Escrito por: Andre Accarini

Sem direitos nem salário fixo, com 4 filhos, segurança morre em bico de R$ 180

Jorge Antunes, foi morto durante um assalto ao shopping em que fazia um bico para conseguir ganhar um pouco a mais. Sem direitos nem assistência, família cobra indenização

Reprodução/Redes Sociais

O assassinato do segurança Jorge Luiz Antunes, de 49 anos, no Rio de Janeiro, além de expor a violência crescente no Brasil nos últimos anos, traz à luz o drama da desproteção social e dos direitos trabalhistas, em especial depois do golpe de 2016.

“Perdeu a vida por R$ 180. A diária do meu tio era R$ 180 e uma bolsa nesse shopping vale R$ 25 mil”, disse Kênia Cristina Antunes Honório, sobrinha de Jorge Luiz ao jornal O Globo.

De acordo com a jovem, o tio trabalhava como segurança informal no shopping de luxo, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, e estava cobrindo o plantão de um amigo quando foi atingido pelos disparos que ocorreram após os bandidos tentarem roubar uma loja de joias. Ele deixou de ir ano aniversário de um dos quatro netos para fazer o bico.

A tragédia de Jorge Luiz Antunes leva a uma reflexão sobre os efeitos da reforma Trabalhista aprovada no governo do ilegítimo de Michel Temer. A reforma acabou com 100 itens da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e legalizou o bico.

Com a reforma de Temer aprovada pelo Congresso Nacional, o ‘bico’, um trabalho precário, com poucas regras de conduta e segurança, direitos que que foram suprimidos pela nova lei trabalhista, entrou na legalidade, e alguns empresários passaram a priorizar esse novo modelo de contratação, como mostram dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o crescente número de trabalhadores informais, mais baratos para as empresas, sem direitos, sem proteção.

Leia mais: Herança da reforma Trabalhista: 32,5 milhões de brasileiros têm emprego precário

Os acidentes e tragédias envolvendo trabalhadores e trabalhadoras são proporcionais ao aumento da quantidade de informais nos locais de trabalho, avalia o jurista e professor de Direito na Universidade de São Paulo Guilherme Feliciano.

“Os números são diretamente proporcionais. Quanto maior a taxa de trabalho informal, maior é o número de ocorrências dessa natureza”, afirma o jurista que presidiu a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), de 2017 a 2019.

Para aprovar a reforma, o governo Temer vendeu a sociedade a ilusão de que as mudanças na legislação trabalhistas gerariam seis milhões de novos postos de trabalho formais. O que gerou foi tragédia e desemprego.

“Tudo foi discurso. A realidade mostrou algo diferente. Se examinarmos a evolução dos gráficos de novembro de 2017, quando a reforma entrou em vigor, até os dias de hoje, percebemos que a informalidade cresceu. Se houve algum crescimento na geração de emprego foi de postos de trabalho sem qualidade”, diz o professor de Direito da USP.

“A promessa feita quando foi encaminhado o Projeto de Lei que deu origem à reforma Trabalhista era de seis milhões de empregos, mas não foram criados nem 500 mil empregos formais”, acrescenta.

O que houve foi uma migração de trabalhadores que estavam em postos mais garantidos para os postos informais, portanto, sem direitos e sem proteção social- Guilherme Feliciano


E era em um desses postos de trabalho que Jorge tentava ganhar a vida no domingo (26), quando foi morto e sua sobrinha reagiu comparando o valor que ele receberia pelo dia de trabalho ao custo de um bolsa no shopping. A jovem encerrou a fala com um questionamento que deveria estar na cabeça de todos que aprovaram essa lei e dos que se beneficiam dela para aumentar os lucros: “Como fica a família agora?”.

Jogados à própria sorte

A situação desses trabalhadores se agrava ainda mais já que muitos dos informais não são sequer treinados para desempenhar suas funções, caso do segurança morto no Rio.

“Ele contava que não tinha recebido nenhum treinamento. Mesmo assim, ainda o colocavam na linha de frente, na entrada do shopping, para fazer abordagens”, disse a sobrinha da vítima, no depoimento à imprensa.

