Desenvolvimento rural: um modelo em disputa no Brasil
Agricultura familiar garante alimento saudável, mas agronegócio recebe os privilégios.
Publicado: 14 Fevereiro, 2017 - 18h38 | Última modificação: 17 Fevereiro, 2017 - 00h48
Escrito por: Érica Aragão
A chegada ao poder do governo ilegítimo de Michel Temer provocou um grave desequilíbrio, a favor da agricultura patronal, na histórica disputa em torno do modelo de desenvolvimento rural para o país. Todas as medidas adotadas, a começar pela extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), prejudicam e desorganizam a agricultura familiar e camponesa.
Um dos principais objetivos do governo ilegítimo é desmontar as políticas para o campo construídas nos governos Lula e Dilma, que estavam transformando o cenário de profunda desigualdade no mundo rural brasileiro. Por isso estão sendo esvaziados ou desmontados programas como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), o PNAE (Plano Nacional da Alimentação Escolar) e o PAA (Plano de Aquisição de Alimentos) e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
Para Tânia Bacelar, economista e professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é um grande equivoco querer basear nossa agricultura somente no modelo patronal. “A ideia de que o Brasil só deve ter uma agricultura, um modelo de agropecuária baseada na organização patronal é uma ideia ruim para o país”, afirma ela.
Em entrevista exclusiva para o portal da CUT, Tânia lembra que é uma característica própria do Brasil ter dois ministérios voltados para a atividade produtiva no campo: o Ministério da Agricultura, representante do agronegócio e da agricultura patronal, e o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), que nasceu pra fortalecer a agricultura familiar. Para ela, os dois modelos de desenvolvimento rural, patronal e familiar, são importantes. “O Brasil rural é 37% da população brasileira, número muito maior que os 16% que o IBGE usa no Censo Demográfico. Ou seja, o Brasil rural é muito maior do que a gente imagina”, afirmou.
Tânia avalia que, apesar da crise e de fatores específicos com a prolongada seca no Nordeste, o campo vive seu melhor momento. “Estamos numa conjuntura difícil, mas ela atingiu mais a economia urbana no Brasil, as indústrias, comércios e serviços. As cidades estão sofrendo mais que a zona rural brasileira”, destaca. Para a professora, um bom caminho é encontrar modos de convivência entre os dois modelos de organizar a economia agrícola do país. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a agricultura familiar está presente em 84% dos estabelecimentos agropecuários e responde por aproximadamente 33% do valor total da produção do meio rural.
Garantindo alimentos saudáveis
A vice-presidenta da CUT Nacional, Carmen Foro, agricultora familiar da base da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), lembra que a agricultura familiar é responsável por garantir alimentos saudáveis e de qualidade na mesa do povo brasileiro, já que 75% da produção de alimentos consumidos provêm das propriedades deste setor. “A Agricultura Familiar é reconhecida como uma principal estratégia para a produção de alimentos buscando assegurar a garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável para toda a população, levando em consideração as diversas culturas, fortalecendo o espaço rural em sua diversidade econômica, social, cultural e política”, lembra Carmen.
Para ela, um dos grandes desafios que estão colocados para agricultura familiar é a investida que vem sendo feita pelo grande capital, tendo como objetivo privatizar os bens comuns, como a água e a terra, parte principal para a produção de alimentos e para o modelo de desenvolvimento que defendemos. “Disputar o modelo de desenvolvimento rural é primordial. A agricultura familiar é sustentável, produz vida, gera alimento e emprego diferente do agronegócio que produz para exportação, usando venenos, destruindo as terras e as reservas naturais”, ressalta Carmen.
As ameaças à agricultura familiar
O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi criado a partir de um longo debate e de uma formulação política baseada no modo de viver e na cultura dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, visando dar condições e responder às expectativas da agricultura familiar.
Além do Pronaf, muitas outras iniciativas públicas contribuíram para o avanço da produção e a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, como o PNAE, PAA e as ações de apoio à agroecologia, que permitiram que os produtos da agricultura familiar chegassem às escolas e municípios e se tornassem referências fundamentais na erradicação da fome e da miséria.
Tânia Bacelar afirma que a extinção do MDA partiu de uma visão equivocada. “Se tirasse o ministério, mas mantivesse a força das políticas públicas era um cenário. Agora, fechar o ministério e começar a reduzir essas políticas, o que enfraquece a agricultura familiar, é um cenário muito pior. Quem produz alimentos para o mercado interno brasileiro não é o agronegócio. A gente não come muita soja, a gente come milho, feijão, verduras e tudo isso é produzido em larga escala pela agricultura familiar”.
Reforçando essa análise, Carmen ressalva que a população do campo está sendo “desempoderada” pelo governo golpista, que está querendo acabar com o conceito de agricultura familiar. “É claro que nós temos uma longa história de organização e mobilização, cultura que nos mantém de pé, mas o conjunto de políticas públicas que foram conquistadas no último período, faz com que as pessoas permaneçam com dignidade no campo” enfatiza a dirigente.
Rosane Bertotti, secretária nacional de Formação da CUT, agricultora familiar ligada à FETRAF (Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar), lembra que todas as políticas públicas implantadas desde 2003 foram conquistadas através da luta dos movimentos sociais e são frutos de uma decisão estratégica. “Elas foram resultados do posicionamento de um governo que entendeu que a agricultura familiar é importante para o desenvolvimento da vida. Além de alimentar a maioria da população, é um modelo sustentável e gera mais de 80% dos empregos no campo”.
12º Congresso CONTAG
O 12º Congresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) acontecerá nos dias 13 a 17 de março com o tema “Levantar as bandeiras de luta e fortalecer a organização sindical da agricultura familiar”. Para contrapor o modelo de desenvolvimento do agronegócio a CONTAG tem como eixo orientador o Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (PADRSS), que tem como pressuposto, respeitar a natureza, dar visibilidade ás diversidades dos sujeitos do campo, reconhecendo seus saberes, suas experiências e diversidades ambiental, cultural, política e organizativas.
“O 12º Congresso da CONTAG terá uma missão muito estratégica de revisitar o PADRSS e definir o seu plano de luta para enfrentar o governo ilegítimo de Temer e seus aliados. Nós vamos ter que ser muito valentes, muito forte no próximo período para manter a nossa linha, nossa visão e continuar fazendo uma disputa em cada município com nossos instrumentos que são os sindicatos de base”, concluiu Carmen.
Mulheres
Pela primeira vez, depois de 50 anos de existência, a CONTAG terá em sua direção 50% de homens e 50% de mulheres. Nesta lógica, os delegados e as delegadas do Congresso terão a mesma condição. Para Carmen, “a paridade de gênero é o resultado da organização das mulheres rurais”.
Juventude
Com esta opção de modelo de desenvolvimento do governo e com as reformas estruturantes a juventude rural tem grandes desafios para permanecer no campo. O êxodo rural - o deslocamento ou migração de trabalhadores rurais que vão em direção aos centros urbanos, é um problema pra a soberania alimentar brasileira.
Para a secretária da Juventude da CUT, Edjane Rodrigues, também agricultora familiar ligada a CONTAG, um dos grandes desafios é tornar o campo um lugar atrativo e agradável à juventude, capaz de promover a sucessão e a permanência rural. Edjane destaca: “É preciso transformar a concepção da relação campo-cidade, ofertando qualidade de vida digna, trabalho e renda nas áreas rurais. E o desenvolvimento rural sustentável e solidário tem um papel fundamental nessa transformação”.