Escrito por: Débora Fogliatto, SUl 21

Sob tensão, Câmara discute manifestações políticas em escolas de Porto Alegre

Reunião no Plenário Otávio Rocha tratou das manifestações de estudantes nas escolas depois da vitória do Bolsonaro

Guilherme Santos/Sul21

Na última semana, alguns colégios particulares de Porto Alegre se viram envoltos em polêmica após estudantes se manifestarem politicamente nas escolas, o que causou descontentamento por parte de um grupo de pais. A discussão aconteceu principalmente no Marista Rosário, no Centro da capital, onde alunos foram vestidos de preto na última segunda-feira (29), após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL). No dia seguinte, estudantes favoráveis ao presidente eleito também se manifestaram. Após solicitações feitas por pais, duas comissões da Câmara Municipal se uniram na tarde desta terça-feira (6) no Plenário Otávio Rocha, com a presença de pais, alunos e professores.

Os ânimos estavam exaltados durante a sessão conjunta da Comissão de Defesa do Consumidor e dos Direitos Humanos (Cedecondh) e da Comissão de Educação, Cultura, Esporte e Juventude (Cece), mediada pela vereadora Comandante Nádia (MDB), presidente da Cedecondh. Durante cerca de três horas e meia, o plenário ouviu principalmente pais de estudantes de escolas particulares, enquanto nas galerias havia pais defensores do projeto Escola sem Partido, os quais se opunham aos protestos nas escolas, e, do outro lado, pessoas favoráveis à livre manifestação, incluindo estudantes.

Um dos momentos mais esdrúxulos da tarde ocorreu durante a fala do vereador Wambert di Lorenzo (PROS), que disse que os estudantes que se manifestavam contra o Escola sem Partido eram autoritários por estarem vaiando e gritando durante as falas de quem discordavam. Ele os acusou de serem fascistas, e os jovens começaram a cantar “fascistas não passarão” na direção dele, que revidou gritando a mesma coisa para os estudantes. “Não quero meu filho levando a discussão de coxinha e petralha pra dentro da sala de aula. Estamos vendo o conflito dos adultos invadindo a escola”, afirmou.

As oportunidades de fala foram distribuídas igualmente para os dois “lados”. Enquanto os defensores do Escola sem Partido afirmaram que os jovens estão sendo doutrinados nas escolas, os opositores a esse projeto destacaram a capacidade dos adolescentes pensarem por si próprios e desenvolverem suas próprias concepções. Ambos afirmavam ser os defensores da democracia e, em alguns momentos, citaram artigos da Constituição para embasar suas visões. Alguns estudantes estavam com bandanas nos rostos como forma de protesto contra o Escola sem Partido, mas a manifestação foi mal compreendida pelos que defendem a proposta, que os criticaram por “se esconderem”.

Relatos de pais

“Nossos filhos têm no Rosário a oportunidade de serem quem são, pois a escola abraça a diversidade. Eles pesquisam, têm as melhores notas no vestibular, e estão muito preocupados com as questões sociais que possam afetar ainda mais os invisibilizados, incluindo alguns de seus colegas. Esse foi o motivo que levou à manifestação do dia 29, a proteção dos seus pares. Estão preocupados com homicídios, feminicídios e a morte de LGBTs”, afirmou Aline Kerber, mãe de um estudante da escola.

Nossos filhos têm no Rosário a oportunidade de serem quem são, pois a escola abraça a diversidade- Aline Kerber

Já o pai Caio Augusto, que tem filhos de sete e quatro anos na escola, afirmou que as crianças que não participaram do protesto do dia 29 foram privadas de ir para o pátio no recreio. A colocação foi depois contestada por outros pais, que expuseram uma situação diferente. “Hoje são crianças que não participam de nenhum movimento que estão sofrendo censura, pressão e bullying. A escola deixou de ser um lugar de aprendizado, todas as escolas estão dominadas por pessoas que querem simplesmente aparelhar, manipular a forma de pensamento dos outros”, disse.

Em contraponto, Jorge Terra trouxe a perspectiva de sua família, dizendo que os direitos humanos são preocupação diária em sua casa. “Eles não precisa que alguém os doutrine, aqueles que estão próximos e dialogam com seus filhos sabem que eles têm condições de ter opinião própria”. Ele ainda questionou quem estaria “partidarizando” o debate, os estudantes que militaram por direitos humanos ou os pais que “convocaram parlamentares” para discutir o que ocorreu na escola.

O vereador Marcelo Sgarbossa (PT) buscou fazer uma fala conciliatória, citando sua relação harmoniosa com a vereadora Mônica Leal (PP), mesmo os dois tendo posições políticas totalmente diferentes. “Estamos dentro de um espaço em que as pessoas têm divergências ideológicas, partidárias, mas não precisam ser inimigas umas das outras. E a escola tem o papel de incentivar esse debate”, defendeu, acrescentando que se de fato houvesse doutrinação nas escolas, haveria muito mais pessoas filiadas a partidos e um resultado diferente nas urnas.

