Escrito por: Luciana Waclawovsky

Setor elétrico é protegido por lei e não pode ser vendido

Aumento real do custo da energia elétrica é apenas um dos graves problemas que os brasileiros enfrentarão com privatização

Marcello casal Jr./Agência Brasil

No apagar das luzes da era FHC o sistema energético brasileiro estava pronto para ser vendido. No início dos anos 2000 a proposta da gestão neoliberal de Fernando Henrique Cardoso era promover a chamada desverticalização do sistema, para separar as atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização com o objetivo único e exclusivo de privatizar o setor. A medida serviria principalmente ao mercado, prestes a abocanhar as fatias mais gordas e economicamente atraentes nas áreas de geração e comercialização de energia elétrica.

Em 2004, porém, no primeiro governo Lula, as estatais brasileiras foram salvas das garras do mercado por meio da Lei 10.848/2004, que retirou as empresas geradoras e transmissoras de energia do pacotão de entregas ao capital estrangeiro. A avaliação dos especialistas do setor energético, portanto, é de que para recolocar o patrimônio energético brasileiro novamente à venda, é preciso haver nova legislação, que passaria, obrigatoriamente, pelo legislativo brasileiro. Para a secretária nacional de energia da Confederação Nacional dos Urbanitários, Fabíola Latino Antezana, é por isso que a gestão do presidente sem voto Michel Temer (PMDB) propõe o que chamam de “diluição de ações”, que a princípio não precisa passar pelo Congresso Nacional.

“Furnas, Chesf, Eletronorte, Eletrosul e CGTEE, que compõem o sistema Eletrobrás, são protegidas por lei e não podem ser privatizadas pelo processo normal, digamos assim”, esclarece a dirigente, que também é engenheira florestal e dirigente do Sindicato dos Urbanitários – STIU/DF. Segundo ela, o que existe hoje é uma tentativa de burla na legislação, tirando o Estado do controle das empresas estatais do setor elétrico. “Ou seja, eles vão aumentar o número de ações, porque nossas empresas são todas de economia mista, que seriam ofertadas ao mercado. E assim, as empresas que hoje têm controle estatal, automaticamente terão sua gestão feita pelo setor privado”.

Zero transparência e velocidade recorde no processo de privatização

Durante audiência pública conjunta na Câmara dos Deputados, o atual ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Silva (PSB/PE), foi duramente criticado, inclusive por parlamentares governistas, porque o Executivo não deu tempo para a sociedade se manifestar sobre a privatização da energia brasileira. Menos ainda para discutir, por exemplo, a venda por picos de consumo e a possibilidade de pagar energia diferenciada por cotas de uso.

“A real possibilidade de um apagão existe quando sabemos que o setor privado não vai investir em melhorias nem em contrapartidas sociais como o [programa] Luz para Todos, já que o objetivo deles é exclusivamente o lucro”, analisa Fabiola.

Ela diz ainda que todas as questões relativas à segurança energética e consumo foram colocadas a público no mês de julho, por meio de Consulta Pública, quando a maioria das pessoas está em período de férias ou dispersa, inclusive por causa do recesso do Congresso Nacional. E, a pedido das empresas comercializadoras de energia, expandiu o prazo por 13 dias, ficando no ar até meados de agosto.

Foi quando as entidades sindicais entraram com pedido de requerimento, apoiados por parlamentares, solicitando a expansão da Consulta para, no mínimo, mais 60 dias. A dirigente denunciou, no entanto, que os documentos sequer foram protocolados no Ministério de Minas e Energia (MME), tampouco respondidos. “Isso, inclusive, gerou uma ação judicial no STF contra o ministério – por não seguir à risca o processo da Consulta Pública”, apontou.

Para Fabiola, o governo ilegítimo tornou público o estudo, mas não estabeleceu tempo suficiente para manifestações. “Até ler o processo, ir atrás das informações e fazer o contraponto, precisa de tempo e 30 dias é absurdo. Estamos falando do modelo do setor elétrico nacional e o que aconteceu foi mais uma medida pro forma, do tipo‘fomos democráticos e abrimos a oportunidade da sociedade se manifestar’”, destacou.

A surpresa, segundo Fabiola, ficou por conta do anúncio da privatização total da Eletrobrás no “pacote de maldades” de desestatização. Para ela, um processo atropelou o outro.“Primeiro anunciam a reestruturação do setor em novembro de 2016. Depois, em meados de julho publicam uma Consulta Pública informando que os ativos (empreendimentos cotizados, como as usinas hidrelétricas) serão privatizados e, em menos de 15 dias, no final de agosto, divulgam a privatização total da Eletrobrás”, lembrou a dirigente, que questiona a pressa em desestatizar um setor que é protegido por lei: “quem está ganhando o quê com isso?”.

Exemplos internacionais: porque não privatizar

Vários países europeus entenderam que os serviços de energia elétrica e saneamento são estratégicos para a segurança e soberania nacionais e estão reestatizando esses setores. França e Alemanha têm avançado nesse processo, por exemplo.

Já Portugal teve a privatização concluída no final do ano de 2010 e início de 2011. Enquanto o setor energético esteve estatal, o governo subsidiava o preço do gás e do petróleo, amenizando os impactos no bolso da população: o Estado conseguia segurar os preços da energia por conta do modelo (o país tem uma matriz energética térmica). Porém, a partir do momento em que a energia foi vendida, os valores explodiram e em cinco anos houve um aumento de 55,9%. Para uma economia que já vinha passando por crise interna e externa, o impacto econômico é bastante considerável.

A vizinha Argentina – que hoje vivencia um modelo de gestão neoliberal pelas mãos do presidente e empresário Mauricio Macri – anunciou recentemente um aumento de 500% na luz que chega às casas de Buenos Aires e províncias próximas. Ao retirar os subsídios do Estado – política adotada no período dos Kirchner (2003 a 2007 com Néstor e 2007 a 2015 com Cristina)– a empresa que privatizou a energia do país alegou que os valores estavam congelados há muitos anos e promoveu a alta da tarifa com a justificativa de financiar investimentos. Mesmo a população entrando na justiça, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina, correspondente ao Supremo Tribunal Federal no Brasil, determinou que cabe, sim, à empresa responsável promover esse aumento.

Vale lembrar que o modelo de privatização adotado por Macri é muito parecido com o do Brasil de FHC, na década de 1990: iniciou fatiando o sistema para vender por setores (geração, transmissão e distribuição).

É importante destacar, ainda, que se o setor energético for privatizado, os tratados internacionais que o Brasil assumiu – como o Protocolo de Kyoto e a redução da emissão de carbono, que engloba desmatamento e também trata de matriz energética –vão literalmente ser rasgados e jogados no lixo da história.

Tudo isso porque o país possui uma fantástica combinação de fatores naturais para produzir energia. Segundo dados de 2016 da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, 64% da energia brasileira é hidráulica, 12,9% vem do gás natural, 8% da biomassa, 4,8% são derivados do petróleo, 4,5% de carvão e derivados, 3,5% eólica, 2,4% nuclear e 0,01% de energia solar fotovoltaica.