Para combater crise, União Europeia ataca política industrial brasileira
Publicado: 26 Novembro, 2014 - 00h00
Em uma entrevista coletiva em novembro de 2010, durante encontro do G20 (esse mesmo que se reuniu há alguns dias na Austrália e que reúne as 20 maiores economias do mundo), o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma análise sobre a saída para a crise instalada a partir de 2008.
Na ocasião, Lula disse que na crise os países – se quisessem uma saída solidária, como a que tentavam apontar os presentes àquela reunião do G20 (chefes de Estado e de Governo, Ministros de Fazenda e presidentes de Bancos Centrais) –, não poderiam tentar puxar as economias pelo comércio, pois na área comercial não existia solidariedade, mas competição (porque ao saldo de um corresponde o déficit do outro).
O então presidente brasileiro assinalou que, se quisessem buscar a saída da crise solidariamente – que era o que apontavam os documentos do G20 entre 2008 e 2010 –, os governos deveriam estimular um aumento do consumo interno, seja incentivando o consumo das famílias, seja ampliando os gastos públicos e, dessa forma, retornar a um ambiente em que os investimentos produtivos voltassem a ser atrativos. Foi uma avaliação bastante precisa.
Entretanto, a União Europeia, depois de salvar parte dos bancos privados e dos especuladores financeiros – às custas de uma crise aguda de vários de seus membros, com recessão e alto desemprego, como Itália, Irlanda, Espanha, Portugal, Grécia, Chipre, Romênia, Bulgária e outros –, ainda prefere insistir em um caminho muito pouco solidário e bastante conflituoso: o caminho dos ajustes fiscais prolongados (e contraproducentes, como mostram as projeções de crescimento para este ano e para 2015 dos próprios Fundo Monetário Internacional e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, apontando agora a estagnação nos próprios países que constituem o eixo central da UE, a França e a Alemanha).
Como parte de sua estratégia de busca de novos mercados às custas do crescimento de outros países, a UE nem bem esperou esfriar o nosso processo eleitoral e já no último dia de outubro apresentou à Organização Mundial do Comércio (OMC) questionamento em relação às políticas de incentivos à produção no Brasil – isso apesar de estar em curso um processo de negociação com a própria UE para um acordo comercial com o Mercosul, bloco do qual o Brasil é o membro mais robusto. Em sua argumentação, a União Europeia chega a afirmar que busca defender os consumidores brasileiros que, segundo ela, gastam mais para comprar produtos que, no exterior, custam menos – quanta generosidade! Programas como a redução de Imposto sobre Produtos Industrializados para a indústria automobilística ou o Inovar-Auto estão na mira dos europeus.
A estruturação de um “painel”, como este processo é conhecido na OMC, em relação à política industrial do governo Dilma Rousseff deveria chamar a atenção da sociedade brasileira para alguns pontos.
O primeiro é que, desde o começo da crise em 2008, o conjunto de países de fato ficou mais “protecionista” no cenário internacional, o que não é novidade (como diz o velho ditado: “farinha pouca, meu pirão primeiro”). Defendendo como podiam seus mercados domésticos, todos procuraram reagir, o que resultou em uma diminuição real dos fluxos de comércio internacional.
Entretanto, vale lembrar que os principais países capitalistas possuem poderosos mecanismos financeiros de defesa de seus mercados e incentivos a seus produtores, enquanto nos países em desenvolvimento as defesas se concentram em mecanismos fiscais e tarifários. Assim, é preciso visualizar o quanto, de fato, a OMC e outros organismos regidos por regras que refletem os anos de hegemonia liberal, não seriam de fato espaços bastante assimétricos, onde o poder real de defesa de seus produtores vale para uns mas não vale para outros, dependendo do mecanismo de proteção adotado.
Segundo, é preciso avaliar até que ponto os europeus estão adotando as posturas de impedir que outros utilizem políticas industriais que eles adotaram no passado para se desenvolver, como avalia o economista sul-coreano Ha-Joon Chang, em seu já clássico livro “Chutando a Escada”, no qual aponta que uma das principais estratégias dos países desenvolvidos na institucionalidade internacional é criar mecanismos para impedir as nações em desenvolvimento de usarem os mesmos artifícios que eles utilizaram para crescer no passado.
Terceiro, temos que repensar o papel da Organização Internacional do Trabalho (OIT) neste novo contexto, diante do papel preponderante da OMC, cujas decisões são imperativas e devem ser cumpridas. A OIT tem um papel acessório de fazer recomendações que não são imperativas. Por isso, tanto faz se suas Convenções são cumpridas, gerando assim desigualdades na relação capital-trabalho ao redor do mundo, chegando ao absurdo dos empresários quererem acabar com o direito de greve.
Finalmente, deve chamar a atenção o fato de que, a partir dos anos 1990, a institucionalidade que foi sendo criada nas instituições internacionais, como a OMC, ou em acordos bilaterais, plurilaterais ou bi regionais de comércio, objetiva mais do que tudo não o comércio, mas limitar a capacidade dos vários países – em especial os em desenvolvimento e subdesenvolvidos –, em levarem adiante políticas de desenvolvimento no âmbito nacional ou regional.
Assim, os desdobramentos do painel apresentado pela UE devem, antes de mais nada, chamar a atenção para os limites que esse tipo de acordo coloca para o desenvolvimento de países como o Brasil. Por isso, esse processo deve ser acompanhado com muita atenção pela sociedade brasileira.
Do ponto de vista do nosso país, é fundamental insistir na autonomia para a formulação de estratégias e políticas de desenvolvimento nacionais e, pensando além, construir também uma política de desenvolvimento no âmbito do Mercosul. Em um momento em que o comércio mundial segue estagnado e a demanda interna de vários setores patina, abrir mão da possibilidade de políticas de desenvolvimento pode ser um tiro no pé!