E, como descreve Kênia, é a família que fica em difícil situação. “O shopping disse que prestaria apoio à família, mas até agora, ninguém apareceu”, declarou.

De acordo com o ex-presidente da Anamatra, sem o vínculo empregatício, uma das partes mais complexas e duras da situação, resta à família recorrer à Justiça do Trabalho, a última porta para a solução do drama de quem perdeu o provedor, morto no próprio local de trabalho.

“A Justiça ao reconhecer as relações de trabalho e a doença [quando é o caso] vai determinar o vínculo empregatício e tudo o que se tem que pagar. Portanto, o curso natural deste caso [do segurança assassinado], para a Justiça, é verificar se havia, de fato, a relação de trabalho e se era eventual”, explica Feliciano.

De acordo com o professor, independentemente do vínculo empregatício, em tese, há a responsabilidade do empregador. “O que se aplica é uma tese definida em 2020 pelo STF [Supremo Tribunal Federal] e que tem repercussão geral que discutia justamente a responsabilidade do empregador em acidentes de trabalho”, explica.

O entendimento do STF foi de que, em casos de acidentes de trabalho, a responsabilidade é objetiva e independe de se avaliar a culpa do empregador. Desta forma a responsabilidade é atribuída quando se trata de situações, por exemplo, em que a atividade, por si só, já significa algum risco o que é caso do trabalho em segurança patrimonial.

“Temos um trabalho que se ativa em vigilância patrimonial em um estabelecimento que naturalmente está sujeito a esse tipo de ocorrência violenta. E é uma atividade laboral que já se sabe que oferece risco elevado. A atividade em si já se caracteriza pelo risco”, diz o jurista sobre o caso de Jorge Antunes.

No entanto, ele ressalta que em uma eventual ação, provavelmente surgirá a discussão se ele era ou não empregado. “E se não for, vão querer afastar essa tese [da responsabilidade objetiva], que ao meu ver, deve ser aplicada”, afirma Guilherme Feliciano.

Massa desprotegida

Quando o trabalhador é informal e sofre algum acidente ou acaba acontecendo uma tragédia como a de Jorge, é comum não ser emitido a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) e os casos não são registrados no Ministério do Trabalho. Com isso, a empresa se livra de aumento dos impostos e responsabilização na justiça. 

“Temos, historicamente, no Brasil um problema crônico com subnotificação de acidentes de trabalho e de doenças ocupacionais. Isso acontece por causa da própria empresa que, muitas vezes, resiste em emitir a CAT por conta do que representa em termos de responsabilidade na Justiça do Trabalho”, explica Guilherme Feliciano.

A emissão da CAT pode implicar em um aumento nas alíquotas de contribuição para o Seguro de Acidente de Trabalho (SAT).  Quanto maior o número de acidentes, maior a contribuição, portanto há resistência das empresas para emitir as CAT´s.

De acordo com o último Anuário Estatístico de Acidentes da Previdência, divulgado em 2020, o Brasil havia registrado, em dez anos, mais de 25 mil mortes por acidentes de trabalho. No entanto, esses números se referem a trabalhadores formais, com registro em carteira e direitos.

“Ter uma estatística real, incluindo os informais se torna um desafio. Por causa do alto índice de informais e, por isso, não termos a dimensão exata da realidade, esses números aferidos podem ser multiplicados por dois”, afirma o secretário de Relações do Trabalho da CUT, Ari Aloraldo do Nascimento.

“São os trabalhadores obrigados a se submeter à informalidade para conseguir sobreviver. É o que a CUT sempre alertou. A reforma Trabalhista de 2017, do ilegítimo Temer, legalizou o bico e colocou em risco não só a renda, mas também a vida dos trabalhadores”, diz Ari.

Desigualdade

Jorge Luiz Antunes, o segurança, era casado, tinha quatro filhos e lutava para sustentar a si e a família. A esposa de Jorge está desempregada.

A loja para a qual prestou serviços em seu último dia de vida vende relógios de luxo da marca Rolex. O mais barato dos artigos custa R$ 68 mil.

Muitos dos ‘colaboradores’ – termo utilizado pelo shopping para denominar seus trabalhadores, não têm nenhum direito trabalhista.