Escrito por: Vitor Nuzzi, da RBA
Professores e juízes chamam a atenção para a atualização do conceito, que envolve “desumanização” e vulnerabilidade
O conceito de trabalho escravo contemporâneo mostra a evolução do combate a essa prática no Brasil. Mas quem acompanha o tema de perto destaca os desafios e as ameaças à continuidade das ações. O antropólogo e professor Ricardo Rezende Figueira, por exemplo, observa que na origem a ideia está ligada basicamente à restrição de liberdade. Mas o elemento central, acrescenta, é a “dignidade humana ofendida”.
Isso significa “tratar alguém como coisa, desumanizar a pessoa”, considerá-la uma mercadoria, observa o líder do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele foi um dos participantes de seminário promovido pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e pela Escola Nacional Associativa (Enamatra), durante três dias, até esta quinta (18).
O professor observa que até o início dos anos 1990 o assunto “era meio tabu, não fazia parte da pauta”, nem mesmo no meio acadêmico. Lembra do caso que envolveu o assassinato do camponês Expedito Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria (PA), em 1991, com repercussão internacional. Aos poucos, foi aberto espaço para discutir o tema violência no campo, inclusive com denúncia nas Nações Unidas sobre omissão do Estado brasileiro. A partir de 2003, ficou mais demarcada a servidão por dívidas como um dos principais elementos do trabalho análogo à escravidão.
Código Penal
A partir daí, também se iniciou um debate para alterar o Artigo 149 do Código Penal, o que levou aproximadamente 10 anos, até 2003. “Demorou um certo tempo, mas foi aprovada. Temos uma legislação clara, suficientemente discutida, refletida, pensada.” E aos poucos o Brasil foi se tornando modelo no combate ao trabalho escravo. Em 1995, surgiriam os grupos móveis de fiscalização, que envolvem diversos órgãos públicos.
Diretora de Formação e Cultura da Anamatra e moderadora do debate de abertura, Luciana Conforti observou que, apesar da alteração feita em 2003, as tipificações de casos refletem experiências que já vinham sendo praticadas desde 1995. “O artigo incorporou a experiência da fiscalização e a jurisprudência trabalhista que já se encaminhava para a proteção da dignidade do trabalhador e do meio ambiente de trabalho.” Ela ressalta o “esforço coletivo” das ações, que envolvem auditores-fiscais do Trabalho, policiais federais, procuradores, juízes, advogados e várias entidades, públicas e da sociedade. antes mesmo de 2003”.
Ao mesmo tempo, Luciana aponta a existência de projetos tramitando no Congresso para alterar o Artigo 149. “Isso traz muita preocupação, porque, na verdade, desatualiza o conceito com relação às práticas contemporâneas”, afirma.
Exercício do poder
O professor Figueira, ao traçar a evolução histórica do debate, lembra que o Judiciário, especialmente o trabalhista, precisa estar atento. “Os direitos humanos evoluem, não podem retroceder.”
A escravidão é o exercício do poder, ressalta a desembargadora Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT-8), no Pará. Segundo ela, existe um estereótipo que às vezes prejudica a percepção do problema. “A gente precisa ter a sensibilidade que não vai ver grilhões, correntes, não vai ver uma espingarda na cabeça de alguém. Mas vai ver, sim, esse exercício do poder sobre o outro.” Muitas vezes, observa, a Justiça acaba entendo que se – pelo menos aparentemente – não há limitação do ir e vir, também não há ocorrência de trabalho análogo à escravidão.
Juíza e professora, ela evoca uma decisão pioneira no tema. No final de 1976, o então juiz do Trabalho Vicente José Malheiros da Fonseca proferiu sentença a partir de reclamação feita por um trabalhador rural. “Processo oriundo de uma reclamação verbal, que ainda acontece na nossa região”, lembra a desembargadora. O trabalhador ficava em um engenho de cana de açúcar, no interior do Pará.
Subordinação e vulnerabilidade
Segundo ela, é preciso que os magistrados não se deixem levar por estereótipos e fiquem atentos às novas formas de escravidão, que não pode ser “naturalizado”. É preciso observar o fato e não a forma, observou, citando vínculos que vão surgindo, como o Uber. Por isso, ela defende uma atualização. “Esse conceito de subordinação tem de evoluir para um conceito de vulnerabilidade.”
Também participaram do debate a diretora geral do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Valena Jacob Chaves Mesquita, que falou sobre a importância de formar juristas que conheçam a realidade da escravidão contemporânea e aumentar a “consciência crítica desse problema, que também é jurídico”. Há ainda decisões majoritariamente de absolvição, constatou a pesquisadora.
Esse problema também foi destacado pela professora professora de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG) Lívia Mendes Miraglia. Ela observou que muitas decisões judiciais não mencionam o Artigo 149, nem mesmo a expressão de trabalho análogo à escravidão. “Em alguns casos, a Justiça do Trabalho não entendeu que aquela situação indigna seria trabalho escravo contemporâneo ou trabalho degradante.”