Tragédias do marketing: o legado de Serra e...
Publicado: 04 Fevereiro, 2010 - 10h38
Escrito por: Revista do Brasil
Resultados de campanhas publicitárias quefizeram o eleitor acreditar no que não viu, as gestões de Kassab, principalobra de Serra em São Paulo, apostam na propaganda e desprezam o combate àsdesigualdades, único meio de melhorar a metrópole. Colado nos passos dogovernador José Serra (PSDB), de quem herdou a prefeitura, o governo deGilberto Kassab (DEM) passa ao largo das questões em que a cidade é mais carentee frágil. De 2006 a 2009 a prefeitura cortou R$ 353 milhões em ações de combatea enchentes. A reportagem é de Antonio Biondi e Marcel Gomes, na Revista doBrasil.
Tragédias domarketing: o legado de Serra e Kassab em SP
O catador de papelão Francisco Oliveira deLima, de 45 anos, morreu durante o sono no último dia 8 de dezembro. Foisoterrado pela lama que deslizou sobre sua casa, em uma área de risco no JardimElba, zona leste de São Paulo. Nem ele, nem ninguém tem culpa de ter caídonaquela única noite um terço da chuva esperada para o mês inteiro. Mas ficouevidenciado que a cidade de São Paulo nunca esteve tão despreparada paraprevenir ou minimizar tragédias decorrentes da triste combinação de intempériescom ocupação urbana desordenada. E áreas de conhecido risco acabam maisexpostas com a inversão das prioridades na administração pública.
Duas semanas depois, algumas áreas da zonaleste ainda estavam submersas, e a população, sujeita a contaminações. Emalgumas áreas alagadas a água da chuva se misturava a esgotos não tratado porproblemas de bombeamento de uma estação da Sabesp, a empresa de saneamento doestado. E isso não é obra da natureza. Colado nos passos do governador JoséSerra (PSDB), de quem herdou a prefeitura, o governo de Gilberto Kassab (DEM)passa ao largo das questões em que a cidade é mais carente e frágil. De 2006 a2009 a prefeitura cortou R$ 353 milhões em ações de combate a enchentes. Dadosda liderança do PT na Câmara dos Vereadores mostram que, em vez de executar R$1,1 bilhão previstos para essa finalidade nos últimos quatro anos, o democratautilizou R$ 751 milhões. Nesse mesmo período, empenhou R$ 216 milhões para darpublicidade a outros “feitos”.
O descaso assemelha-se à inépcia dosinvestimentos feitos pelo governo do Estado ao longo de mais de 20 anos paraconter as enchentes do rio Tietê. Em 2009, Serra deixou de gastar R$ 114milhões nas obras de desassoreamento da bacia do Tietê. E o Orçamento de 2010prevê um corte de outros R$ 51 milhões para ações antienchentes. O Departamentode Água e Energia Elétrica do Estado de São Paulo, responsável pelas obras dacalha do Tietê, terá R$ 42 milhões subtraídos dos seus investimentos. Nacapital, o prefeito utilizou menos de 8% dos R$ 18,4 milhões previstos noOrçamento de 2009 para a construção de piscinões, que poderiam amenizar osefeitos das enchentes. E gastou R$ 80 milhões em publicidade. Para 2010, aequipe de Kassab prevê R$ 25 milhões para obras e gerenciamento de áreas derisco, um quinto do que pretende destinar a publicidade – R$ 126 milhões, novorecorde na história da cidade. Repetem-se no município as práticas de Serra,que este ano separou R$ 561 milhões para a rubrica comunicação. Em 2006, últimoano antes de Serra, o estado despendeu em publicidade R$ 37 milhões.
A gastança tem objetivos. Kassab trabalha com a possibilidade de suceder Serrano governo do Estado. Nessa hipótese, também abandonaria a prefeitura antes dofim do mandato. Isso enquanto estiver nos planos do governador manter-se nabriga pela sucessão de Lula – porque o temor da derrota já faz sua desistênciaser cogitada. Na mesma toada, Serra abusa da verba publicitária para promoverseu governo. Pois a opção, se desistir do Planalto, será tentar a reeleição. E,aí, interessa também a prefeitura sair bonita na foto, já que sua obra maisconcreta foi ter deixado a cadeira para Kassab. Mesmo que o casamento não vámuito longe (o democrata já vê cara feia por parte de setores do PSDB), a lamada capital tende a espirrar na campanha tucana. Assim, a principal preocupaçãoda dupla, que já conta com a omissão da mídia – pois não se vê notícia ruimsobre eles –, é a construção da imagem. Só não se sabe até que ponto omarketing competente que criou o Kassabinho de brinquedo bastará para fazerfrente à desconfiança crescente da população. Impostos mais altos,privatizações e corte nos gastos com saúde e nas vagas de escolas e creches,falta de investimento em transporte coletivo, trânsito caótico, déficit demoradias, ausência de participação popular, coleta de lixo deficiente, abandonoda população de rua, desmantelamento da Guarda Civil Metropolitana são apenasalguns carimbos da gestão.
