“A preocupação da discussão é essa, e não é uma discussão simples. Ela realmente precisa de algum tempo, de um debate aprofundado. A gente não tem essa resposta pronta e não se trata de ser contra ou a favor, mas de buscar meios de discussão que viabilizem uma proposta de interesse público de todo o povo brasileiro, e não que venha a atender a pequenos setores interessados em grilar áreas, em continuar com o desmate de florestas.”
Projeto de lei
Os rumos da MP estão no foco das diferentes bancadas da Câmara dos Deputados, cujas lideranças iam se reunir nesta quarta-feira (13) para tentar produzir um consenso sobre a lista de votações das próximas duas semanas. A ideia inicial, ventilada pelo campo majoritário da Casa durante a sessão de terça, seria converter a proposta em um projeto de lei (PL), o que levaria a MP à invalidação e estenderia o debate sobre o tema por meio de outro tipo de tramitação.
Assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro do ano passado, a MP 910 caduca no próximo dia 19, por isso, para ser transformada em lei, precisaria ser votada e aprovada pelos plenários da Câmara e do Senado até lá. Diante da escassez de tempo e das dificuldades de obtenção de consenso, a bancada ruralista e seus aliados tentam costurar uma saída por meio do PL, cujo conteúdo repetiria o teor do parecer do deputado Zé Silva (Solidariedade-MG) sobre o tema.
O relatório do parlamentar retirou ou modificou alguns dos trechos considerados mais controversos do texto original de Bolsonaro, mas continua sendo alvo de críticas. Em uma nota técnica publicada nesta quarta-feira (13), por exemplo, a ONG Terra de Direitos elencou sete razões para não aprovar a MP da Grilagem.
A organização destaca, por exemplo, que, com a eventual aprovação do conteúdo da MP, o país tende a colocar nas mãos da iniciativa privada um montante de até 65 milhões de hectares de terras públicas, abrindo mão de um patrimônio de grandes proporções. A entidade aponta ainda que a medida prejudica a titulação de territórios quilombolas e a homologação de terras indígenas, amplia o desmatamento, facilita fraudes e crimes ambientais, afeta a economia de pequenos produtores e é inconstitucional.
Sobre este último ponto, a ONG afirma que a MP fere o Artigo 188 da Constituição Federal, que prevê prioridade para a reforma agrária na definição dos rumos das terras públicas. O assessor jurídico Pedro Martins, da Terra de Direitos, destaca que, nesse sentido, o conteúdo da proposta faz parte de uma articulação histórica que tenta desfavorecer os interesses de comunidades diante dos interesses pautados por grupos de maior poder econômico.
“Ela faz parte de um caminho que vem sendo perseguido pra que a reforma agrária caia, a demarcação de terras indígenas e quilombolas caia e para que prevaleça, no ordenamento territorial, a inclusão dessas terras públicas no mercado de terras. Então, de qualquer maneira, em qualquer das versões em que foi apresentada, a MP representa a construção histórica de uma mudança legislativa pra facilitar o destacamento do patrimônio da União para as mãos de particulares”, afirma, ressaltando que a entidade defende que a MP não seja votada.