Uma das falas mais vaiadas foi a do pai Mario Quiroz, que disse que seu filho contou que uma professora teria dito que Bolsonaro “torturou muita gente e não gosta de mulher”. Aos estudantes na galeria, disse que eram “massa de manobra” dos professores. Já Caren Rosane, mãe de um aluno do Leonardo da Vinci, disse que os adolescentes são entregues à escola como um “HD em branco”.

Sua fala foi seguida pela de Jaqueline Mesquita, do grupo Mães e Pais pela Democracia, que prontamente discordou: “Meus filhos não foram para a escola com o HD em branco, eles foram para a escola carregando os valores que a minha família defende, de pluralidade, respeito ao outro”. Ela defendeu, ainda, que os jovens de Ensino Médio, como os que se manifestaram no Rosário, já têm a capacidade de pensar por si próprios e querem ter a liberdade para manifestar seus pensamentos.

Na mesma linha, Caroline Araújo contou que seu filho de 12 anos é transexual e que o medo dela não é em relação à doutrinação, mas sim que o menino sofra preconceito ou violência física na escola onde estuda, o Instituto São Francisco. “Na escola há sim um cerceamento da liberdade de expressão de gênero, o meu filho sofreu ameaças de estupro e de morte dentro da escola só por ser trans. E isso é por falta de pluralidade, de discussão de gênero e sexualidade dentro das escolas. Vocês têm medo de deixar seus filhos pensarem por eles mesmos, vocês não confiam na educação que vocês próprios deram para eles?”, provocou.

Na escola há sim um cerceamento da liberdade de expressão de gênero, o meu filho sofreu ameaças de estupro e de morte dentro da escola só por ser trans- Jaqueline Mesquita

Movimento estudantil

A vereadora Fernanda Melchionna (PSOL) lembrou que a discussão se referia a adolescentes, e não a crianças pequenas. “Todos os que vieram aqui incomodados falaram das manifestações que defendiam a democracia e que tinha a bandeira LGBT, que deveria ser defendida por todos. No outro dia teve manifestação em defesa do candidato e com essa não se incomodam”, apontou. A parlamentar disse que ela própria ingressou no movimento estudantil aos 14 anos, lutando em defesa da preservação da Floresta Amazônica. ”O movimento estudantil tem que ter independência, não tem que pedir autorização para pais ou coordenação”, defendeu.

A primeira estudante a falar foi Vitória Cabreira, presidente da União Municipal dos Estudantes de Porto Alegre (Umespa), que destacou que o movimento estudantil é algo histórico no país. “Os estudantes sempre se manifestaram, a juventude tem muita capacidade de dizer o que é certo ou não pra ele, de entender o que deve ou não defender. A gente não precisa que alguém nos diga o que deve ou não fazer, a gente tem total capacidade de entender”, afirmou, citando diversas manifestações ocorridas em escolas nos anos anteriores.

Gerusa Pena, da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), também destacou a importância de que a escola seja um espaço em que os alunos sejam incentivados a fazer um debate político. “Temos índices altíssimos de evasão escolar, devemos debater porque estudantes não vão para a escola. Queremos escola plural, em que todo mundo possa debater”, disse. A estudante do Rosário Betina disse ficar feliz que a manifestação feita na escola tenha aberto as portas para esta discussão. “Minha mãe lutou na ditadura pelo meu direito de debater o nosso país”, afirmou.

Escola sem Partido

Duas mães do movimento Escola sem Partido se manifestaram, embora com tons levemente diferentes. Fernanda Barth fez uma fala dizendo defender a pluralidade e o respeito às diferenças. “O projeto defende a liberdade de cátedra e de ensino, é contra qualquer tipo de doutrinação independente de partido político ou religião. Não é projeto de pensamento único, é o primeiro passo para que exista pluralidade realmente necessária”, afirmou.

Para ela, a liberdade de expressão é um consenso, mas o que se critica são as manifestações que “transformam escola em arena política, colocando uns contra os outros, como é da esquerda usual”. Criticando as “ditaduras comunistas”, ela também defendeu que haja diversos tipos de escola com posições políticas declaradas, que isso esteja claro no projeto pedagógico. “Como mãe, quero saber onde estou colocando meu filho”, disse ela, que foi candidata à deputada pelo partido Novo.

Outra defensora do Escola sem Partido foi Paula Cassol, que também foi candidata, mas pelo PP. Sua fala teve um tom mais inflamado e menos conciliador, criticando Paulo Freire, o qual afirmou ter fundado um método de “doutrinar as crianças e colocá-las contra os pais”. “Quem nega que existe doutrinação em sala de aula são as mesmas pessoas que querem impedir que os pais tomem conhecimento do que os professores estão fazendo com os alunos. Quem não deve, não teme”, disse. Ela afirmou ter recebido denúncias de pais e alunos que estão sendo ameaçados nas escolas por terem votado em Bolsonaro.

“Dentro da sala de aula estão sendo lobotomizados, sendo feitos robozinhos de professores militantes. Vocês estão pregando discurso de ódio, fazendo ideologia de gênero sim”, continuou, dizendo que os “pais acordaram” e defendendo que as salas de aula sejam filmadas. “Esses canalhas não vão roubar as mentes das nossas crianças como fizeram e aqui tem prova viva”, disse, referindo-se aos jovens do movimento estudantil que estavam presentes. Sua fala causou grande alvoroço e alguns pais da plateia se levantaram para chamá-la de mentirosa.

