Se é crime inafiançável, por que é tão difícil punir o racismo com rigor no Brasil?
Doutor em Direito Constitucional por Harvard, Adilson Moreira explica as diferenças entre os crimes de racismo e injúria racial. Ele diz que é preciso promover mudança na legislação brasileira sobre o racismo
Publicado: 05 Agosto, 2021 - 08h30 | Última modificação: 05 Agosto, 2021 - 17h43
Escrito por: Walber Pinto
A tecnologia se tornou uma aliada importante para denunciar episódios de racismos nos últimos tempos, mas, em muitos casos, mesmo com imagens de vídeos e áudios, quando chegam nas delegacias são registrados como calúnia, crime cuja punição é mais branda, e não como crime de racismo ou injúria racial.
O recente o caso de uma mulher de 64 anos, presa pela Polícia Militar em Taguatinga, no Distrito Federal por xingamentos racistas contra um idoso negro, José Barbosa dos Santos de 70 anos, e seu filho, o técnico em telecomunicação Alcides Jesus Santos, de 39 anos, jogou luz sobre a atual legislação brasileira quando se trata de crimes como esse.
Apesar do vídeo mostrando a cena e do depoimento de um PM que assistiu a idosa xingando 'negrada do inferno', o caso foi registrado na delegacia como injúria racial. A idosa, que se recusou a pedir desculpas, pagou uma fiança de R$ 1 mil e foi liberada.
Afinal, se racismo é um crime inafiançável, e a injúria racial é derivada do racismo e, portanto, deveria ser tipificada da mesma forma, por que ainda é tão difícil punir o racismo com rigor no Brasil, mesmo com provas como no caso da idosa do Distrito Federal e tantos outros que ocorrem no Brasil?
Adilson Moreira, doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, afirma que é preciso promover dois tipos de transformação na legislação brasileira atual.
“É preciso mudar a lei em dois sentidos: classificar o crime de injúria racial como crime de racismo e aumentar a pena de todas as manifestações de crime de racismo porque, atualmente, mesmo quando as pessoas são condenadas, elas são condenadas a três semanas ou pagam a pena com uma cesta básica e coisas dessa natureza”, afirma Adilson, que é também autor dos livros “O que é racismo recreativo?” e “Pensando como um negro”.
De acordo com o professor, é preciso explicar que a injúria racial é quando se ofende a honra subjetiva de um indivíduo, utilizando a raça, o xingamento racista para atingir a honra de alguém.
Já o crime de racismo, acrescenta, é um tipo de crime que ofende ou é praticado contra uma coletividade de indivíduos.
Na legislação brasileira, o crime de racismo é regulado pela Lei nº 7716, de 1984, que tornou o racismo crime inafiançável. A injúria, crime contra a honra, é um tipo de crime regulado pelo Código Penal.
Adilson nos ajuda a entender esses dois conceitos e a falha na legislação brasileira quando se trata da questão racial. Ele nos cita dois exemplos.
“Um homem negro vai se candidatar a uma vaga de emprego e a pessoa que vai entrevistar diz: "Não vou te contratar porque você é negro ou negra”.
Aqui, segundo ele, temos um crime de racismo. Mas, se nós estamos na rua e alguém chama uma pessoa negra de macaco, isso será um crime de injúria racial, de acordo com a legislação brasileira.
Para a secretária nacional de Combate ao Racismo da CUT, Anatalina Lourenço, é urgente tipificar a lei de injúria racial como crime inafiançável também. É até pedagógico, diz ela, lembrando o grande número de casos desse tipo de crime no Brasil.
“Em alguma medida a legislação precisa ter caráter pedagógico, tem que ensinar a população que racismo é crime e tem punição severa. Não basta pagar fiança e ser liberado para praticar novamente. Se não vai pelo bem, vai pela lei”, diz a secretária.
