Setores que apoiam o golpe querem naturalizar a perda de direitos
'Não temos a quem recorrer em caso de ilegalidade. Vamos recorrer ao Supremo? Ele opera às vezes sim e outras não', diz o professor da UNB Luiz Felipe Miguel
Publicado: 20 Abril, 2018 - 11h24
Escrito por: Gabriel Valery, da RBA
A perda de direitos corre o risco de ser "naturalizada" com o discurso das classes dominantes e dos setores que apoiam o Estado de exceção no país se a crise política e institucional não for revertida pelo fortalecimento das bases democráticas. Essa é uma consequência direta da fragilidade das instituições que marca o país hoje, avaliaram nesta quarta-feira (18) o professor de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UnB) Luiz Felipe Miguel e a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Esther Solano.
Ambos participaram de debate intitulado "Estratégias de resistência política em tempos difíceis". No evento, o sociólogo lançou o livro Dominação e Resistência – Desafios para uma política emancipatória (2018), pela editora Boitempo. O debate ainda contou com a presença da repórter da revista CartaCapital Ana Luiza Basilio, que mediou o encontro.
O sociólogo começou sua fala, para um público recorde da livraria Tapera Taperá, na região central de São Paulo, que promove debates periodicamente. “Estamos realmente em tempos difíceis, como diz o título do livro. Parece que não se passa um dia sem que soframos um novo revés e isso parece ter surgido do nada, isso me espanta. Há alguns poucos anos estávamos crentes que vivíamos em um processo de consolidação da democracia, que tínhamos um espaço conquistado e que a Constituição nos garantia um chão na luta por direitos”, diz.
Luiz Felipe descreve o momento como o de desmoronamento das garantias constitucionais, que permitiam o diálogo entre diferentes forças dentro do regime democrático. “A Constituição de 1988, que foi chamada de Constituição Cidadã pelo Ulysses Guimarães, foi um texto ambíguo fruto de muitos compromissos. Mas foi o momento em que diferentes grupos sociais, diferentes movimentos, se fizeram ouvir. Não é que a classe trabalhadora, as mulheres, os indígenas impuseram suas pautas, mas foram ouvidos, bem como latifundiários e igrejas”, afirma.
Então, a sociedade brasileira viveu um período de “ilusão” da consolidação do modelo democrático, como explica o sociólogo. “Houve uma crença excessiva de que a institucionalidade funcionaria de acordo com os próprios termos. Quando as coisas se agravam, percebemos que essas garantias caem muito rapidamente, porque temos o alinhamento dos interesses de diferentes poderes em favor de um projeto de retrocesso. O golpe de 2016 afirma a exclusão das vozes, dos grupos sociais e do espaço da política legítima. Esse é o nosso retrocesso.”
Fragilidade e domínio
O maior problema é que, diante de um contexto de dominação que ultrapassa as instituições e atingem a esfera do cotidiano dos cidadãos em suas pequenas relações diárias de poder, não existe nada que assegure o bom funcionamento do modelo de diálogo democrático, como posto na Constituição. “Não temos a quem recorrer em caso de ilegalidade. Vamos recorrer ao Supremo? Ele opera às vezes sim e outras não. Estamos em um momento de legalidade facultativa, a lei pode se tornar antilei. Ao mesmo tempo, temos um momento social em que determinadas posições são cada vez mais acuadas”, disse.
“Estamos vivendo uma situação que guarda muita semelhança com o Macartismo nos Estados Unidos pós segunda guerra mundial. Não é que a esquerda esteja expressamente criminalizada, mas temos um ambiente social, em que a mídia cumpre um papel muito importante, que faz com que as posições de esquerda sejam interditadas, recebam algum tipo de violência. Não existe a possibilidade do debate, pois existe um impedimento à fala. As instituições que deveriam garantir a liberdade de pensamento são coniventes com o emparedamento. Isso quando não o fomentam”, afirma.
A semelhança com o Macarthismo é ampla, como afirma o pensador. Naquele momento, em que o mundo vivia uma polarização entre Estados Unidos e União Soviética, a partir dos anos 1950, foi implementado um regime ideológico de emparedamento da esquerda no Ocidente como sendo um pensamento subversivo e traidor. “Por exemplo, o Escola sem Partido”, continua Luiz Felipe, “ele fomenta uma forma de proibição de temáticas de debates dentro de espaços de educação. O poder público, que deveria inibir isso, fecha os olhos ou estimula.”
Perversão democrática
Para Esther, esses instrumentos de repressão a uma vertente de pensamento libertador serve aos dominadores como parte de um paradoxo da democracia liberal. “A democracia atua como uma força centrípeta. Ela coloca como possível as formas políticas aceitáveis, que são as moderadas, e coloca como inaceitáveis as radicais, que não são convenientes. Isso significa que na estrutura democrática existem mecanismos de exclusão. Isso é algo fluído, o que seriam essas expressões políticas não aceitas? Isso depende da conjuntura e da forma como se coloca a dominação. Hoje, no Brasil, até a Constituição é radical demais com essa ditadura de togas. Vivemos uma perversão democrática.”
Esther disse que está trabalhando em uma pesquisa sobre a natureza das narrativas dos eleitores do pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL-RJ). “Haja estômago. Veja que coisa interessante. Entrevistei algumas pessoas das periferias e as narrativas eram muito interessantes. Eles falam assim: ‘Professora, eu não sou mais pobre, eu sou classe média. Como sou classe média, não voto mais no PT, o PT é um voto de pobre. Meus pais votaram no PT, são nordestinos, eu não. Tenho casa, carro. Falta anos para pagar, mas tenho’”, relata.
Para a pesquisadora, isso vem de uma estrutura de poder que se consolida no imaginário do dominado. “É fascinante como o poder ganha as mentes. Vimos isso muito no último período pós golpe. Vimos pessoas indo para as ruas para lutar por algo que elas pensavam que melhoraria a vida deles. O sujeito de classe média se vê como elite e se comporta como tal. Essa lógica da dominação subjetiva é brutal. O problema é que o subalterno não se reconhece como tal. Ai está o problema. Também entrevistei dois homossexuais que diziam que votavam no Bolsonaro, mulheres que votam no Bolsonaro. Eles dizem que a imprensa inventa que ele não gosta deles. Isso é interessante, não é que você pertence a uma classe subalterna. O complicado é se enquadrar como subalterno, ai está a dificuldade. O poder e a dominação nos prende.”
Luiz Felipe vê o fenômeno como uma estrutura de legitimação do domínio. “Temos, dentro da sociedade, uma ativação muito forte de pânico e preconceito para proibir posições. Veja, o bolsonarismo vê que as hierarquias devem ser cumpridas de qualquer maneira e qualquer forma de tentar rever isso deve ser esmagado. Isso é muito próximo do fascismo. Isso avança em uma forma de intimidação. E entre nós e o fascismo só tem nós mesmos”, disse.
“A lógica é que agora eu passei para a classe média então sou de direita. Isso tem a ver com a ressignificação dos valores também religiosos através da teologia da prosperidade, que coloca uma forma de individualismo extremo. No discurso meritocrático temos uma série de instrumentos que limitam a discussão. Está cada vez mais difícil conversar com as pessoas. Por isso nos congregamos. De repente, o que estava dado tem que ser sustentado. Agora temos que sustentar porque a igualdade é melhor do que desigualdade. E não conseguimos porque não se ouve. É como se conversasse com uma parede”, completou.