Escrito por: Maurício Thuswohl, na RBA
Evento reuniu especialistas em direitos humanos de diversos países
O impeachment de Dilma Rousseff não se sustenta do ponto de vista legal, e as características do processo de afastamento da presidenta do Brasil pelo Congresso Nacional fazem parte de uma tradição histórica segundo a qual as elites nacionais atuam pela “neutralização de todas as energias políticas que lutam efetivamente pela transformação social no país”. Esta foi a linha de argumentação da acusação contra o golpe, realizada pelo jurista Geraldo Prado, no primeiro dia do Tribunal Internacional Pela Democracia no Brasil, que reúne no Rio de Janeiro especialistas em direitos humanos de diversos países para analisar o atual momento político brasileiro. Com valor simbólico, as conclusões do tribunal serão encaminhadas ao Senado e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
O primeiro dia do tribunal, com o Teatro Casa Grande lotado, foi dedicado à oitiva das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa do processo de impeachment, que ficou a cargo da advogada Margarida Lacombe.
Primeira testemunha convidada por Prado, o especialista em Filosofia do Direito Jacinto Coutinho, afirmou que o processo de afastamento em curso no Senado não respeita as devidas garantias legais previstas pela Convenção Americana de Direitos Humanos e elencadas na Constituição brasileira. Segundo Coutinho, um julgamento com caráter meramente político está se sobrepondo ao conjunto de fatos jurídicos que não apontam para o cometimento de crimes de responsabilidade por parte de Dilma: “Direito e política andam sempre juntos, e não há imparcialidade do tribunal do impeachment, que é o órgão julgador. Essa estrutura, de uma falsa moralidade, nos faz conviver com uma decisão que se anuncia como já tendo sido tomada. É evidentemente vergonhoso. Tudo parece estar desde sempre pré-ordenado para o impeachment, e é isso que não se pode admitir. Os fundamentos para o impedimento não se fazem presentes”.
Para o professor Ricardo Lodi, que é diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e também foi testemunha de acusação, o processo de impeachment, do ponto de vista legal, não deveria tratar de outra coisa que não os dois pontos autorizados pelo STF. Esses pontos são o atraso nos pagamentos de obrigações legais relativas ao Plano Safra de subvenção aos agricultores e a abertura por seis decretos de créditos complementares ao Orçamento em 2015 sem autorização do Congresso Nacional e, portanto, em desacordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Segundo Lodi, “a identificação do inadimplemento de obrigações legais com operações de crédito é absolutamente inédita na doutrina e jurisprudência brasileira”, uma vez que o Tribunal de Contas da União (TCU) sempre tolerou operações desse tipo. Ele lembrou também que foi constatado pela perícia realizada pelo Senado que Dilma jamais foi avisada pela consultorias jurídicas de que a meta fiscal não era cumprida: “Muito pelo contrário, a presidente foi tranquilizada pelas consultorias jurídicas da Advocacia Geral da União (AGU), que disseram que a meta estava sendo cumprida. Esse posicionamento das consultorias da AGU refletia a posição jurisprudencial então dominante no TCU e que não era criticada por nenhum doutrinador brasileiro. Essa jurisprudência foi alterada em outubro de 2015, quando se pretendeu criar o crime de responsabilidade”, disse.
Ruptura democrática
Terceira testemunha da acusação, a advogada Tânia Oliveira afirmou que outro elemento que caracteriza o golpe é o fato de o governo provisório, ao contrário do que deveria ser feito enquanto o processo de afastamento da presidenta não se conclui, não ter nenhuma continuidade com o projeto escolhido por 54 milhões de eleitores brasileiros em 2014: “Estamos vivendo um golpe parlamentar no Brasil, não devemos ter medo de dizer isso. O golpe no Brasil é político, jurídico, econômico e midiático. Político porque está sendo feito dentro do Congresso Nacional tão-somente como um exercício de maioria, sem que haja a comprovação da existência de qualquer crime. É jurídico porque é feito dentro das formas legais, supostamente garantindo o direito de defesa, como se a forma pudesse suplantar a ausência de mérito, e também porque é feito com a anuência, seja por ação ou omissão, do Poder Judiciário no país. É econômico porque há participação ativa do poder econômico, basta lembrar o financiamento que Fiesp, Firjan, CNI e CNT deram ao processo de impeachment, pagando propagandas milionárias nos grandes jornais e atuando no convencimento de parlamentares. É midiático porque conta com o apoio da mídia conservadora no país, cuja maior representante é a Rede Globo”.
Como em todo golpe, disse Tânia, não há continuidade com a política escolhida democraticamente: “Há ruptura. Esse governo que se adornou do poder a partir do afastamento temporário da presidente da República não é um governo legítimo”. Segundo a advogada, o que acontece no Brasil já traz uma consequência imediata de cunho político-jurídico, que é a total instabilidade do regime presidencialista no país: “Se o Congresso Nacional pode afastar uma presidenta eleita com 54 milhões de votos por exercício de maioria circunstancial, significa dizer que toda pessoa que sentar naquela cadeira no Palácio do Planalto terá sobre sua cabeça uma Espada de Dâmocles que a impedirá de governar, a não ser que tenha maioria no Congresso Nacional. Seria um falso presidencialismo e um parlamentarismo disfarçado”, disse.