A reportagem da Revista do Brasilfez um giro por todas as regiões de São Paulo, conversou com moradores,parlamentares e especialistas, e apurou que a cidade não carece somente deverbas, mas de rumo. A assessoria de imprensa da prefeitura não respondeu aosquestionamentos sobre os problemas levantados. Os argumentos da administraçãoforam extraídos do site da prefeitura e de depoimentos a outros veículos.
Prá inglês ver
Segundo o cientista político José PauloMartins Jr., professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de SãoPaulo, as discrepâncias entre o proposto e o executado fazem do Orçamentomunicipal uma peça de ficção, e não há nenhum controle social sobre os gastos.“Os políticos fazem o que bem entendem, exercem o Orçamento de acordo com seusinteresses”, aponta. Em 2009, por exemplo, foram previstos R$ 90 milhões para oinício da construção de três hospitais: na Brasilândia, em Parelheiros e naVila Matilde. Apenas R$ 43 mil foram gastos (na sondagem do terreno daBrasilândia). A saúde ainda é um dos setores mais carentes da cidade.
Atraso
A administração aposta no papel das Organizações Sociais (OSs) na gestão dosetor, o que precariza o atendimento e reduz a pó os princípios do SistemaÚnico de Saúde (SUS), de universalidade, integralidade e equidade. Em hospitaisentregues à administração de entidades religiosas existe até a denúncia de quesão proibidos procedimentos de planejamento familiar, como laqueadura evasectomia. Quanto à aposta da prefeitura nas Assistências MédicasAmbulatoriais (AMAs), especialistas e técnicos do setor afirmam que, por umlado, o novo equipamento pode trazer aspectos positivos, como a resoluçãoimediata de alguns problemas, além de aperfeiçoar a triagem dos pacientes. Poroutro, peca por apresentar integração frágil com as demais unidades deatendimento do SUS. Muitas vezes, o paciente tem de ir da AMA para o hospital,ou voltar para um posto de saúde (UBS). A falta de continuidade – que leva aoenfraquecimento de ações como o Programa Saúde da Família – é outro problema.
Mais carros
No Conselho Municipal de Saúde, que defineas políticas do setor, as disputas paralisaram por meses os trabalhos dosconselheiros. Reuniões são feitas sem a presença dos representantes daprefeitura, decisões foram desrespeitadas e conselheiros eleitos, nãoempossados. Os usuários, por exemplo, viram questionada a eleição de seusrepresentantes pelo próprio secretário municipal de Saúde, que preside oconselho. Maria Cícera de Salles, representante dos usuários, avalia que agestão atual da prefeitura “não quer o povo opinando, nem quer controlesocial”. Situação idêntica se dá no Conselho Estadual.
Desigualdade
Estima-se que existam 20 mil moradores de rua na capital. O número praticamentedobra em relação a 2003, quando o mesmo estudo constatou que essa população eraformada por 10.400 pessoas. Os dados estão num censo dos moradores de rua feitopela Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe) da USP. Contribuíram para essequadro a mudança na política de assistência social e o fechamento de albergues.Uma pesquisadora do censo, que não quis se identificar, afirmou que o cenáriode abandono nos pontos centrais da cidade é chocante: “Ninguém conhece arealidade dessas pessoas, a mídia não mostra. Os moradores reclamam dofechamento de albergues e dizem que são levados de um lado a outro pelas peruasdo São Paulo Protege. Mas não há política de inclusão. Eles têm consciênciadisso, mas não têm como reagir”.
