Escrito por: Cida de Oliveira, da RBA
Dispositivos da Lei de Biossegurança deram carta branca para a CTNBio decidir sozinha sobre a liberação de organismos geneticamente modificados
O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar nesta quarta-feira (3) a constitucionalidade de dispositivos da lei que abriu as portas do Brasil para a entrada de transgênicos, impulsionando o lucro de seus fabricantes. Em sessão plenária virtual, ministros vão decidir se acolhem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.526, proposta em 2005 pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que atendeu representação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e do Partido Verde (PV).
A ação pede que o STF declare inconstitucionais 24 dispositivos da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), que estabelece normas e mecanismos para liberação e fiscalização de atividades relacionadas aos transgênicos.
Um dos artigos da Constituição Federal afrontados é o 225, que determina que atividades com potencial de causar prejuízos ao meio ambiente – como é o caso da agricultura à base de plantas geneticamente modificadas – devem ser submetidas obrigatoriamente a estudos prévios de impacto ambiental.
Com a Lei de Biossegurança, a realização desses estudos passou a ser facultativa e condicionada à decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Ou seja, ao contrário do que determina a Constituição, a CTNBio, sozinha, pode decidir pela dispensa de estudo prévio ambiental de transgênicos.
“A possibilidade de dispensa de Estudo de Impacto Ambiental pela CTNBio se tornou a regra das decisões da comissão, já que os processos de liberação para cultivo ou comercialização de OGMs não são remetidos aos órgãos do Sisnama”, disse em nota a assessora jurídica popular da organização Terra de Direitos, Naiara Bittencourt.
Até a entrada em vigor da lei, o Ibama, que é integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), tinha competência para analisar os impactos ambientais dos transgênicos.
Ainda segundo a organização, esse privilégio exclusivo da Comissão e violação de competências de estados e municípios afronta a Carta de 1998 em outros aspectos. É justamente a competência comum nessa matéria que permite a cooperação entre todos os entes federados, seus órgãos e entidades na proteção e busca pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, consagrado na Constituição Federal.
Exemplo de consequência prática disso vem do Paraná, onde a Agência de Defesa Agropecuária do estado (ADAPAR) ficou impedida de fiscalizar o descumprimento de medidas contra a contaminação de lavouras de milhos crioulos por cultivos de milho transgênico.
Ex-integrante da CTNBio, o agrônomo Leonardo Melgarejo espera que, como disse o ministro Luiz Fux, a racionalidade vença o obscurantismo e os dispositivos da Lei de Biossegurança sejam declarados inconstitucionais. Na sua avaliação, a Lei de Biossegurança foi desviada de seu espírito ao promover a CTNbio, até então consultiva, em deliberativa.
“Isso permite que a Comissão decida inclusive que determinadas análises, sob sua responsabilidade, não sejam realizadas. O meio ambiente, a saude humana e ambiental e o tecido social do campo estão ameacados pela negligência de fiscalização do que se passa à sombra da Lei de Biosseguranca devido aos superpoderes delegados à CTNBio, pela demora do STF, pela inoperância do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) e pela ocultação dos fatos.”
Para se ter uma ideia, segundo Melgarejo, as avaliações ambientais, prévias às decisoes de liberaçao comercial, são realizadas em canteiros e vasos – claramente insuficientes para medir impactos relativos ao cultivo de milhões de hectares. E os monitoramentos após a liberação comercial, que deveriam subsituir as avaliações de impactos de escala previstas nos Estudos de Impacto Ambiental, estao sendo fraudados. “Os estudos que têm sido realizados para liberação de transgênicos resistentes a determinados agrotóxicos não incluem o uso desses agrotóxicos, falseando a realidade sob análise.”
Há problemas também na distribuição dos pedidos de liberação. A maioria dos membros da CTNBio que farão as avaliações são previamente selecionados, o que acaba levando a aprovações sem questionamentos. É como se estivéssemos diante de uma ciência onde não existiriam inseguranças nem dúvidas. Isso compromete não apenas a credibilidade das instituições como desmoraliza o metodo científico e ameaca a democracia”, pondera.
Para Melgarejo, nestes 15 anos de espera pelo julgamento no STF prevaleceu o obscurantismo, que dominou o centro decisório da área de biosseguranca. “Espero que o STF atente para o que isto significa para a ciência, a segurança e a soberania nacionais. E que a racionalidade do ministro vença a nuvem ilusionista criada pelos interesses que controlam a área de biotecnologia para a agricultura.
Nesses mais de 15 anos de engavetamento da ADI no STF, a super comissão com plenos poderes transformou-se em um balcão onde as empresas que desenvolvem os transgênicos – as mesmas que fabricam agrotóxicos usados em grandes quantidades nessas lavouras – obtêm a liberação solicitada com a maior facilidade. Vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, a CTNBio consolidou a prática de fazer vistas grossas à insuficiência e problemas metodológicos dos estudos de segurança à saúde e ao meio ambiente apresentados pelas empresas. E a de aceitar, sem questionar, dossiês incompletos para acelerar a aprovação.
Engavetada pelo ministro do STF Celso de Mello, que se aposentou em outubro passado, a ADI foi pautada por seu sucessor, o ministro Nunes Marques. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, tem perfil alinhado aos ruralistas e tem posições que favorecem a indústria de agrotóxicos, as mesmas que desenvolvem os transgênicos. Em setembro de 2018, quando era vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), cassou uma liminar que suspendia o registro de produtos à base de glifosato, tiram e abamectina.
A decisão provisória havia sido concedida pela juíza Luciana Raquel Tolentino, da 7ª Vara Federal do Distrito Federal, em atendimento ao Ministério Público Federal (MPF). Na ação, os procuradores pediam a reavaliação toxicológica das três substâncias, associadas ao aumento em taxas de mortalidade devido ao uso por estudos recentes.
Em atendimentos à Advocacia Geral da União (AGU) e ao lobby dos ruralistas, o então desembargador Nunes Marques justificou que a suspensão dos registros causaria “lesão à ordem pública”, ao tirar as substâncias do mercado de maneira “abrupta, sem a análise dos graves impactos que tal medida trará à economia do país e à população em geral”.
O julgamento será transmitido ao vivo e pode ser acompanhado pelo Canal do STF no Youtube, a partir das 14h.