A ruptura da agenda escolhida nas urnas, segundo Tânia, já tem exemplos concretos. “A volta da privatização desenfreada, que tem como maior exemplo o pré-sal, o desmonte das leis trabalhistas e o aumento da jornada de trabalho, a desvinculação das receitas fundamentais para políticas públicas para a educação e a saúde representadas pela PEC 241, o descaso com políticas nevrálgicas para mulheres, negros, índios e qualquer representante das minorias neste país e a volta de pautas retrógradas no Congresso, como a redução da maioridade penal e adoção do programa Escola sem Partido.”
Dando seu testemunho “a partir da ótica feminista”, a filósofa Márcia Tiburi afirmou que o afastamento de Dilma representa uma vitória do capitalismo patriarcal, que sempre enxergou com dificuldade o fato de uma mulher estar na Presidência da República. “Ao se autodenominar presidenta, Dilma ofendeu a máquina misógina e o patriarcado. Nesse simples ato de se autodenominar, ela rompeu com o modo de linguagem machista e ofendeu muita gente. Esse foi um ato simbólico dos mais importantes”, disse.
Segundo a filósofa, Dilma, antes mesmo de ser julgada, já é culpabilizada politicamente pelo sistema dominante apenas por ser mulher. “O machismo é o melhor jeito de evitar que metade da população entre nos jogos políticos de poder”, disse. Para ela, a presidenta, disse, foi “estuprada politicamente” pela direita conservadora. “Isso ficou simbolizado pelo elogio fascista, machista e perverso feito pelo deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) ao coronel Brilhante Ustra, citado como o ‘terror de Dilma’ (na sessão da Câmara, que admitiu o processo de impeachment, em 17 de abril). Há todo um jogo simbólico contra a figura feminina de Dilma”, disse.
Defesa
A “defesa” do processo de impeachment foi realizada por especialistas que, na realidade, não defendem o golpe, mas que durante o tribunal internacional atuaram como “advogados do diabo” ao apresentar as razões jurídicas alegadas no pedido de impeachment de Dilma elaborado por Miguel Reale Júnior, Janaína Paschoal e Hélio Bicudo e apresentado pelo PSDB. As testemunhas também analisaram os argumentos pelo afastamento de Dilma que devem embasar o parecer que está sendo preparado pelo senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), relator do processo no Senado.
Como testemunha da defesa, o professor de Direito e ex-conselheiro nacional do Ministério Público Luís Moreira falou sobre a disputa de narrativas sobre o impeachment. A desembargadora aposentada Magda Biavaschi discorreu sobre as razões alegadas pelo governo provisório para o estabelecimento de um teto para os gastos públicos. Também foram testemunhas da defesa do golpe o conselheiro da Comissão de Anistia José Carlos Moreira da Silva Filho, que falou sobre os atos da presidenta contra a lei orçamentária, e João Ricardo Dornelles, doutor em Direito pela PUC-RJ.
Responsável pela argumentação da defesa, Margarida Lacombe afirmou que há toda uma linha de entendimento de que o impeachment é uma figura prevista na Constituição brasileira: “O que precisamos observar é até que ponto esta Constituição está sendo usada ou não usada corretamente, e também como está se construindo uma doutrina para os crimes de responsabilidade no Brasil”, disse.
Margarida ressaltou que desde a lei do impeachment promulgada em 1950, mais de cem hipóteses de crime de responsabilidade cometidos no exercício da Presidência da República podem existir, número que foi ampliado ainda mais após a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal: “A LRF acrescenta mais hipóteses de crime de responsabilidade, e os crimes alegados pelos defensores do afastamento de Dilma são a existência de operações de crédito irregulares com bancos públicos federais e a abertura de créditos suplementares sem a autorização do Congresso Nacional”.
Voto como arma
Em sua sustentação final contra o golpe, Geraldo Prado disse que a situação política no Brasil “aponta para a perpetuação das tiranias”, e comparou o atual momento do país com 1935, 1950 e 1964: “O Carlos Lacerda falando de Getúlio Vargas em 1950 parecia Eduardo Cunha e Aécio Neves falando de Dilma Rousseff em 2016. Sem a compreensão do contexto, vamos acreditar que aquelas pessoas estão reunidas no Senado sinceramente analisando um processo de impeachment. Nem eles acreditam nisso. A farsa faz parte do autoritário brasileiro”, disse.
Prado afirmou que as elites brasileiras temem a democracia: “Eles sabem que pelo voto não voltam mais”, disse. Ao pedir o voto dos jurados, ele citou Jean-Paul Sartre: “Contra o golpe o povo pode usar uma munição muito eficaz, que se chama título eleitoral. Digam sim à condenação do golpe para devolver ao brasileiro a única arma que ele tem para se defender dessas pessoas”.
Segundo o jurista, ainda é possível reverter o quadro político no Brasil: “O contexto internacional é outro. Podemos, sim, oferecer uma resistência consistente. Essa é a nossa diferença”, concluiu.