Lentidão
A análise pode ser reforçada também pelo fechamento da Boraceia, estaçãocoletora de lixo reciclável, reconhecida pela ação reintegradora da populaçãode rua. Ali, os catadores tinham abrigo até para seus cachorros. O projeto e 15outras estações coletoras foram encerrados. Faz parte da linha higienistaimposta à região central. Assim como a evacuação dos prédios São Vito, PrestesMaia e Mercúrio, que simbolizavam a resistência e a chance de as classes maispobres viverem no Centro – mediante um projeto de recuperação dos imóveis paraposterior inclusão em política habitacional que já não existe. Hoje, naavaliação da prefeitura, o projeto de revitalização do Centro vai criarinvestimentos, empregos, melhorias e moradias. Nesse sentido, a valorização daregião do Mercado Municipal é estratégica, e os prédios populares na área devemdar lugar a estacionamentos. Selma Maria de Andrade morou 24 anos no Mercúrio.Ela conta que as famílias eram unidas e viviam perto de tudo. “Na primeiraordem de despejo, a polícia veio, minha perna bambeou, a vista escureceu,chorei, me senti humilhada”, lembra-se. “Teve gente que saiu apavorada, atésaiu da cidade. Outros nem têm como alugar imóvel, porque a imobiliária achaque não vão pagar o aluguel.”
Paulo Garcia, diretor da Associação dosComerciantes do Bairro da Santa Ifigênia, integra um dos grupos que resistem àspropostas do prefeito de realizar uma concessão urbanística de um bairrointeiro, na região da Luz. Para a prefeitura, o projeto geraria umatransformação importante para o Centro e para o restante da cidade. “Paraaprovarem esse novo projeto, fizeram uma campanha contra a região, como se alisó tivesse drogado e contrabandista”, acusa Garcia. Segundo o diretor, oprefeito Kassab não fala com a associação: “Ele está blindado pela mídia e porgrandes gastos publicitários”.
Longe do Centro, a desatenção à questão damoradia não é diferente. A construção em sistema de mutirão, apontada porespecialistas como uma das formas mais baratas e indicadas para enfrentar odéficit habitacional, apresentou queda de 75% entre 2004 (R$ 22,4 milhões) e oOrçamento de Kassab (R$ 5,8 milhões) para 2010.
Estelionato
Em 2008, imagens de Kassab entregando a Serra cheques gigantes estamparamjornais e campanhas. Um de R$ 200 milhões em março e outro de R$ 198 milhões àsvésperas da eleição municipal. Os cheques “simbolizavam” partes do R$ 1 bilhãoque a prefeitura investiria na expansão do metrô naquele ano. Outro bilhãoseria repassado até 2012. Mas a verba não chegou por inteiro nem há garantia deque chegará. Naquele ano, a verba transferida para a Linha 5 - Santo Amaro nãoalcançou a metade da prometida. E em 2009 a prefeitura previa destinar R$ 218milhões para a expansão do metrô, mas só repassou R$ 50 milhões, e agora emdezembro. Para 2010 estão previstos somente R$ 5 milhões, outros R$ 720
O teatro não para nos repasses parciais. Aprefeitura ainda transferiu para o Metrô a continuidade do corredor ExpressoTiradentes, o trecho do velho fura-fila que irá da Vila Prudente a CidadeTiradentes. O combate às desigualdades em São Paulo certamente tem nosinvestimentos em transporte coletivo um elemento central. Mas a prefeiturapretende investir cerca de R$ 4,4 bilhões em obras viárias nos próximos anos,priorizando a circulação de automóveis. O recurso daria para cerca de 20quilômetros de metrô. Não é à toa que a velocidade média do tráfego nas horasde pico, que já foi de 27 km/h em 1980, hoje está em 17 km/h.
Não se deu continuidade à expansão doscorredores de ônibus. A SPTrans, responsável pela gestão do transporte porônibus, foi contemplada com R$ 1,35 bilhão no Orçamento aprovado para o anopassado. Na prática, o valor caiu R$ 110 milhões. E para 2010 a propostaenviada aos vereadores prevê R$ 1,07 bilhão. Uma queda de R$ 280 milhões em umano. O descompasso é prejuízo certo para a cidade e põe em xeque metas fixadaspara 2012, por uma lei de 2002. Para tentar não ficar muito longe do queestabelece o Plano Diretor Estratégico, Kassab encaminhou duas medidas à Câmarados Vereadores. A primeira, uma proposta de reforma do Plano, que ainda nemsequer foi regulamentado. “Antes de fazer uma revisão, é preciso cumprir o queestava escrito”, afirma o empresário Oded Grajew, um dos coordenadores domovimento Nossa São Paulo. A segunda, o pedido de aumento no IPTU de boa partedos imóveis da capital a partir de 2010, com o objetivo de faturar mais R$ 564milhões com o imposto, o que lhe rendeu o apelido de “Taxab”.