Representantes das escolas

O presidente do Sindicato das Escolas Privadas (Sinepe), Bruno Eizerik, disse que a entidade sempre irá defender a liberdade e a pluralidade de ideias. “A escola não está numa redoma, a escola está inserida na sociedade. A sociedade viveu um momento onde tivemos antagonismo, posições bem definidas. E isso se refletiu na escola, que é um espaço de aprender, tirar dúvidas, experimentar”, afirmou, mencionando que existem regras na escola e que caso haja o entendimento de que elas foram desrespeitadas, isso pode ser tratado com a direção de cada instituição.

“Conversei com os diretores das escolas envolvidas, hoje nas escolas reina um ambiente de tranquilidade. A escola sabe das suas responsabilidades, e jamais poderá ser instrumento de doutrinação de qualquer lado que seja”, apontou. Representando o Sindicato dos Professores (Sinpro), Cecília Farias lamentou estar numa discussão que tem como alvo o trabalho dos professores. “Não tem professores doutrinadores, foi uma atividade exclusivamente de alunos. Eu tenho muito orgulho, eu fui aluna do Rosário e professora lá e tive nas minhas turmas muita gente de direita, muita gente de esquerda, de centro”, garantiu.

“Sabemos que as eleições tiveram uma característica mais aguda que em outros anos, tivemos estímulo ao armamento, à violência, ao preconceito. Eu fiquei apavorada que havia uma mãe em pé na plateia fazendo o sinal de arminha”. Segundo ela, há uma grande quantidade de professores se sentindo constrangidos e agredidos, sem nada ter feito. “Vocês acham que na escola privada o professor faz o que quer e está tudo bem? Ou o professor cumpre o projeto pedagógico, ou ele não fica, a escola pode demitir professor a hora que quiser”.

O professor Francisco Marshall reiterou que os estudantes são “sujeitos criativos, sensíveis e nobres, não são HDs em branco”. Ele destacou que os legislativos brasileiros têm rejeitado o Escola sem Partido, assim como o Supremo Tribunal Federal, que já o classificou como um movimento “hostil à educação”. A professora Russel Terezinha Dutra da Rosa mencionou que as escolas reúnem pessoas “com diferentes visões de mundo, havendo espaço para participação das famílias”.

Vereadores e encaminhamentos

Em tom irônico, o vereador Felipe Camozzato (NOVO) disse ter sido aluno do colega de Câmara Alex Fraga (PSOL), o qual, segundo ele, teria sido um “péssimo doutrinador”, visto que hoje ambos têm visões políticas diferentes. “Liberdade de educação começa pelas escolas poderem definir os seus conteúdos, o MEC ser extinto da forma como existe hoje, e pais poderem educar seus filhos em casa”, opinou.

Já Alex Fraga disse lamentar muito que pessoas digam que os professores querem roubar os cérebros dos estudantes. “Talvez eles mesmo tenham tido os cérebros roubados em algum momento”, provocou. Ele próprio estudou no colégio Marista Assunção, o qual disse ter sido escolhido pelos pais devido aos ensinamentos cristãos. “Tive aulas de religião, e isso não me impediu de questionar os valores de lá. Não aceitei passivamente tudo que foi colocado pela escola, acreditam que seus filhos são seres anencéfalos?”. Ele ainda defendeu Paulo Freire, reconhecendo o legado do maior pedagogo brasileiro, o qual lembrou ser referência mundial em educação.

O vereador Roberto Robaina (PSOL), por sua vez, criticou o fato de a discussão estar ocorrendo na Câmara, Mônica Leal disse que o legislativo é “a casa do povo” e, portanto, pode promover o debate sobre qualquer assunto de interesse do município. “Na minha opinião, escola deve ser território neutro, de aprendizado, onde devem aprender a ser cidadãos, sobre patriotismo, ética, história do país, sobre política e sobre respeitar o pensamento do colega, praticar os bons valores sociais. Jamais deveria ser um lugar de conflito”, disse a vereadora do PP.

Já Robaina  destacou que a Constituição brasileira é clara na defesa da educação e sugeriu que seja feito um grande ato contra o “Escola sem Mordaça”. “Saibam todos aqueles que defendem o fim da liberdade que a defesa da liberdade não vai terminar nunca”, afirmou. Comandante Nádia, que presidiu a reunião, ao final classificou a discussão como “muito válida” e usou artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente para defender que os professores não exponham suas opiniões na sala de aula. “É dever do professor não utilizar disciplina como instrumento de cooptação político-partidário e ideológico”, afirmou.

Como encaminhamento, foi proposto que as escolas proporcionem debates políticos qualificados. “Entendemos que a escola é local crítico, de debate, de discussões, mas orientada devidamente pelo pedagógico da escola e que mostre sempre todos os lados para os estudantes escolherem o que mais lhes convêm”, colocou Nádia.