A certeza da impunidade
O caso da idosa no Distrito Federal não é isolado. Em julho deste ano, o juiz Caramuru Afonso Francisco decidiu que a acusação do Ministério Público do Estado de São Paulo contra o youtuber Júlio Cocielo, que se tornou réu, em 2020, acusado de racismo após comentários racistas nas redes sociais, é improcedente.
Segundo o juiz, que inocentou Cocielo, "ele não agiu com dolo, culpa grave nem se apresenta como exemplo negativo, não é racista nem jamais defendeu o supremacismo racial."
Outro caso chocou passageiros de ônibus em Praia Grande, no litoral paulista, em abril deste ano. Uma mulher foi presa em flagrante após fazer ofensas racistas contra um passageiro dentro do transporte público. O caso também foi registrado como injúria racial e ela foi solta após pagar fiança.
“É curioso que quando nós lemos as defesas das pessoas acusadas tanto do crime de racismo como a injúria racial, elas sempre mencionam “não posso ser racista porque a minha empregada é negra, a babá dos meus filhos é negra, porque eu tenho um amigo negro, porque tive uma professora negra", critica o professor.
“Daí, o cara pega e leva o zelador do prédio para dizer ao juiz que essa pessoa branca diz “bom dia ou boa noite” para ele e, que, portanto, ela não pode ser racista”, completa.
Racismo institucional
O enfrentamento do racismo institucional nos órgãos da Justiça e a garantia de direitos para a população negra no Brasil passam por algumas mudanças na formação dos operadores do direito, entre eles, dos magistrados.
O professor e doutor Adilson concorda que o que precisa mudar é a educação e que a ausência de promotores e juízes negros travam a mobilização no combate ao racismo e as desigualdades.
Um dos motivos pelos quais a lei do racismo é ineficaz é que o nosso sistema judiciário é branco, 82% das pessoas que compõem o sistema judiciário brasileiro são pessoas brancas, heterossexuais e de classe alta
“Essas pessoas nunca sofreram racismo na vida e não têm nenhum contato com pessoas negras, nunca sofreram discriminação, e em função disso, elas acham que nós temos uma cultura pública de cordialidade”, reitera o professor.
Segundo ele, a censura à cultura, relacionada às questões raciais no Brasil, faz com que as pessoas achem que racismo existe nos EUA, aqui não.
Isso também pode ser classificado com racismo institucional, na verdade é algo muito mais abrangente porque é resultado de uma cultura pública que estrategicamente impede a mobilização política sobre a questão racial
O professor aponta ainda que há um tratamento desvantajoso na justiça brasileira sempre que se trata de pessoas negras. “Nós chamamos de discriminação direta, que é um tratamento desvantajoso, arbitrário, imposto de uma pessoa a outra, é o que se chama discriminação institucional praticado por um tipo de pessoa que representa uma instituição pública ou privada”, afirma.
Rosana Sousa, secretária-adjunta de Combate ao Racismo da CUT, concorda com a Adilson. “É mais uma vez o racismo estrutural operando nas instituições, inclusive nas delegacias de polícia e no Judiciário, decidindo como se deve registrar e jugar um crime contra a população negra”.
Comissão de juristas negros revisa legislação sobre racismo
Uma comissão da Câmara dos Deputados, composta por juristas, ativistas promotores e promotoras negros e negras, discute várias propostas para aperfeiçoar a legislação brasileira sobre racismo.
O grupo, formado no ano passado a convite do então presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM), pretende dotar o sistema jurídico de instrumentos para combater problemas como o encarceramento em massa da população negra, a violência das abordagens policiais e o cruzamento do racismo com outros tipos de discriminação, como machismo e LGBTfobia.
Adilson Moreira e o professor de Direito Silvio Luiz de Almeida estão entre os nomes que participam do grupo de juristas que estuda mudanças na legislação brasileira sobre racismo.
“A violência racial no Brasil continua a mesma. O processo de genocídio da população negra continua o mesmo, agora, para que nós possamos resolver esse problema, precisamos reconhecer a existência dele (racismo) e a natureza racista dessas práticas”, diz o professor Adilson Moreira.
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*Edição: Marize Muniz