Falta diálogo
De acordo com a Secretaria Municipal deHabitação, atualmente cerca de 1,3 milhão de pessoas vivem em mais de 1.600favelas. Essa população tem crescido a taxas de quase 4% ao ano. Aadministração considera que os programas de urbanização de favelas erevitalização dos mananciais são essenciais, e os benefícios – ambientais,sociais, de saúde e até de turismo e lazer –, muitos maiores que os problemas.Maria Gorete Barbosa, moradora do Parque Cocaia desde 1989, enfrentou em 2009meses de grande preocupação, diante do projeto de revitalização da Billings, deGuarapiranga e outros mananciais. O projeto receberá aportes do município,estado e União que somam quase R$ 1 bilhão. E muitas famílias terão de deixarsua casa.
Gorete conta que, quando iniciaram asatividades ligadas ao projeto em sua região, ninguém tinha claro quais casasteriam de ser demolidas. “As pessoas não sabiam se iam sair ou se seriambeneficiadas.” De acordo com moradora, a prefeitura foi convencendo osmoradores a assinar os papéis e a pegar o cheque oferecido, de R$ 5.600.“Quando fizemos manifestação, fechamos a avenida, alguns conseguiram R$ 8 mil,outros, cadastro para a CDHU”, recorda-se. Para ela, a prefeitura deveriaexplicar o que pretende fazer e discutir com as pessoas suas necessidades paraobter nova moradia. “O diálogo com as comunidades e o respeito às pessoas sãotão fundamentais quanto o investimento em saneamento, parques e recuperação dasmargens e áreas verdes.”
O diálogo está ausente também em outrossetores. Em Cidade Tiradentes, bairro tão grande e populoso que faz jus aonome, há muita vegetação nativa, mas poucas praças e parques. Na avenida dosMetalúrgicos concentram-se equipamentos como Centro Educacional Unificado(CEU), hospital, pontos de cultura, clubes, até um pequeno mercado municipal. Aperder no horizonte, conjuntos habitacionais e moradias populares. Tito, doNúcleo Cultural Força Ativa, atuante na região, afirma que hoje o CEU – pensadona gestão da prefeita Marta Suplicy para ser um centro de atividades esportivase culturais à disposição da comunidade – está ao deus-dará. Apesar de a cidadeter dobrado o número de unidades desde o início de 2005, o público dasatividades culturais despencou, por falta de diálogo e de política para elas.“A piscina está vazia, o sol a pino, a molecada em casa. Aí invade, dáconfusão”, diz. “A grande preocupação do CEU kassabiano é a polícia, não osinstrutores, a linha política, a visão de cultura. Em termos de educação ecultura, não há diferença entre escolas de lata e CEUs”, lamenta Tito.
Não bastasse a descaracterização dos CEUs,a situação não foi melhor em creches e Escolas Municipais de Ensino Infantil(Emeis). Em 2004 havia 44.796 crianças nas creches diretas (administradas pelaprefeitura), 27.526 nas indiretas (apenas construídas pela prefeitura) e 40.344nas particulares conveniadas. Em 2009, as diretas abrigavam 43.198 crianças eas indiretas e conveniadas, 114.829. No último ano de Celso Pitta, em 2000, asEmeis disponibilizavam 208 mil matrículas. Em 2004, final do governo Marta,275.875. E, em 2009, 268.048. Estima-se que entre 35 mil e 45 mil crianças nãoestejam nas Emeis por falta de vagas.
Trabalho esvaziado
O Orçamento da administração diretaaprovado em 2004 ficou em R$ 14,3 bilhões de reais, dos quais foram empenhadosR$ 13,2 bilhões. Em 2009, chegou a R$ 24,1 bilhões. Apesar do substancialaumento, um dos setores nevrálgicos da administração viu despencar seus valoresna gestão Kassab: a Secretaria do Trabalho. Chamada anteriormente de Secretariado Trabalho, Desenvolvimento e Solidariedade, a pasta então comandada peloeconomista Marcio Pochmann, hoje presidente do Ipea, foi um dos destaques dagestão Marta. Em 2004, teve empenhados R$ 190 milhões. Para 2008, o Orçamentoprevia R$ 137 milhões para a secretaria, mas menos de R$ 40 milhões foramempenhados. Em 2009, destinava R$ 127 milhões, depois atualizados para R$ 130milhões. Mas até 15 de dezembro apenas R$ 28 milhões haviam sido liquidados.
E as políticas de geração de emprego e rendanas regiões mais vulneráveis à pobreza – responsáveis por sensíveis melhorasnos indicadores de violência em anos anteriores – parecem continuar fora dosplanos da gestão Kassab. No Orçamento 2010, a previsão para a Secretaria doTrabalho é de somente R$ 103 milhões. A se repetir o “hábito” de usar menos de25% do planejado, como nos dois últimos anos, a expectativa para os programassociais é ainda mais desoladora do que o Orçamento permite prever.