Escrito por: Walber Pinto
A mortalidade de jovens negros no Brasil é superior a de países em guerra civil no mundo. São 63 mil jovens brasileiros mortos por ano, sendo mais de 70% são negros
Agatha Vitória Sales tinha 8 anos, Eduardo de Jesus, 10 anos, João Pedro Matos, 14 anos e Guilherme Silva Guedes, 15 anos. Todos eram negros. Todos moravam em comunidades pobres. Todos foram mortos pela polícia brasileira e, muito cedo, passaram a fazer parte de uma estatística cruel no Brasil que evidência o racismo estrutural: a violência policial.
O racismo estrutural se expressa no genocídio escancarado da juventude negra e em diversas formas de desigualdade. Na hierarquia de gênero, por exemplo, as mulheres negras são as que mais morrem e sofrem com a violência doméstica.
A mortalidade de jovens negros no Brasil é superior a de países em guerra civil no mundo. São 63 mil jovens brasileiros mortos por ano, sendo mais de 70% são negros.
A lista de pessoas negras vítimas dessa tragédia é extensa no Brasil. De acordo com o Atlas da Violência 2020, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os casos de homicídio de pessoas negras (pretas e pardas) aumentaram 11,5% em uma década. Já na contramão desses dados, entre 2008 e 2018, período avaliado, a taxa entre pessoas não negras (brancos, amarelo e índio) fez o caminho inverso, apresentou queda de 12,9%.
As cores e a classe social da tragédia brasileira
A pequena Agatha morava Complexo do Alemão e foi morta com um tiro nas costas disparado por um Policial Militar (PM). Eduardo, também do Alemão, foi morto na porta de casa por um tiro disparado por policiais. João Pedro, do Complexo do Salgueiro, perdeu a vida com um tiro na barriga após uma operação da Polícia Federal e da Polícia Civil. Guilherme, na Vila Clara, em São Paulo, foi encontrado morto em um terreno com dois tiros na cabeça, em Diadema, cidade do Grande ABC, disparados também por um PM.
De acordo com o sociólogo e pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Paulo Ramos, a alta taxa de homicídio entre jovens negros ainda é resquício da colonização nos dias de hoje.
“A gente está falando de guerra civil, se a gente for comparar a violência do Brasil com outros países do mundo, o Brasil mata 63 mil pessoas por ano. Há 20 anos matava 40 mil. Em 1980, a taxa de homicídio era de 20 mil pessoas por ano e já era um absurdo na década. É há uma razão colonial por trás disso”, afirma.
No Brasil, país que construiu a mitologia da democracia racial (de que a nação vivia em harmonia entre brancos e negros) escondeu o racismo, a discriminação, o abandono e a violência contra a população negra por muito tempo. Basta dizer que um ano após a abolição surgiu a Lei da Vadiagem, em 1889, que tinha como alvo o ex-escravo que não tinha emprego nem moradia.
Tanto o mito da democracia racial como genocídio negro foram denunciados pelo escritor, dramaturgo e ativista do Movimento Negro Unificado (MNU) Abdias Nascimento na década de 1970. Em 1978, Abdias publicou o livro “O genocídio do negro brasileiro”, que se transformou em um símbolo de denúncia do racismo no Brasil.
Para Paulo Ramos, o termo genocídio para se referir à morte de jovens negros tem vários significados, uma disputa através dos números.
“Incialmente foi usado para falar de conflitos na Europa no começo do século 20. Atualmente, está associado no imaginário social ao nazismo, mas a ideia de genocídio é levantada pelo movimento negro para falar não só da violência policial, mas também de outros temas negros que estão associados no Brasil como: educação, mundo do trabalho, segurança pública, encarceramento em massa e todo o sistema de justiça”, afirma.
“A gente diz que é um genocídio porque ele organizado pelo estado, são as políticas do estado a partir da sua concepção racista que orquestra o assassinato da sua juventude, da população negra”, complementa Anatalina Lourenço, secretária de Combate ao Racismo da CUT.
É necropolítica, uma ação do Estado de forma pensada a partir das suas políticas que determina quem vive e quem morre- Anatalina LourençoO genocídio da população negra tem sido alvo frequente de denúncias por ativistas do movimento negro em órgãos internacionais. Entretanto, é no grito dos moradores das periferias que fica evidente que população continua a ser executada pelo Estado.
“É em virtude disso que o movimento negro reivindica o termo o genocídio”, explica Paulo Ramos
Os dados da pesquisa do Ipea chamam a atenção para os jovens entre as vítimas de homicídios ocorridos em 2018. Ao todo, 30.873 jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos foram mortos, o que representa 53,3% dos registros. Entre 2008 a 2018, houve um aumento de 13,3% na taxa de jovens mortos, que passou de 53,3 homicídios a cada 100 mil jovens para 60,4.
Essa disparidade racial e a soma de vulnerabilidades é mais evidente quando se trata de mulheres, que são as principais vítimas de homicídio no Brasil.
Segundo o Atlas da Violência 2020, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. De acordo com o levantamento, uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil —foram 4.519 mulheres assassinadas em 2018, um índice de 4,3 a cada 100 mil mulheres que moram no país.
Entre 2008 e 2018, em uma década, os homicídios de mulheres negras aumentaram 12,4%, enquanto os homicídios entre mulheres brancas caíram 11,7%.
Para especialistas, as mulheres negras têm mais dificuldade em denunciar crimes e acessar serviços públicos de proteção, mesmo durante a pandemia do novo coronavírus.
Rosana Fernandes, secretária-Adjunta de Combate ao Racismo da CUT, lembra que a violência contra a mulher negra se sustenta com base em três vertentes: o preconceito de gênero, o de raça, e o de classe, uma vez que a maioria das mulheres negras é pobre.
“Em nossa pirâmide social elas são as mais vulneráveis”, comenta a dirigente, que continua: “Até um tempo atrás, as negras sequer eram consideradas como seres humanos. Seus corpos só serviam como fonte de hipersexualização. Os dados da violência são parte da herança histórica, que recai sobre elas”.
Outro número que justifica a afirmação de Rosana em torno do racismo e homicídios de mulheres, é que os estados que tiveram as mais altas taxas de homicídios entre a população negra estão localizados nas regiões Norte e Nordeste, com destaque para Roraima (87,5 mortos para cada 100 mil habitantes), Rio Grande do Norte (71,6), Ceará (69,5), Sergipe (59,4) e Amapá (58,3).
“Tem a ver com acúmulo de desigualdade que recai sobre a população negra e as mulheres negras. É efeito direto do racismo que elas estão envolvidas”, finaliza o sociólogo Paulo Ramos, que coordena o Projeto Reconexão Periferias do Fundação Perseu Abramo.